Capítulo 26 - A fúria do vircolac

DE SETEMBRO DAQUELE ANO a meados de junho do seguinte, eu e Marco voltamos a nos ocupar com os negócios de mineração que nos permitia continuar levando a vida confortável que dávamos a Alex. Daquela maneira, ao mesmo tempo que eu mantinha nossa filha afastada dele, eu conseguia ficar de olho em meu marido caso a sua transformação assumisse características diferentes daquelas que só permitiam que ela acontecesse em período de eclipse ou na primeira lua cheia do verão.

Seguindo a dica de Miguel Harone, eu estava negociando a compra de uma estação petrolífera no Oriente Médio e uma sociedade com uma empresa de extração na Venezuela. Eu planejava usar os últimos recursos da fortuna que ainda me restava para que a minha filha fosse dona de uma herança milionária no futuro e não tivesse nunca que passar por apertos financeiros, por isso, estava investindo pesado no ramo de mineração com a ajuda de Enzo.

No verão daquele ano, o meu marido voltou a apresentar os mesmos sintomas que anteviam a sua transformação e ele caiu de cama a dois dias da primeira lua cheia da estação. A sua febre estava atingindo os 40° e nem mesmo os remédios antitérmicos o estavam estabilizando. Ele costumava melhorar sozinho depois de cair febril e tudo que tive que fazer foi esperar enquanto ele delirava em nossa cama, suando e tendo visões com uma lua sangrenta num céu em labaredas. Não era bonito de se ver.

Na noite em que a lua nasceria cheia pela primeira vez naquele verão, eu decidi ficar em casa para acalmar Alex. A menina perguntava insistentemente pelo pai enquanto Remy o acompanhava até o bosque a fim de amarrá-lo. Nosso leal serviçal já tinha compreendido todas as coisas estranhas que envolviam a nossa família, e sem fazer questionamentos, ele aceitou montar guarda na floresta enquanto o seu patrão se transformava numa feroz criatura das trevas. O francês havia lutado na Segunda Guerra com os Aliados e estivera em Normandia no chamado "Dia D", o que o tornava experiente em combate. Por precaução, ele tinha levado consigo uma escopeta carregada com munição de prata e alho, o que deixava a todos os envolvidos mais tranquilos quanto a sua segurança.

— Aonde o papai está indo? Por que não posso ir com ele?

Alex já estava prestes a completar os seus dez anos e estava cada vez mais difícil esconder as coisas dela. A menina já tinha reparado as queimaduras que apareciam em minha pele ao menor contato com a luz solar e estranhava os cortes e arranhões no corpo do pai todas as vezes que ele retornava da mata após o sumiço de uma noite quase inteira. Não íamos conseguir esconder toda a verdade de quem realmente éramos dela por muito mais tempo.

E se ela começar a me odiar por eu ser uma vampira? E se ela não aguentar a verdade sobre o seu pai ser um híbrido vampiro-lobisomem e fugir de casa? Como vou aguentar ficar sem a minha linda filha? pensava eu, quase entrando em desespero enquanto inventava mais uma desculpa a ela.

— Papai foi caçar com o Remy na floresta, meu bem. Amanhã bem cedo ele estará aqui para tomar café com você. Não se preocupe. Agora vamos dormir. Você tem aula amanhã.

Eu tinha liberado Danielle aquela noite já que ficaria eu mesma de olho em Alex e a moça tinha aproveitado para ir até o centro de Avignon visitar o Teatro Romano de Orange com uma amiga da cidade. Enquanto Alex dormia, eu estava na sacada do meu quarto observando atentamente o campo em volta do castelo, estranhando todo aquele silêncio. Fazia mais de duas horas desde que a lua cheia havia nascido no céu e pouco mais do que isso desde que Enzo e Remy tinham se metido na mata. As transformações não costumavam demorar tanto. Tinha algo errado.

