Capítulo 27 - Lembranças

NÓS ENTERRAMOS Enzo Di Grassi num dos jazigos da sua família em Veneza e aquela cerimônia foi tão curta quanto dolorosa. Eu estava vestindo um sobretudo preto sobre um conjunto de blusa e saia de mesma cor e havia prendido os meus cabelos num rabo de cavalo desleixado. Além de dois ou três familiares de Enzo que eu mal havia conhecido na comemoração do nosso casamento, estavam presentes a babá francesa Danielle, o meu motorista siciliano Fabrice e todos os Batedores de Ferro. Miguel Harone parecia inconsolável ao lado da esposa vendo o caixão do meu marido ser abaixado até a cova enquanto os presentes começavam a jogar pétalas de rosa. Alex tremia aos prantos com as suas mãozinhas segurando firme em minha roupa, com o rosto cheio de lágrimas em meu peito incapaz sequer de dar o último adeus ao pai. Ela ainda passaria as próximas semanas amuada em seu quarto.

Antes do enterro de Enzo, com a ajuda de Miguel, nós enviamos o corpo de Remy de volta a sua família em Strasbourg, e lá, o meu fiel ajudante foi enterrado ao lado de várias outras gerações de serviçais franceses que haviam trabalhado para inúmeras famílias europeias. Ele havia sido a primeira vítima do meu marido naquela fatídica noite em que as correntes não haviam sido suficientes para aprisionar a sua fúria junto ao tronco da árvore, e mesmo que tivesse tentado acionar o gatilho da escopeta que devia protegê-lo, Remy havia sido degolado sem dar nenhum tiro. Um vircolac era rápido demais até mesmo para um vampiro, o que um mero humano poderia fazer contra ele? Para a sua família, eu havia informado que Remy tinha sido vítima de um animal selvagem na floresta, o mesmo que também havia tirado a vida do meu marido. De uma certa maneira, aquela não era uma mentira completa.

Por mais que quisessem animar Alex e estivessem se esforçando para tirá-la do luto nas semanas seguintes, Danielle e Fabrice não conseguiam lhe arrancar mais do que simples acenos de cabeça. A moça agora era responsável por acompanhar a minha filha nos passeios a cavalo pelo bosque e nem mesmo a compra de uma nova égua de pelagem prateada para substituir Ragazza tinha conseguido tirar-lhe um sorriso.

— Quero Ragazza de volta. Ela era a minha amiga.

Alex retornou às aulas no colégio particular de Avignon duas semanas depois da morte do pai, e como era de costume, Fabrice a levava e a buscava à porta, a bordo do nosso Alfa Romeo. Na volta para casa, ele sempre passava na chocolataria preferida dela em Châteauneuf-du-Pape ou na Confiserie Artesanal Denis Ceccon, em Apt, onde ele a enchia de doces e frutas cristalizadas. Mesmo assim, Alex continuava irredutível. Cada vez mais tristonha.

Eu tinha adiado aquela conversa por tempo demais e no aniversário de dez anos de Alex, em vez de uma festa para comemorar, eu decidi levá-la para passear no bosque e contar toda a verdade sobre mim. Ela vestiu a sua roupa tradicional de montaria e eu a acompanhei, aproveitando que o tempo nublado e frio me permitia sair do castelo mesmo durante a tarde. O estábulo havia sido reformado por um cavalariço de Avignon com a ajuda do ainda viril Fabrice e eu montei no corcel preferido de Enzo enquanto Alex assumia as rédeas da sua nova égua, batizada por Danielle como Belladona. Cavalgamos alguns quilômetros além do bosque e na primeira oportunidade toquei no assunto.

— Alex... tem algo que a mamãe precisa contar sobre o que você presenciou diante do castelo na noite em que o seu pai morreu.

Os olhos tristes de Alex foram da crina imponente de Belladona para o meu rosto e ela me encarou, dizendo com tom firme:

— Você é uma vampira.

A mente de Alex era uma das únicas que eu mantinha inviolável de minha telepatia e eu não lia os seus pensamentos nem mesmo quando o seu rosto não deixava transparecer os seus sentimentos. Por mais que aquela revelação tivesse me pegado no contrapé, não era de todo uma surpresa que ela já soubesse sobre a minha real natureza. A menina já tinha me visto queimar em contato com o sol, sabia que eu me escondia dentro do castelo a maior parte do dia, que as janelas do meu quarto eram grossas e maciças tornando incapaz que a luz solar atravessasse e principalmente havia me visto em ação contra um vircolac gigante. Minha filha era extremamente inteligente, possuía um raciocínio lógico impressionante para a idade que tinha e era mais do que óbvio que ela seria capaz de ligar os fatos.

Ela viu a mãe se esvair em sangue, inteira mutilada pelas garras de um lobo gigante, e no dia seguinte, só arranhões haviam restado nos ferimentos. Ela só precisava somar um mais um, pensei, enquanto procurava a melhor forma de contar a Alex toda a minha história.

Após amarrar os cavalos a uma árvore, nós nos deitamos de costas numa relva macia e ficamos a olhar as primeiras estrelas a ganharem o céu já quase totalmente enegrecido. Alex havia aprendido com Enzo a reconhecer as constelações e ela esboçou um sorriso ao localizar Órion com as suas estrelas principais Mintaka, Alnitak e Alnilam brilhando intensas bem ao centro das demais.

