Capítulo 23 - Lutando pela vida
EU NÃO SABIA NA ÉPOCA, mas quando cheguei à fronteira perto da Floresta Negra, um destacamento das tropas do general francês Charles de Gaulle estava em conflito armado contra insurgentes alemães que brigavam para manter o seu território. Eu fui apanhada no calor da batalha. Um tanque Panzer havia encurralado soldados franceses e belgas num bairro pobre da cidade alemã enquanto um Tiger desfilava barulhento pelas ruas disparando da sua base a esmo contra casas e prédios da já devastada vizinhança.
Por mais forte que fosse, eu sabia que ainda não estava em condições de enfrentar dois tanques de guerra praticamente indestrutíveis, e naquele momento, percebi que aqueles soldados aliados estariam por conta própria. Quando um disparo atingiu a marquise de um prédio acima da minha cabeça, fui obrigada a me esconder dos destroços que despencaram pesados e ruidosos na calçada onde eu andava. Ainda era o meio da tarde daquele dia e mesmo com o céu encoberto por nuvens espessas, o sol por trás delas ainda estava me enfraquecendo, bem como queimando a minha pele. O meu plano era esperar no interior daquele prédio até que a noite caísse. Se até lá aqueles soldados alemães ainda estivessem na rua, eu mesma daria cabo deles.
Meu plano foi por água abaixo quando, do térreo, eu ouvi o choro de uma criança vindo do segundo andar. O lamento era estridente e agudo, o que não demoraria a chamar a atenção dos soldados que marchavam a poucos metros dali acompanhando o tanque Tiger. O prédio residencial era decadente e frágil, e conforme eu subia as escadas, sentia os degraus tremularem embaixo de meus pés, prontos a ruírem. Eu já ouvia os gritos dos alemães do lado de fora e era quase certo que eles também tinham ouvido o choro do bebê. A entrada do lugar agora estava obstruída pelos entulhos da marquise que tinha sido derrubada pelo tiro do tanque, mas era uma questão de tempo até que os homens entrassem.
O segundo andar possuía quatro apartamentos divididos em dois blocos. Eu podia ouvir o bebê resmungando ao final do corredor enquanto uma mão feminina procurava abafar seu choro. Elas tinham o mesmo cheiro. Eram mãe e filha. Haviam pessoas mortas empilhadas nos outros três quartos, e pelo odor que exalava de dentro, dava para imaginar que estavam ali há vários dias. Do corredor, eu ouvia a mãe cantar uma antiga canção de ninar francesa tentando forçar a criança a dormir, mas ela não parava de chorar faminta. A mulher também estava aos prantos e quando abri a porta, ela desesperou-se.
— Ne tue pas mon bébé! S'il vous plaît! S'IL VOUS PLAÎT!
Ela estava implorando para que eu não matasse a menina em seu colo e eu fui rápida a encurralá-la no canto da parede colocando a minha mão sobre sua boca. Sussurrei:
— Cale-se! Eles vão nos ouvir!
Os homens lá embaixo já tinham detonado a entrada com uma granada e começavam a ganhar espaço no saguão do térreo. Era uma questão de tempo até que estivessem no segundo andar para completar o serviço que tinham começado nos apartamentos ao lado. Aquele era um bairro ocupado por algumas famílias francesas ainda em território alemão e era bem claro que os soldados do Eixo não estavam felizes em abrigar descendentes dos seus inimigos de guerra em seu país.
Aquela mulher de cabelos escuros e belíssimos olhos azuis que chorava copiosamente à minha frente tinha se fingido de morta por dois dias com a sua bebê, e somente por isso ela tinha escapado da fúria dos soldados que, àquela altura da guerra, estavam atirando até em cachorro vira-latas na rua. Ela era francesa como os seus vizinhos e a bebê loira em seu colo era fruto do seu casamento com um metalúrgico alemão que estava servindo ao exército na Hungria quando havia morrido há cinco meses. Ela me contou tudo aquilo num idioma que ia do alemão ao francês.
— Não faça barulho. Eu vou distrair os soldados para tirar você e a bebê daqui.
