Capítulo 25 - O segredo de Enzo
EM 1952, na festa de aniversário de oito anos de Alexandra, Miguel me apresentou quatro possíveis aquisições empresariais que podiam me interessar e eu fiquei de estudar cada uma das propostas com mais calma. Embora boa parte da fonte da Rassvet tivesse secado, eu havia mantido um percentual considerável da riqueza do velho Rodchenko em meu nome, convertida principalmente em joias e em imóveis. Se as coisas não melhorassem pelos próximos meses, a saída ia ser transformar aqueles bens em dinheiro e investir numa nova empresa. O amigo espanhol de Enzo parecia realmente interessado em nos ajudar e ele tornou-se um excelente padrinho para Alex, sempre a cobrindo de bonecas caras e outros presentes diversos quando nos visitava no castelo. A menina também o adorava.
No verão de 1953, Enzo caiu de cama febril e parecia que não haviam meios de impedi-lo de delirar, suar em bicas e falar coisas desconexas. Eu tinha chamado um velho médico suíço para examiná-lo em nosso quarto no segundo andar do castelo, mas fora os comprimidos antitérmicos e a sugestão de fazer muita compressa com água morna em seu corpo, ele nada mais podia fazer por meu marido. Eu mesma cuidei de Enzo nos três dias em que ele foi tomado por aquele mal-estar e não deixei que Alex se aproximasse naquele período. Com a contenção de gastos, eu tinha sido obrigada a dispensar Cécille, Pierre e Maurice, mas fiz questão de manter Danielle morando conosco. Naqueles dias, ela foi a melhor companhia que a minha linda filha podia ter e quando o pai melhorou, tudo voltou ao normal.
Na semana seguinte da febre, uma lua cheia maravilhosa ganhou espaço no céu estrelado do Sudeste francês e Enzo e eu fizemos amor em nosso quarto como há muito tempo não fazíamos. Agora que tínhamos uma filha pequena em casa e empregados dormindo em nosso castelo, não podíamos mais nos amar como fazíamos em nosso tempo de agentes da Teia, seja no casebre em Eindhoven, no campo de orquídeas em Madri ou naquele telhado em Viena. Os grunhidos animalescos, os gemidos uivantes e os arranhões profundos tinham se convertido em sussurros e gritos abafados por travesseiros de penas de ganso. Não nos dávamos ao luxo de fazer sexo selvagem há muito tempo. Aquela noite, no entanto, abrimos uma pequena exceção aos arranhões, deixando marcas de cortes um nas costas e nos braços do outro.
Após duas horas quase ininterruptas, paramos para que Enzo retomasse o fôlego e após me servir de uma taça do excelente vinho tinto produzido no vinhedo de Côtes du Luberon, perto de Apt, a poucos quilômetros dali, voltei a me deitar na cama ainda nua e de bruços. Ele estava ofegante e me reservei a lhe fazer carinhos na barba cada vez mais tomada por pelos grisalhos, tal qual a vasta cabeleira já quase toda descolorida em sua cabeça. Apesar de não ter demonstrado enquanto me tomava de quatro sobre os lençóis ou enquanto eu cavalgava sobre ele momentos antes, Enzo parecia preocupado, se expressando em seguida.
— Tenho uma coisa para te contar sobre aquela febre, Alexia.
Depois do casamento, raramente o meu eterno Marco Polo me chamava pelo nome que eu havia adotado em meu retorno à Europa, ainda no início do século. Apelidos carinhosos eram muito mais comuns tanto no espaço privado quanto no público. Havia realmente algo errado em sua atitude e eu deixei que ele continuasse.
— Essa não foi a primeira vez que me vi tomado por um surto febril. Já aconteceu outras vezes. É sempre numa mesma época do ano que antecede a primeira lua cheia do verão ou no limiar de um novo eclipse... seja do sol ou da lua. Nesse período, eu costumo ficar febril e acontecem mudanças em mim.
Nós dois tínhamos aprendido muita coisa sobre todo tipo de criatura da noite em nosso convívio com Gavril, Jacqueline e o professor Rashford na Teia. Eu sabia bem o que Enzo estava prestes a me dizer e me sentei na cama, olhando fixamente em seus olhos.
— Você lembra aquela vez em Honduras quando perseguimos aquele monstro nas favelas de Tegucigalpa? — indagou-me ele, se referindo a uma de nossas missões na América Central, antes do início da Segunda Guerra Mundial.
— Sim. Nós detivemos um vircolac gigante pouco depois de você disparar atrás dele sozinho, no escuro, usando apenas uma lanterna e uma escopeta com balas de alho.
Ele sacudiu a cabeça ao me ouvir como que assentindo.
