Capítulo 24 - O Château de Avignon
O SUICÍDIO de Adolf Hitler e a rendição dos japoneses aos Aliados havia encerrado a Segunda Guerra Mundial em 1945, mas as consequências daquele conflito ainda seriam sentidas por várias gerações que nasceriam a partir dali. O mundo nunca mais seria o mesmo depois de tanta dor e sofrimento, o que na época, me fez tomar a decisão mais acertada: Me isolar da violência que eu parecia atrair desde que havia me tornado uma vampira. Assim que a guerra acabou, eu me mudei para a França.
Vaucluse era uma região localizada no Sudeste francês cujas montanhas ocupavam metade da sua região. Aproximadamente a duzentos quilômetros de distância de Lyon, o distrito e a sua capital Avignon abrigavam na década de 40 museus, teatros e até mosteiros, tendo servido como sede papal da Igreja Católica no século XIV. Me valendo do lucro paulatino que a minha mineradora russa agora rendia, dados os danos causados pela Segunda Guerra na economia — e também pelo sistema socialista onde a empresa estava fixada —, eu comprei um castelo próximo ao Mont Ventoux, o que permitia uma vista magnífica de Avignon lá de cima. A região era repleta de penhascos, mas também era rica em vegetação com uma variedade muito grande de plantas em sua encosta. Era o lugar perfeito para se criar uma filha.
O meu organismo não era mais capaz de me fazer gerar uma criança em meu ventre desde que Dumitri havia me inoculado com a infecção vampírica que me tornava jovem para sempre, mas que ao mesmo tempo havia matado metade do ser humano que eu era. O meu sistema reprodutor estava tão seco quanto inválido e nenhum poder no mundo era capaz de, pelos meios naturais, me tornar mãe novamente. Eu havia sentido uma vida crescendo dentro de mim uma vez quando ainda era somente Alina da Valáquia, mas aquilo fazia parte de um passado muito distante que aos poucos estava se apagando em minha memória. Ser uma vampira também me tornava, em boa parte do meu tempo, indiferente aos sentimentos humanos, fria, antipática. Raras vezes eu sentia o meu próprio corpo reagir a qualquer tipo de sofrimento alheio, preocupação ou mesmo alegria. Naqueles quase cem anos, o meu lado humano tinha reagido somente em raríssimos casos pela perda de um amigo — como Alejandro e Gavril — ou por amor, como quando Costel partiu o meu coração inúmeras vezes. Depois dos horrores da guerra, no entanto, percebi que estava bem mais fragilizada do que já estivera em mais de cinquenta anos e algo nos inocentes olhos de Alexandra mexeu comigo.
Cinco anos após a guerra, eu decidi que era hora de estabelecer uma família, por isso, aceitei o pedido de casamento de Enzo Di Grassi. Fizemos uma cerimônia simples para poucos convidados em Veneza, na cidade onde ele havia nascido e crescido, e após os ritos costumeiros no cartório civil — até porque não faria sentido nos casarmos dentro de uma igreja —, nós nos mudamos de vez para Vaucluse.
Eu estava extremamente exausta da vida agitada que estava levando, seja como empresária na União Soviética ou como agente operativa da Teia, e senti que aquela pausa me seria bem-vinda. Minha perspectiva de vida havia se alterado completamente depois que eu havia decidido criar o bebê órfão que havíamos resgatado em Schwarzwald, pouco após as ações que praticamente destruíram a Teia, e a partir de então, eu estava decidida a dedicar a minha vida inteira à educação de Alexandra, o nome com a qual eu registrei a menina.
— Alexandra Di Grassi soa bem, não é mesmo? — disse-me Enzo à época, encantado com os belos azuis que quella bambina ostentava.
Agora que eu queria ser uma mãe exemplar para Alexandra, eu precisava de empregados para me ajudar a cuidar da menina dentro do castelo enorme que havia adquirido no monte francês, e então, fiz uma sessão de recrutamento para escolher os melhores disponíveis na região.
Cécille era uma experiente governanta austríaca que já havia trabalhado em palácios europeus servindo condes e príncipes, e ela foi a primeira a me chamar a atenção com a sua educação refinada, o sotaque vienense, as roupas asseadas e os cabelos presos impecavelmente num coque. Logo depois, vieram Danielle, a babá de vinte e três anos de olhos grandes e castanhos que cuidaria de Alex em minha ausência e Maurice, o chef de cozinha alto e magro de Nice.
Também tinha Remy, o ajudante-geral — cuja discrição me fazia lembrar de Nikolai, meu serviçal búlgaro de Kainski — e Pierre, que ficaria responsável pelo jardim e pelos estábulos. Ele agora era um senhor aposentado ostentando fartas madeixas grisalhas, mas logo que soube que ainda estava na ativa e necessitando de emprego, tratei de contratar o meu bom Fabrice para continuar como o motorista oficial da família Di Grassi. Enzo sentia falta de ter alguém para conversar em seu próprio idioma nos alpes franceses e o siciliano lhe supriu essa necessidade.
