Capítulo 11 - De volta dos mortos

COMEÇOU COM um zumbido. Depois pareciam sussurros ouvidos através de uma parede. Então era o tamborilar de dois corações. Um jovem e vigoroso, o outro errático e irregular. O ruído de martelo e cinzel sobre pedra sólida ecoava no que parecia ser uma câmara oca. Havia outros sussurros mais distantes, indefiníveis. Podiam ser dez ou vinte. O som de máquinas mecânicas fazia estremecer as paredes externas. Os sussurros agora eram vozes. Firmes, nítidas. Eram dois. Falavam num idioma estrangeiro anasalado. Me parecia inglês.

— Ei, Peter! Traga aqui a lanterna. Acho que tem algo dentro dessa câmara.

Estavam perto o suficiente para que eu sentisse o odor do suor em suas peles. O velho cheirava a colônia vagabunda de alfazema. O mais jovem tinha cheiro de leite estragado dentro das calças e as suas mãos tremiam segurando um instrumento pontiagudo de metal.

— Parece um... um...

— Um cadáver, Peter. Encontramos um cadáver aqui.

Sangue. Um deles estava ferido. Um corte feito por pedra afiada na altura do tornozelo. As suas vozes ecoavam na câmara. Uma abertura de um metro e vinte de largura tinha sido feita na parede. Dava para ouvir pássaros do lado mais externo. Árvores agitadas sob vento forte. Era uma floresta.

— Chame a equipe do Herb aqui. Temos que remover esse corpo dessa câmara.

O batimento cardíaco mais jovem então se afastou e o velho fedendo a alfazema se aproximou mais. Devia ter uns cinquenta ou sessenta anos... era difícil saber. Os seus pulmões pareciam comprometidos, a sua respiração era ofegante. Movia-se devagar, com movimentos calculados. Puxava o fôlego sempre que falava, aumentando a sua pulsação. Seu hálito era cáustico, a barba e as roupas amarfanhadas cheiravam a tabaco. Era fumante.

— Quem terá sido você, meu amigo? Por que foi guardado tão secretamente nessa câmara de pedra?

Eu conseguia entender romeno, russo, espanhol e algo de português, mas inglês estava fora da minha alçada na época. Não conseguia identificar o que ele dizia. Tudo que me restava eram os sons ao meu redor e a percepção de espaço que eles me traziam. Estava impossibilitada de me mover ou de sequer abrir os meus olhos. Sentia como se o meu corpo estivesse preso dentro de uma casca petrificada, uma espécie de casulo.

Algum tempo depois, eles me removeram do espaço que parecia ter uns dois metros quadrados e me expuseram à luz. Luz do sol.

¡Llévalo de vuelta adentro!

Meu corpo reagiu instantaneamente à exposição ao sol e começou a queimar. Os homens ao meu redor carregaram-me de volta para o interior da câmara, e lá dentro, as suas vozes voltaram a ecoar gélidas no espaço, a maioria falando num idioma indecifrável. Embora efêmero, meu contato com o sol tinha derretido parte da camada seca que recobria a minha pele dilacerada e, automaticamente, comecei a ter sensibilidade à dor. A equipe ficou o que se pareciam horas discutindo sobre o que tinham visto do lado de fora após a combustão do meu corpo e os que falavam espanhol diziam coisas sobre túmulos, câmaras faraônicas e pirâmides. Uma dupla mais afastada do grupo principal, do lado de fora, sussurrava entre eles procurando evitar que os demais ouvissem. Era algo sobre uma bruxa da floresta que já tinha sido vista na região entoando cânticos demoníacos.

Dicen que ella ha vivido en el bosque durante años, mucho antes de que descubrieran esta construcción Inca.