Sabendo que Alex estava segura em seu quarto, decidi sair do castelo e caminhar até a entrada do bosque. Minha audição conseguia captar sons muito distantes mesmo no caos de uma cidade urbana. Na tranquilidade de um campo, as condições eram ainda mais favoráveis e eu decidi explorar os meus dons. Eu não pretendia me afastar muito de casa já que a minha filha tinha ficado sozinha e ela chamaria se precisasse de algo durante a noite, por isso, me reservei a ficar a apenas alguns metros de distância, próximo da entrada da floresta. Não haviam uivos, grunhidos ou mesmo som de correntes se agitando na mata. Estava tudo quieto demais, exceto por um gemido e o som de um coração falhando perto de seu último tamborilar.

— Remy!

O grito estridente de Alex vindo do castelo me estremeceu dos pés à cabeça, e sem hesitar, eu voltei correndo para casa dando tudo que tinha na musculatura das minhas pernas. Eu tinha entrado em pânico pelo mais leve pensamento de que a minha filha pudesse estar ferida, de que algo monstruoso a pudesse ter machucado, e entrei no castelo à toda velocidade derrubando a porta de entrada no processo. Saltei os dois lances de escadas incapaz de subir os degraus um a um, e em segundos, estava no corredor de acesso ao quarto da menina. A porta estava fechada como eu a havia deixado antes de sair, mas lá dentro, eu ouvia dois batimentos cardíacos, o dela e um outro, mais acelerado, mais forte, mais vigoroso.

— Não! Isso não pode estar acontecendo!

Entrei em seu quarto com tudo e vi a criatura de mais de dois metros a ameaçar a pequena na borda da sua cama, a salivar sobre a sua presa. Alex estava toda encolhida contra a parede, chorando desesperada abraçada à sua boneca suíça preferida, presente do padrinho Miguel. A fera estava a menos de um metro dela mostrando-lhe os dentes e com as costas curvadas em posição de ataque. A janela do quarto por onde o monstro havia entrado estava inteira esgarçada com a cortina esvoaçando pela força da brisa que entrava no ambiente. Usando toda minha força, eu o segurei pelo pescoço, me lancei com ele pela abertura na parede, derrubei a mureta da sacada e caí em seguida do segundo andar.

— MAMÃÃÃEEE!

O berro de Alex chamando por mim ainda ecoava em meus ouvidos comigo estirada no chão quando notei que a criatura já tinha se recuperado e ameaçava saltar de volta os quase três metros e meio que o separavam da janela da menina. Eu não podia permitir que ele voltasse a ameaçar a minha filha, e então, o agarrei com força, tentando cravar as minhas presas em seu pescoço peludo. Ele se desvencilhou de mim com um único golpe e eu senti a sua cotovelada fraturar uma das minhas costelas, me atirando longe. Enquanto rolava no chão pedregoso que dava acesso aos estábulos atrás do castelo, eu tentava pensar em algo que pudesse usar contra ele, algo que o pudesse ferir para valer, mas nem tive tempo. Senti uma mordida em meu pescoço começar a me arrancar um pedaço e garras afiadas penetrando a carne do meu ombro.

— NÃO!

Tive segundos para me livrar daquela mordida quase fatal, e então, cravei a unha do meu polegar esquerdo dentro do seu globo ocular vermelho. Ele ganiu como um cão ferido sentindo o olho rasgado e partiu com ainda mais ferocidade para cima de mim, quase me dividindo em duas com as suas garras. Eu tinha agora um rasgo de quase um metro do abdômen até o pescoço e estava sangrando muito.

Nesse ritmo, ele vai acabar comigo. Eu não posso deixar. Ele não vai voltar lá para cima para machucar a minha filha.

Instintivamente, eu ainda tentei abatê-lo dando-lhe um murro forte na cara de lobo enraivecido e o monstro mal sentiu o golpe. Num movimento rápido de pernas, ele girou seu corpo e me acertou o rosto com uma pancada indefensável com o dorso de uma das mãos enormes. Senti como se o meu maxilar tivesse sido arrancado e quando percebi, estava caindo de costas na parede lateral do estábulo.

A minha chegada súbita assustou os quatro cavalos que mantínhamos ali desde que havíamos adquirido a propriedade. Ragazza começou a relinchar alto como se estivesse sentindo o perigo se aproximar e os seus companheiros começaram a se agitar dentro das estrebarias. Olhando ao meu redor, comecei a procurar algum objeto pontiagudo que pudesse usar contra o meu adversário, mas eu tinha poucas opções.