Eu contei sobre como, às vezes, eu me deitava com o seu tio Costel em meio as videiras da Valáquia e ficávamos a dar nomes às estrelas, um tentando superar o outro nas invencionices. Eu raramente falava do meu meio-irmão a ela e Alex sorriu quando me olhou descrever como ele era fisicamente. Ela espantou-se em saber que o trabalho no campo ao Sul dos Cárpatos, a fabricação artesanal de vinho e a doença da minha mãe haviam acontecido na metade do século anterior e que eu era uma mulher de mais de cem anos.

— E você não tem uma única ruga no rosto, mamãe! — disse ela, agora curiosa pela minha história e acariciando a maçã do meu rosto pálido.

Por motivos óbvios, pulei a parte da razão pela qual eu e Costel tivemos que fugir da fazenda dos Grigorescu, poupando a minha filha da história de incesto, mas tive que falar das semanas em que passei em cárcere no alto do castelo do vampiro Dumitri Ardelean, em Bucareste. Alex deitou-se de bruços no gramado e ficou a ouvir com as duas mãos apoiadas no queixo todos os acontecimentos que me levaram a escapar para a Rússia e como, posteriormente, me tornei a dama da alta sociedade moscovita chamada Dasha Grigorevna Vassilieva. Ela adorou a parte em que eu descrevia os palácios e castelos que frequentava com Costel nas noites de festejos aristocratas e todos os vestidos de gala que eu tinha à minha disposição.

— Você foi uma princesa russa, mamãe?

— Quase isso, querida. Quase isso.

Contei a Alex sobre Adon Gorky e como ele havia me enganado para tentar dominar a minha mente junto de sua parceira Iolanda. Contei também como fui resgatada por Alejandro Columbus, o filho da velha bruxa, e como foram movimentados os nossos dias rumo à América do Sul a bordo de uma embarcação portuguesa. Falei como fazia calor no Peru e como Alejandro acabou conhecendo o grande amor da sua vida, a filha de pescadores Pietra Del Cuzco. Alex ficou fascinada com a história do povo Inca que vivia naquela região antes mesmo da exploração espanhola e como Pietra aprendeu a manipular magia ao lado de Alejandro. Ela disse que o espanhol de cabelos longos e barba por fazer lembrava os heróis fortes e corajosos que ela conhecia pelos livros de história que Enzo lhe dera de presente e eu não podia discordar.

— Ele era sim, Alex. Um herói.

Minha filha ficou chocada com o fato de eu ter passado mais de quarenta anos mumificada em Machu Picchu, no Peru, e naquele momento, ela me abraçou forte, penalizada por todo o sofrimento que Adon e Iolanda haviam causado a mim, Pietra e Alejandro.

— Eu os odeio — disse ela, acariciando de leve os meus cabelos.

Continuei a minha história falando sobre o Brasil e tudo que havia descoberto sobre a extração mineral naquele país. Falei como eram bonitas as florestas amazônicas bem como as suas lendas que contavam sobre botos, cobras de fogo e sereias. Falei do meu retorno à Valáquia, de como foi bom reencontrar os descendentes do meu pai e como um de meus sobrinhos distantes se parecia com o velho e rude Grigore.

— Um dia posso conhecer a nossa família romena, mamãe?

— Quem sabe um dia, meu amor? Podemos nos apresentar como parentes distantes de Alina Grigorescu. Que tal?

Ela riu, e então, tocou a ponta do meu nariz com seu indicador repetidas vezes enquanto dizia, pausadamente:

— É feio mentir. Papai do céu castiga.

Eu não consegui segurar o meu próprio riso.

Eu terminei a minha longa história cortando logo para o momento em que tinha conhecido o seu pai em Subotica, na antiga Iugoslávia, e como, na época, ele só me parecia um brutamontes mal-educado e idiota.

— Seu pai se apresentava na época como Marco Polo, o mesmo nome de um explorador veneziano que viveu entre os séculos XIII e XIV. Ele fazia o tipo pugilista bronco, mas já era muito bonito. Penteava os cabelos loiros para trás quando não estava usando uma boina, mas os fios estavam sempre lhe caindo pelo rosto. Tinha os braços fortes e os músculos saltavam da blusa, quase rasgando o tecido. Eu já gostava da presença dele, mas não admitia. Acho que ele havia me encantado desde o início apesar de me irritar às vezes me chamando de principessa, de bela signora ou de belladona quase o tempo todo com aquele sotaque italiano.

Alex entristeceu-se e aninhou-se em meu peito enquanto lágrimas começavam a escorrer dos seus olhos claros. Ela entendia a razão pela qual eu havia sido obrigada a atingir Enzo mortalmente com uma espada naquela noite, mas de certa forma, era como se ainda me culpasse internamente por tê-la tirado da convivência do pai. Não fora fácil para a garota digerir tudo que tinha acontecido em sua vida nas últimas semanas, mas eu estava lá para apoiá-la o quanto ela precisasse.

— Eu sinto muito a falta do papai — disse com a voz embargada.

— Eu sei, Alex. Eu também sinto muito a falta dele. 

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