Eu sabia bem que não estava em condições de entrar em outro combate após ser quase morta por quatro balas de prata que ainda me custavam dores intensas pelo corpo, mas alcancei as escadas com cautela, pronta a bater de frente com os soldados. Quando passei em frente à janela de vidros foscos ao final do corredor que dava acesso às escadas, acabei chamando a atenção do piloto do tanque do lado de fora e ele disparou.
O projétil explodiu a parede lateral do corredor e senti o meu corpo ser projetado com violência para trás. A luz do dia começou a invadir o prédio que até então estava na penumbra pela falta de energia elétrica e a minha pele voltou a queimar. Eu estava caída embaixo dos destroços da parede e contabilizava pelo menos três costelas quebradas, além de um ferimento na base do rim direito. Havia um fragmento do tamanho da lâmina de uma catana japonesa fincado dentro de mim, mas eu tive que reagir quando dois dos soldados surgiram ao pé da escada, já dando ordens de rendição. Eu sabia que não podia contar com a benevolência dos alemães, por isso, mesmo em frangalhos, me ergui, arranquei o espeto metálico em meu rim e o arremessei com toda força feito um dardo em direção à cabeça do soldado na ponta.
— Töte ihn! TÖTE IHN!
Vendo a cabeça do colega ser partida ao meio pelo fragmento de ferro, mais dois soldados vieram em seguida disparando suas barulhentas MP40 contra mim. Eu estava mais lenta do que imaginava e fui alvejada antes que pudesse me esquivar. Caída mais uma vez, ouvi o bebê voltar a chorar ao fundo do corredor e aquilo me encheu de adrenalina. Os dois primeiros soldados com as submetralhadoras em punho já tinham passado por mim em busca da fonte do choro infantil e eu só consegui deter o terceiro, agarrando-o pelo tornozelo e virando-o para trás. Eu tinha fraturado o pé do homem de maneira irreversível e enquanto ele gritava de dor, o seu dedo acionou o gatilho. Dei-lhe um soco para deter a sua ação, e sem alternativa, ainda largada no chão, eu fuzilei os seus companheiros que já se aproximavam da entrada do apartamento onde a francesa se escondia. Eu nunca tinha usado uma arma de fogo antes, mas a sensação de ter aquele monstro de ferro em meus braços cuspindo chumbo e fazendo explodir os meus inimigos era de certa maneira satisfatória. A parede ao fundo do corredor estava agora toda impregnada de sangue, vísceras e miolos e eu me arrastei até o apartamento mandando que a mulher agisse:
— Não temos muito tempo. Precisamos fugir.
Ela estava me olhando aterrorizada do chão, me vendo diante da porta toda ensanguentada. A perfuração em meu rim estava encharcando a blusa emprestada pela filha de Erich. Usando os meus sentidos aguçados, consegui ouvir o alemão dentro do tanque dizendo que aguardava novo comando para voltar a atirar lá embaixo da rua. Mais seis homens entravam no prédio pelo saguão munidos de metralhadoras e explosivos. Eu mal estava conseguindo parar em pé com as costelas quebradas e um rim perfurado, além das queimaduras na pele. Eu não estava me aguentando sozinha e agora tinha a tiracolo uma mulher assustada com um bebê indefeso de dois meses para proteger.
No que eu estou pensando? Eu não vou conseguir passar por esses soldados e proteger essa mulher ao mesmo tempo, foi o que imaginei quando atingimos o primeiro andar. Conseguia ouvir o engatilhar de armas na metade das escadas, e dali, já sentia o fedor dos alemães. De súbito, empurrei a francesa para dentro de um dos quatro apartamentos daquele corredor.
— Se protege.
O primeiro soldado deu as caras logo em seguida e ele começou a atirar para todos os lados tentando me acertar. Com toda a força que tinha na perna, eu o chutei e o pontapé afundou a sua caixa torácica enquanto ele continuava disparando a sua arma a esmo. O alemão rolou escada abaixo e derrubou os colegas que vinham em seguida. Ao pé do último degrau, um deles se recuperou a tempo e me fulminou com uma rajada que me atingiu bem na virilha.