— ALEXXXX... ALEXXXX...

De repente, o monstro estava à porta do estábulo murmurando o nome da minha filha, como que querendo me amedrontar. Os cavalos agora ameaçavam escapar das suas celas coiceando a madeira. Eu arremessei um balde de alumínio em sua cabeça na falta de uma arma mais eficaz, mas aquilo não o deteve nem por um segundo. A criatura retesou os músculos poderosos e saltou sobre a estrebaria, cravando os seus dentes na égua de pelos brancos. O animal estava agora indefeso sob o ataque feroz e eu me lancei contra o vircolac, conseguindo arrastá-lo comigo. Rolamos no chão do estábulo nos agredindo e o sangue de Ragazza escorria do focinho do monstro para o meu rosto. Nossa força conjunta foi suficiente para arrebentarmos a parede dos fundos da área dos cavalos e continuamos nos engalfinhando pelo fundo do quintal do château. Uma nova mordida daquela mandíbula que parecia feita de ferro me atingiu certeira no braço, e por um momento, eu achei que ele o tinha arrancado. Comecei a bater insistentemente na cara da criatura tentando fazê-la largar meu outro braço, mas ela não soltava.

— Solta, seu desgraçado! SOLTA!

Apelei mais uma vez para as minhas próprias presas, e então, eu as cravei em seu pescoço, começando a sugar o seu sangue. O gosto era horrível, mas aquilo serviu para que ele abrisse a sua mandíbula e libertasse meu braço. Eu mal estava conseguindo sentir o meu membro superior esquerdo quando ele aproveitou o meu instante de dor para fechar seus dedos poderosos ao redor do meu pescoço, me erguer no alto e me arremessar como uma bola de borracha. Eu jamais tinha enfrentado um ser tão forte dotado de tamanha resistência e já começava a acreditar que eu não conseguiria superá-lo.

Ele matou Remy, tirou a vida da Ragazza e agora vai me matar. Não haverá nada entre ele e a minha filha. Alex! ALEX!

— ALEX!

Eu tinha sido jogada para dentro do galpão onde Enzo costumava guardar os seus antigos equipamentos de combate. Ninguém mais além dele mesmo tinha acesso àquele lugar e havia muita coisa ali que eu podia usar contra o monstro do lado de fora. A parede do lugar era forrada por armas de fogo diversas que o meu marido havia usado em sua época de agente da Teia e também das suas incursões na Alemanha nazista em seu tempo de membro dos Batedores de Ferro. A sua Tommy Gun, usada em Donetsk, estava em uma posição de destaque, pendurada ao lado do seu pente de munições bem perto da escopeta com a qual ele havia matado o vircolac em Tegucigalpa.

O meu braço está muito ferido... eu não teria força para apoiar uma dessas armas para apertar o gatilho com a outra. Preciso de algo que possa ser usado com apenas uma mão.

Enzo não era de usar armamento branco em combate, valendo-se sempre de armas robustas com a qual ele pudesse explodir os seus alvos, mas dentro daquele galpão, em meio a armários recheados de submetralhadoras, rifles de assalto de várias nacionalidades diferentes, pistolas italianas — como as duas Berettas que ele tinha usado em Eindhoven —, ele guardava em um suporte de vidro uma lâmina que ele havia recolhido da parede de um palácio espanhol como um troféu após uma de nossas missões em Madri. A rapieira media menos de um metro de comprimento, possuía uma guarda prateada com detalhes em formato de aro e era fácil de ser manuseada por apenas uma mão, como um florete de esgrima.

É uma arma de perfuração, mas se eu o atingir no ponto certo, posso tirá-lo de ação.

Pronta a quebrar o suporte de vidro, um cilindro de plástico marcado com uma etiqueta me chamou a atenção, guardado num dos armários de madeira bem ao lado de onde Enzo mantinha o nitrato de prata para as munições anti-vampiro.