— Naqueles minutos entre eu correr atrás dele sozinho e você chegar para dar apoio com Gavril, Nadine e o professor, a criatura me mordeu, Alexia. Bem aqui — e ele apontou a região do pescoço, onde uma cicatriz se estendia de centímetros abaixo da orelha esquerda até bem próximo da clavícula.
— Você disse que não era uma mordida, que o bicho tinha te acertado com as suas garras. Você afirmou isso logo que o encontramos em cima da criatura crivada de balas.
— Eu menti, Alexia — ele segurou em meu braço, procurando me fazer entender —, eu estava assustado na época, não sabia bem o que podia me acontecer em seguida, por isso, preferi esconder de vocês.
— Esconder que você tem se transformado num monstro meio-vampiro, meio-lobisomem por anos? É isso, Enzo? — Eu estava irada. — Escondendo um segredo terrível como esse da mulher que você pediu em casamento e que diz amar?
Eu me levantei da cama e saí em busca do meu robe de seda que estava pousado sobre uma poltrona, no canto esquerdo do quarto. Raramente eu usava a janela com acesso à sacada do castelo, mas naquele dia, eu o fiz. Me debrucei na amurada de pedra rústica a um metro e meio do piso e fiquei a encarar os campos relvados ao redor da propriedade. Uma brisa fresca soprava em minha direção e tudo que a vista alcançava brilhava num tom prateado pela luz da lua. Enzo se aproximou em seguida sem se preocupar em vestir uma roupa. Senti seu cheiro antes que ele me tocasse o ombro.
— Me desculpe, amor — disse com voz amena —, depois que fiquei quase dois anos sem ter febre, achei que tinha sido só um susto, que eu não havia sido contaminado por aquela fera. Por isso não contei nada depois de Honduras.
— Você está colocando em risco a vida da minha filha. Da menina que você diz amar tanto.
— Eu sou completamente maluco pela Alex, você sabe disso. Jamais colocaria a vida dela em risco — disse-me ele subindo um pouco o tom —, eu não contei sobre a mordida para que você não se preocupasse, para que não me afastasse da Alex.
— E o que acha que quero fazer agora?
Aquela discussão causou um desconforto entre nós dois bem como uma rusga em nossa confiança mútua. Depois daquele dia, Enzo passou uma temporada em Genova sem voltar para casa e ficou na companhia do amigo Harone, a sua esposa e o filho do casal que ela carregava na barriga. Ele não havia confiado a mim o seu grande segredo, algo de extrema importância que mudaria completamente a nossa relação e aquilo me criava dúvidas se eu deveria realmente aceitá-lo de volta. Todas as noites em que ele estivera fora, eu brincava com Alex e as suas bonecas no quarto que ela havia empilhado de brinquedos e me cortava o coração vê-la dizer que estava com saudades do pai, perguntando se ele iria demorar. Para não estender o assunto, eu inventava mil desculpas para mudar o foco da conversa, mas logo aqueles olhos piedosos e brilhantes voltavam a me encarar perguntando sobre Enzo novamente, me deixando ainda mais culpada. Eu não podia simplesmente afastar da sua vida, daquela maneira tão brusca, o único homem que a minha filha conhecia como pai e então, no outono seguinte, eu o aceitei de volta.
Enzo retornou ainda mais amoroso com a sua bambina de bochechas coradas e o seu afeto para com Alex me provou de uma vez por todas o quanto ele era incapaz de machucá-la racionalmente. Os dois passaram tardes inteiras juntos no bosque, no jardim frontal — agora meio abandonado após a demissão de Pierre — e cuidando dos cavalos no estábulo. A menina tinha a sua própria égua a quem ela dera o nome de Ragazza e adorava sair para cavalgar com o pai, montada em seu animal de pelos alvos.
Numa daquelas muitas tardes em que passavam o tempo juntos, Alex entrou em casa esbaforida e enlameada dos pés à cabeça chamando por mim à porta:
— Mama! Mama! Venha correndo. Papa caiu do cavalo!
O sol estava prestes a se pôr no Oeste quando desci as escadas do andar superior às pressas. Senti o seu calor queimar a minha pele logo que me expus do lado de fora, mesmo vestindo uma calça, botas e uma blusa de manga comprida. Usei toda a minha força para carregar Enzo para dentro e o deitei no sofá da sala de estar enlameando também o seu tecido nobre.
— Enzo? Fale comigo. O que aconteceu?
Danielle e Remy olhavam assustados as queimaduras que haviam surgido em meu rosto e em minhas mãos ao mais leve toque do calor do ocaso, mas eu os ignorei vendo o meu marido recuperar lentamente a consciência.
— V-Vai começar, meu amor. T-Tenho que ir.