Eu caí desequilibrada na escada e o homem se precipitou sobre mim, procurando explodir a minha cabeça com a sua metralhadora infernal. A minha audição sensível foi prejudicada com aquele barulho ensurdecedor ecoando em espaço tão restrito e tão perto de meu rosto. Me guiei pelo olfato para agarrar o cano da arma e o empurrar para o lado, direcionando os tiros para a parede. A cuspidora de chumbo engasgou quando o pente de munição se esvaziou e eu a usei como uma lança, empalando o soldado com o cano.
Sem força nas pernas, me joguei sobre os soldados feridos lá embaixo e os matei mesmo caída, batendo suas cabeças contra o piso das escadas. A fragilidade dos degraus fez com que o chão cedesse sob nós três e despencamos para o térreo causando um estrondo que estremeceu o restante do prédio envelhecido. Extremamente ferida, soterrada em meio aos restos da escada, eu agora mal conseguia me manter consciente. Os outros três soldados que haviam invadido o prédio já miravam as suas armas contra a minha cabeça a quatro metros de mim. Os meus braços tremiam enquanto eu tentava me soerguer e mesmo dolorida, cuspindo sangue, esbravejei:
— Q-Quem é o próximo?
Quando o som de tiros ecoou mais uma vez em meus ouvidos, eu achei que tinha terminado. Àquela distância, eu não tinha como me esquivar e dado o meu atual estado físico, mesmo se eles não detonassem o meu corpo com os seus malditos explosivos, eu sangraria até a morte. Quando abri os meus olhos novamente, não era eu quem tinha sido atingida. Os três alemães jaziam fuzilados caídos de frente no chão e um soldado de ombros largos, barba por fazer e capacete na cabeça adentrava o lugar.
— Alexia? É você mesma?
O soldado italiano Enzo Di Grassi, mais conhecido com o pseudônimo de "Marco Polo", havia desertado ainda nos primeiros meses da Segunda Guerra Mundial e fazia parte agora de um esquadrão de elite destinado a exterminar soldados nazistas. Quando ele percebeu que estava sendo usado como massa de manobra do governo fascista de Benito Mussolini e apontando a sua arma contra aqueles que, na verdade, ele queria defender, Di Grassi decidiu pular fora do barco, levando consigo três outros colegas do batalhão italiano.
Os quatro se aliaram a dois franceses e um espanhol que igualmente se sentiam insatisfeitos com os rumos que a grande guerra havia tomado, e a partir de então, começaram a chamar a si mesmos com a infame alcunha de "Os Batedores de Ferro". Os Batedores vinham combatendo nazistas pela Europa da mesma forma que a Teia combatia ocultistas malignos pelo mundo e aquilo fez com que Marco Polo se sentisse em casa ao longo daqueles últimos anos, ao lado dos seus companheiros.
Após render o piloto do tanque Tiger estacionado no meio da rua de Schwartzwald e ajudar os combatentes franceses e belgas com o Panzer a alguns quilômetros dali, Marco e seus rapazes uniram esforços para resgatar a moça francesa que tinha ficado no andar de cima protegendo o seu bebê. Eu ainda estava muito enfraquecida. Sentia o cheiro de sangue nos corpos daqueles homens mortos no saguão ao mesmo tempo que a minha boca enchia-se de água por conta disso quando a voz de Marco me chamou a atenção do alto do rombo que havia se formado pelo desabamento da escada. Ele trazia em seus braços enormes a pequena criança enrolada em uma manta suja de sangue, e naquele momento, eu esperei o pior.
— A francesa deve ter sido apanhada em meio ao tiroteio enquanto você lutava na escada. Ela está morta.
Eu tentei me erguer sentindo o meio das minhas pernas latejar com os tiros que havia levado na região. Um dos rapazes dos Batedores me ajudou a ficar em pé, e então, perguntei já sentindo a voz ficar embargada:
— A criança... ela está...
Um choro irrompeu naquele momento entre as dobras da manta e Marco falou, abrindo um sorriso.
— Ela está bem. Até mijou em mim!
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