O monstro de pelos negros e costas curvadas se movimentava agilmente pelo campo em frente ao castelo, mas eu o surpreendi pouco antes dele saltar mais uma vez para o interior do quarto de Alex. Por alguma razão, ele estava obstinado a alcançar a menina, tanto que havia me ignorado completamente dentro do arsenal apenas para retornar ao seu plano inicial de ferir a criança.

— Enzo!

A minha voz ecoou no bosque chamando a atenção da criatura que se virou, me encarando com um dos olhos refletindo a luz da lua. O outro jazia fechado, ferido, ainda cicatrizando após o meu ataque.

— Eu sei que você ainda está aí em algum lugar dentro dessa massa bestial que estou encarando agora — Eu estava trêmula. O braço ferido pendia para o lado praticamente inutilizado enquanto eu apontava a rapieira para o peito do meu marido vircolac. O rasgo que as suas garras haviam feito em meu peito ardiam como em chamas e a mordida no pescoço não estava menos dolorida — Se você ainda pode resistir ao poder do vircolac, volte para nós. Volte para mim. Volte para sua filha Alex.

Como que entendendo o que eu tinha dito, o animal olhou para o alto em direção à janela do quarto da menina. Naquele momento, Alex surgiu entre as cortinas, vacilante, atraída por minha voz.

— Mamãe?

A criatura rosnou ao perceber a presença da menina lá em cima e os músculos da sua perna já se flexionavam para saltar e a alcançar. Eu tinha uma fração de segundos para agir e usando toda a minha velocidade, eu o ataquei, fincando a lâmina fina da rapieira inteira no peito do vircolac.

— MAMÃE!

Com o susto de ver a mãe toda ensanguentada avançando sobre um lobo gigante e feroz, a menina deixou escapar a sua boneca que despencou janela abaixo enquanto ela se segurava no que havia restado da amurada da sacada do seu quarto. Feito um animal ferido em agonia, Enzo começou a espasmar, e ganindo, ele me atingiu com força no rosto. Ele tinha me atirado quase cinco metros de distância, e naquele momento, o seu corpo começou a fraquejar. As pernas antes poderosas vacilaram e os seus joelhos se dobraram ante os seus mais de trezentos quilos de peso. Agora vomitando um tipo esverdeado de gosma que passava por entre os dentes cerrados, ele tentava a todo custo se livrar da arma pontiaguda cravada até o cabo dentro dele, mas a substância em que eu havia embebido a lâmina não permitia a sua reação. O cheiro do extrato de alho sintetizado pela primeira vez na base da Teia por Erich Brandt anos atrás também estava me enfraquecendo, mesmo à distância. Minha mão tinha sido queimada por uma simples gota que havia me tocado enquanto eu derramava o líquido do cilindro plástico em todo o metal da rapieira. O meu último ataque tinha sido fatal e eu comecei a ouvir o poderoso coração de Enzo fraquejar.

— Mamãe! Mamãe! Fala comigo!

Enquanto a bela loirinha que eu havia salvado tentava chamar a minha atenção do alto da janela, eu comecei a me arrastar pelo gramado do jardim, fraca demais até mesmo para me levantar. Enzo agora havia despencado no chão e o seu ganido era débil, quase inaudível. Ele não representava mais perigo e eu o alcancei começando a acariciar a sua cabeça. A pelagem negra já começava a assumir o tom grisalho dos cabelos do italiano. Logo, ele estaria totalmente revertido à sua forma humana, a forma pela qual havia feito eu me apaixonar por ele há muitos anos.

Eu conseguia ouvir agora os pezinhos de Alex descendo correndo as escadas que levavam do segundo andar até o átrio pronta a me alcançar ali largada diante do castelo. Quando ela surgiu à porta em sua camisola branca com bordados dourados, senti o seu coração se acelerar ao perceber que o monstro gigante que a ameaçava há algum tempo tinha se transformado em seu pai. A menina correu até nós dois e começou a chorar.

Papa! Papa! É o meu papa! É O MEU PAPA!

Alex estava em choque, mas não havia mais nada que pudéssemos fazer por Enzo. O golpe da rapieira espanhola havia perfurado o seu coração e o extrato de alho havia garantido que ele jamais voltasse a se transformar num vircolac. Estava acabado. Eu tinha salvado Alex.          

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