Os sons da noite já invadiam a câmara quando voltei a sentir a pulsação errática do velho fumante e do seu jovem ajudante. O restante da equipe, que parecia ser de exploradores, estava fora do alcance da minha audição. Os dois tinham entrado sozinhos querendo saber um pouco mais sobre o seu precioso achado arqueológico. Agora eu já conseguia sentir o toque em minha pele castigada e os dois passaram a varrer a poeira e as teias de aranha de cima de mim com um tipo de pincel de cerdas duras. Chegavam com o rosto mais perto do meu para analisar melhor. Dava para sentir a sua respiração. Um deles tentou abrir o que tinha restado das minhas pálpebras. Não conseguiu. Algo como um antigo desejo, uma sede que precisava ser saciada, começou a me tomar enquanto ouvia no corpo do jovem Peter a sua circulação sanguínea. Fluida feito a água num rio. Calma e serena. O ferimento em seu tornozelo agora estava coberto, mas eu ainda conseguia sentir o seu cheiro chegando ao meu olfato como que trazido por uma brisa fresca.

— Oh, meu Deus! Peter!

Eu não sabia se conseguiria até avançar em sua jugular. Cravei-lhe as presas na pele laminada de suor e comecei a me alimentar do seu sangue. O meu corpo mal respondia aos meus comandos, mas tinha reagido o suficiente para que eu alcançasse Peter. Em desespero, o garoto tentou afastar a minha cabeça segurando firme e empurrando, mas foi perdendo a força à medida que o seu sangue abandonava o seu corpo, vindo para o meu.

Senti um êxtase enquanto a vida parecia soprada de volta para dentro de mim ao mesmo tempo que o sangue quente do rapaz me queimava a garganta, abrindo um canal que parecia fechado há muito tempo. Suguei-lhe inteiro. Não sobrara uma gota do seu fluido primário nas veias. Larguei o seu cadáver logo que me senti suficientemente saciada, mas os meus músculos e ossos ainda pareciam petrificados. Qualquer movimento mais brusco me causava dor. Demorei a notar que o velho tinha fugido da câmara enquanto eu me alimentava do seu assistente. Concentrei os meus sentidos e captei os seus passos lentos indo em direção à floresta. A falta de calcificação num dos joelhos o impedia de correr mais rápido. Eu só precisava deixar que o sangue de Peter me revigorasse um pouco mais e eu já seria capaz de segui-lo. Precisava de mais alimento. Precisava de mais uma vítima.

Quando o restante da equipe de exploradores chegou ao local na manhã seguinte, eu já estava bem longe escondida numa caverna que encontrei no coração da floresta. Tinha desaparecido com os corpos dos dois arqueólogos que mais tarde descobri se tratarem de cidadãos norte-americanos ao revistar os seus bolsos e pertences. O documento na carteira do jovem Peter dizia que ele tinha vinte e um anos, mas a sua data de nascimento não parecia correta. O ano estava registrado como 1891, o que me colocava num futuro muito afastado da época em que eu me lembrava de estar. Minha memória estava confusa para que eu sequer soubesse o meu nome. Tinha dificuldades para lembrar o último lugar em que estivera e não fazia ideia de onde estava.

O que aconteceu comigo? Por que o meu corpo está tão devastado?

A primeira vez que vi o meu rosto refletido na água de um rio que cortava a floresta, eu me assustei. Os meus olhos ainda não conseguiam focar objetos muito distantes, e diferente da minha audição e do meu olfato que pareciam perfeitos, os demais sentidos estavam bem fragilizados. Toda a minha pele tinha sido queimada e apresentava agora uma camada preta e espessa em sua superfície. Não havia cabelos em minha cabeça e o meu nariz tinha sido reduzido a duas cavidades nasais por onde eu conseguia sentir odores. Tinha feito um esforço descomunal para abrir a minha boca e usar os dentes nos arqueólogos, e as minhas pálpebras só tinham se aberto muitas horas depois de consumir o sangue dos dois. Tocando meus braços e pernas com as mãos, era difícil sentir a textura e tudo que restara do meu tato eu usava para apanhar objetos e perceber a sua forma. Tinha pouca sensibilidade.