Aquele fenômeno era muito raro de acontecer, mas naquele outono, um eclipse lunar total estava prestes a mudar a estrutura biológica de Enzo, transformando-o numa criatura enraivecida conhecida nas lendas romenas como vircolac.
Em minha juventude, eu ouvia histórias infantis sobre um monstro meio-homem e meio-lobo que tentava devorar a lua no céu procurando exterminar com isso a vida no planeta Terra. Mais do que um mero lobisomem, um vircolac tinha uma vasta gama de habilidades que o fazia superior em praticamente tudo a um vampiro, embora ambos se alimentassem de sangue e possuíssem fraquezas como o alho. Ele era mais forte, mais ágil e mais sagaz que os strigois, e às vezes, nem ataques físicos eram capazes de aniquilá-lo, já que ele era capaz de projetar sua essência de forma astral tornando-se etéreo. Se Enzo havia adquirido todas aquelas características, nem eu seria capaz de vencê-lo, o que me fez levá-lo para bem longe do castelo naquela noite antes que o eclipse começasse.
Alex estava aos berros na sacada do seu quarto, segura por Danielle, quando comecei a caminhar até o coração do bosque ao lado de Enzo. Eu tinha dado ordens expressas para que a babá não tirasse os olhos em nenhum momento de cima da menina e nem abrisse as portas ou as janelas até que eu retornasse. Remy tinha me trazido correntes de aço enroladas em dois aros como eu havia lhe pedido e o homem magro de bigode fino no rosto circunspecto me ouviu dizer, paciente:
— Volte para o interior do castelo e tranque todas as entradas e saídas. Tome conta de Alex e de Danielle até eu voltar.
A noite começava a cair paulatina enquanto eu e Enzo nos embrenhávamos na mata escura do bosque, a alguns quilômetros do château. A ideia de amarrá-lo com firmeza junto a uma árvore de copa larga e grossa antes de sua metamorfose tinha sido dele mesmo e quanto mais a lua ganhava o céu, mais debilitado ele parecia ficar sob os seus efeitos nocivos.
— Acorrente o meu tórax e os meus braços de modo que eu não possa me movimentar ou mesmo me debater. Era assim que os Batedores de Ferro faziam comigo durante a guerra com o intuito de impedir que eu escapasse em minha forma de lobo.
Assim como ele havia me instruído, eu havia acorrentado Enzo de joelhos junto a árvore, deixando pouca sobra entre o seu corpo forte e os elos de metal. Os seus braços estavam amarrados de tal maneira que ele não pudesse esticar as mãos para alcançar um alvo a meio metro dele e tão logo fiz como meu marido queria, me afastei, ficando vigilante a três metros dali, sobre uma pedra pontiaguda que emergia do chão repleto de heras venenosas e outras ervas-daninhas.
A lua já brilhava intensa sobre as nossas cabeças quando ela passou a adquirir um tom cada vez mais avermelhado. Um breu quase completo tomava a floresta e a fauna noturna estrilava aguda como que incomodada com a nossa presença. Uma variação muito grande de odores assaltava o meu olfato aguçado enquanto eu permanecia em alerta sobre a pedra. Era uma mistura do cheiro da relva, das flores silvestres e do orvalho. Os meus ouvidos captavam o mais leve farfalhar das asas e penas dos pássaros sobre as árvores. Foi naquele momento que começou a transformação. Uma sombra monumental cobria lentamente a lua vermelha no céu, e enxergando claro como o dia mais a frente, passei a assistir o seu corpo começar a se modificar ante os meus olhos atentos.
— Oh, não! Enzo!
Sua cabeça parecia que estava se expandindo à medida que o tórax inchava e produzia sons como o de ossos se partindo. Mesmo acorrentados, os membros agora dobravam de tamanho, ganhando pelos espessos, musculatura avantajada e garras pontiagudas nas extremidades de mãos e pés. Um focinho canino havia assumido o lugar onde antes estava o nariz e a boca do meu marido. Dentes afiados e grandes saltavam da sua mandíbula enquanto uma gosma esbranquiçada escorria até o chão do que antes eram lábios humanos. O monstro de mais de dois metros de altura estava agora sendo enforcado pelos elos resistentes da corrente e procurava se debater para se libertar, grunhindo feito um lobo enjaulado. Eu jamais havia presenciado um espetáculo tão assustador quanto aquele, mesmo já tendo presenciado os piores horrores que a guerra humana tinha a oferecer. Eu estava mortificada em ver o belo homem que eu conhecia há quase quinze anos transformado agora em nada mais do que uma besta irracional, e em meu âmago, eu sabia que não podia mais deixá-lo por perto daquela maneira.
Não posso arriscar a segurança da minha filha inocente. Eu preciso acabar com isso, pensei em um momento dos longos sete minutos que duraram aquele eclipse e a transformação de Marco Polo.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top