Os primeiros cinco anos em Vaucluse foram muito tranquilos, e por muito tempo, tudo com que tinha que me preocupar era com Alex, que estava crescendo linda a olhos vistos. Ela agora tinha cachos dourados volumosos caindo do alto da cabeça e os seus olhos irradiavam de uma alegria contagiante. Adorava brincar de pega-pega com a babá francesa e quase extenuava a moça de tanto correr pelo quintal nos dias ensolarados. Sua risada gostosa podia ser ouvida de qualquer canto do castelo de quase meio quilômetro de extensão e toda aquela sua felicidade infantil me inspirava. A beleza da mãe francesa — e muito provavelmente também do pai alemão — tinha sido reproduzida em seu rosto simétrico e rosado com exatidão e eu me pegava sorrindo sozinha a olhá-la brincando no quintal sob o sol, acompanhando tudo de dentro do castelo através das janelas.
Nem Alex nem os empregados — exceto Fabrice — sabiam que eu não saía de casa durante o dia porque era uma vampira e tratei de manter aquele mistério em torno dos meus hábitos noturnos. Para todos os efeitos, eu sofria de uma rara enfermidade dermatológica que me impedia de tomar sol, e enquanto eu cuidava das questões da Rassvet trancada em meu escritório sem janelas durante o dia, era Danielle e Pierre quem cuidavam da minha filha do lado de fora. Isso quando o próprio Enzo não se encarregava de levá-la para passear de cavalo no bosque até o fim da tarde, se divertindo horrores na companhia da pequena.
No quinto ano em Vaucluse, um telefonema em meu escritório me pegou de surpresa e ouvi minha secretária em Moscou começar a dizer, esbaforida:
— Senhora Alexia? Um grupo ucraniano tem comprado ações da Rassvet nos principais mercados econômicos da Europa nos últimos seis meses e dizem que ele quer assumir a empresa já no próximo semestre. Não sabemos mais o que fazer.
A Rassvet havia se tornado uma empresa de capital aberto ainda na década de 30, quando a recessão aumentou em todo o mundo obrigando os grandes grupos a fazerem restruturações. O acúmulo de dívidas no início da década seguinte também havia me obrigado a permitir que ações fossem liberadas nas principais Bolsas de Valores e aquilo ajudou a minha empresa a se manter ativa. Agora que a economia voltava a se recuperar lentamente, eu planejava abrir filiais na América, mas aquele avanço ferino do tal grupo ucraniano ameaçava os meus planos de expansão. Eu precisava salvar a minha principal fonte de renda e não podia esperar mais.
Era outono na França quando me despedi de Alex no portão do castelo, deixando-a sob os cuidados de Cécille e Danielle.
— A mamãe promete voltar logo, Alex. É só uma viagem curta até Genova. Em alguns dias papai e eu estaremos de volta.
A menina era extremamente apegada a mim e a Enzo, e enquanto nos despedíamos dela caminhando até o Alfa Romeo 1900 prata estacionado em frente ao portão, lágrimas rolavam dos seus olhinhos.
— O papai promete trazer na volta aquele chocolate suíço que você adora, mia piccola — disse Enzo, já sentado no banco do carona ao lado de Fabrice, tentando deixar Alex menos triste com a nossa partida.
— Te amo, papa! — disse a pequena com a voz embargada no colo de Danielle, acenando para ele no alto da escada. Era a primeira vez que me separava dela por um período tão longo, e mais um pouco, lágrimas de sangue escorreriam também dos meus olhos.
A nossa viagem até Genova era com o intuito de nos encontrarmos com Miguel Harone, um velho conhecido de Enzo dos tempos de guerra. O espanhol era formado em administração de empresas antes mesmo de se aventurar a caçar nazistas ao lado dos Batedores de Ferro e ele foi a primeira opção do meu marido quando mencionei os problemas que estava tendo com a Rassvet. Harone havia aberto uma empresa de consultoria administrativa na Itália desde o fim da guerra e estava lucrando bastante cuidando de casos como o meu. Ele estava disposto a viajar comigo para Moscou a fim de estabilizar a compra e a venda de ações da minha mineradora e sugeriu um escritório de advocacia local para investigar o tal grupo ucraniano que estava querendo absorver os meus negócios extrativistas.
— Os donos são conhecidos meus dos tempos de faculdade. Nosso campus era bem perto um do outro. Eles têm um escritório aqui em Genova, mas em breve, pretendem expandir para outros lugares do mundo. Pode confiar.
Harone me deu o cartão do tal escritório de advocacia e nele estava impresso CASAVETTE & MONTANARO em letras vermelhas garrafais. Valia a pena tentar.
A briga jurídica pela retenção dos meus 51% comoacionista majoritária da Rassvet foi longa e extenuante, mas em junho de 1951,eu perdi o controle principal da empresa para o grupo ucraniano conhecidoapenas como Novyy Kordon. Aquilo meobrigou a diminuir os gastos no castelo de Vaucluse e reduzir o efetivo deempregados do lugar. Embora ainda detivesse parte das ações e ainda pudesse serouvida como conselheira na tomada de ações, eles não dependiam mais de mim paradar a palavra final. Enzo passou a trabalhar com Harone em seu escritório naItália procurando reaver o meu controle sobre a Rassvet, mas em outubro daqueleano a empresa mudou de nome, invalidando praticamente tudo que ela haviarepresentado sob o meu comando nas últimas décadas. Eu tinha perdido a minhaprincipal fonte de lucro.
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