Quando a equipe de escavadores retornou ao monumento onde o meu corpo tinha sido descoberto, eu passei a espreitá-los nas sombras. Ainda não podia confiar totalmente em minha visão noturna, mas com os ouvidos bem apurados, consegui descobrir que estávamos no Peru e que a estrutura semelhante a uma pirâmide onde eles se espalhavam era uma espécie de achado arqueológico recente que tinha se mantido oculto no meio da floresta por séculos, desde a queda do Império Inca. Mesmo os colonizadores espanhóis jamais tinham se deparado com tal riqueza histórica e aqueles homens faziam parte de um grupo estadunidense que procurava vestígios dos povos incas na região que eles chamavam de Machu-Picchu.

Embora tivessem dado pela falta de Henry — o velho cheirando alfazema — e Peter, os demais homens não pareciam muito preocupados em encontrá-los, dando mais atenção em localizar outros corpos mumificados dentro da câmara de pedra e recuperar o meu, já que eles julgavam que tinha sido roubado.

Já estava próximo da madrugada quando ataquei outro membro da equipe norte-americana arrastando-o habilmente para a floresta antes que me vissem. O processo de regeneração de meu corpo estava lento e eu precisava de mais alimento. O homem de pele preta nem teve tempo de reagir e eu o matei enquanto os seus amigos cortavam a mata, abrindo caminho para a passagem de um tipo de carruagem movida a um motor à combustão. Tinha a noção exata de que nunca tinha visto nenhuma máquina como aquela antes, o que me causou uma sensação ainda maior de deslocamento temporal. Enquanto o sangue do americano agia em meu corpo restituindo vagarosamente as minhas forças, pus-me a seguir os veículos que chamavam de "automóvel", embora eles se deslocassem muito mais rápido do que eu podia acompanhar. Com os meus outros sentidos ampliados, pude rastrear parte da equipe de exploradores, o que me conduziu a um centro urbano em Cusco.

Logo que cheguei à cidade, a achei estranhamente familiar, mas me preocupei em encontrar um lugar seguro para passar o dia já que, em breve, os raios do sol começariam a alcançar a superfície terrestre. A torre de uma antiga igreja me serviu como abrigo ao longo do dia e quando a noite voltou a cair, comecei a caçar novas presas.

Duas a três vítimas por noite ao longo de quase dois meses começou a instaurar um clima de terror entre os moradores locais que passaram a se esconder em suas casas quando o sol se punha. Logo, devido ao pânico que a minha sede desesperada tinha causado, não haviam mais seres humanos em abundância nas ruas para que eu me alimentasse do seu sangue, me obrigando a voltar minha atenção às matas e sua vida animal.

Deixei um rastro de morte por onde passei naquele período e enquanto as autoridades de Cusco buscavam saber o que estava matando pessoas e animais na floresta, eu usava as manhãs para me esconder, esperando o meu organismo vampiro recuperar a minha saúde. Num espaço de tempo de quase um ano, me alimentando sobretudo de sangue, a minha pele tinha recuperado muito da sua antiga aparência, mantendo apenas algumas cicatrizes arroxeadas onde tinha sido mais afetada. Os cabelos já nasciam no alto de minha cabeça e o meu rosto já podia ser distinguido ante as crostas escuras que antes se acumulavam frente ao meu crânio. Meus contornos femininos voltaram a ser conspícuos após oito meses e todos meus sentidos tinham voltado a funcionar normalmente. Já era possível reconhecer uma mulher onde antes havia apenas um cadáver carbonizado ambulante e quando roubei roupas do varal de uma jovem peruana que morava próximo à igreja onde eu me escondia, eu voltei a me embrenhar na mata de Cusco, pronta a me encontrar com a tal bruxa de que tanto se falava por ali. Embora eu não soubesse na época, algo me dizia que ela tinha as respostas para aquilo que eu tão ansiosamente esperava desde que tinha sido despertada dentro de uma câmara mortuária. 

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