Capítulo 7 - Ferocidade e fúria
AS MEMÓRIAS DE COSTEL
"Da minha cela infecta, o tempo era muito relativo. No mundo terreno, mesmo antes da invenção do relógio, os habitantes da Terra aprendiam a se orientar pela posição do Sol, bem como a sombra que ele projetava no chão, porém, no subsolo não havia o menor resquício de luz solar... ou qualquer outra fonte luminosa.
Dali, olhando para o alto, tudo que eu conseguia ver era uma camada grossa de um teto abobadado semelhante ao interior de uma caverna, além de horrendas estalactites escuras, pontiagudas, que serviam como ferramenta de tortura aos prisioneiros. Em especial, aos que tentavam escapar daquele lugar, e que, obviamente, falhavam.
Na minha clausura, não havia muito o que fazer. O meu diário seguia em direção à sua metade. Às vezes, eu arrancava páginas que considerava aquém de meu talento literário e gostava de ver o papel amassado se dissolver no rio de bile que passava próximo de mim, quase ao esticar de um braço. Conforme as minhas memórias borbulhavam em minha mente inquieta, eu sentia a necessidade de escrevê-las, mesmo que no final, não houvesse ninguém para lê-las.
Naquela noite (ou seria dia?), eu comecei a escrever sobre uma das minhas primeiras conversas com Thænael e o motivo pelo qual o meu corpo imortal acabou atrelado ao espírito do nefilim demoníaco em 1928, em algum lugar da Ucrânia.
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Eu demorei a me acostumar com a ideia de que o meu próprio corpo não pertencia mais somente a mim. Andar, falar ou mesmo fazer sexo com prostitutas sem que eu tivesse o menor controle daquilo que estava fazendo me pareceu assustador num primeiro momento. Com o tempo, no entanto, acabei induzido a aceitar a nova condição de cativo em minha própria mente
Nos primeiros anos após a minha possessão, o ser que me usava feito a um boneco de ventríloquo me deixava relegado ao papel de espectador. Eu podia ver através de meus olhos, mas jamais podia influenciar os desejos de meu hóspede, mesmo quando me esforçava para isso. Aquela dualidade era complexa e, por vezes, era quase como se eu fosse o inquilino e ele o senhorio da estrutura física que compartilhávamos.
Thænael não me consultava para nada, bastante à vontade no papel de Costel Grigorescu ou, naquela época, do magnata Theodor Constantinescu, o dono da empresa petrolífera a quem eu simulava em minha identidade civil. Ele acessava as minhas memórias a fim de absorver os meus conhecimentos a respeito de administração empresarial, hábitos alimentares vampíricos, entre outras coisas. Apesar disso, ele não se comunicava diretamente ou me pedia opiniões. Apenas usava o meu corpo e me deixava à margem de todo o resto. Totalmente controlado.
Eu não saberia dizer quanto tempo se passou até que a mente do nefilim entrasse em contato com a minha pela primeira vez, mas quando ele se dirigiu a mim, me pegou completamente desprevenido.
'Você tem um corpo magnífico, pequeno Costel. Tanto poder, tanta rigidez e tanta libido... é quase como se você já fosse parte da nossa horda mesmo antes de ser dominado. Eu não poderia ter sido agraciado por melhor sorte'.
Fico grato pela preferência, disse, em tom irônico. Agora pode me libertar, por gentileza?
Uma risada de escárnio ecoou em minha mente.
'Ao longo de minhas várias incursões ao mundo do Criador, já habitei inúmeras cascas humanas, mas devo admitir que nenhuma como a sua. Um vampiro jamais se deixou dominar antes. Desde os primórdios, os de sua espécie se mostravam criaturas altivas e soberbas. Alheias a qualquer outro tipo de raça, superiores a todas elas. Difíceis de se dialogar'.
Quer dizer que sou inferior aos outros vampiros de quem tentou se aproveitar? perguntei, insultado.
'Não, pelo contrário. Adon Gorky foi obrigado a despender uma quantidade elevada de energia para evocar o feitiço que me trouxe ao seu mundo, e que resultou no amálgama de nossas almas. Como os de sua espécie, você resistiu muito. Foi um guerreiro'.
Você conheceu o primeiro de nós? Aquele que deu origem a todos os vampiros?
Outra risada sarcástica sinalizava que ele sabia a resposta, no entanto, se negou a me dizer de maneira direta.
'Eu vivi por eras incontáveis e conheci todo tipo de criatura em seu mundo, mesmo as das trevas. Sempre fui fascinado pelos morois e me vi obrigado a trabalhar com alguns strigois também (criaturas repulsivas). Em nossas conversas astrais, através dos rituais de magia satânica, eu fui o primeiro a sugerir que Gorky conseguisse um candidato vampiro para a possessão a qual negociávamos por anos. A sua primeira tentativa foi com uma do gênero feminino. Uma romena pálida, de cabelos cor ônix e belos olhos celestes...'
Não havia dúvidas. Ele estava falando da minha irmã, Alina.
Eu não estava presente na época, no entanto, Alina me contou, durante o nosso reencontro na Transilvânia, em 1917, que ela havia sido raptada por Adon Gorky e levada até Córdoba, no santuário de uma bruxa espanhola de nome Iolanda, ainda no século XIX. Lá, unindo os seus esforços, os dois tentaram dominá-la por meio de magia, a fim de que ela lhes servisse como uma serva moroi.
'Naquele tempo, Gorky e Iolanda ainda não conheciam as técnicas envolvendo sacrifícios humanos para a invocação de almas perdidas no submundo abissal. Isso, somado à incrível resistência psíquica que a vítima vampira possuía, tornou impossível que eu conseguisse me libertar e fosse atrelado ao corpo da jovem romena. Qual não foi a minha surpresa em descobrir que ela era da sua família, pequeno Costel. Aliás, eu acessei as memórias da sua época de fazendeiro na valáquia. Quanta luxúria para dois meios-irmãos!'.
Não havia como esconder o que quer que fosse de Thænael. Cada um dos meus pecados, os segredos mais íntimos e mais sujos jaziam escancarados para o ser infernal que habitava o meu corpo.
Não estamos aqui para falar de Alina. Deixe-a de fora das suas tramoias, seu nojento!
A risada de Thænael me causava dores lancinantes. Todas as vezes que ela ecoava em minha prisão, era como se a minha cabeça fosse explodir.
'Alina faz parte dos planos do mestre para esse mundo, pequeno Costel. Você nem imagina o quanto!'
Eu não fazia ideia o que aquilo significava, mas se a vida de minha irmã corria perigo, eu precisava fazer algo a respeito
Mas como?
Eu não tinha qualquer outra coisa a fazer além de conversar com o meu hóspede e, no intuito de mudar o foco de Alina, eu o instiguei a falar mais a respeito de sua história pregressa, antes de nosso amálgama de almas.
'Se quer saber da minha história, então você deve saber como tudo começou...'
De maneira pausada e contemplativa, Thænael me contou que a sua biografia remontava do período pré-diluviano, da época em que os anjos desceram ao nosso mundo curiosos pela vida humana, e resolveram copular com as mulheres da Terra. Eles viam nelas a razão pela qual Deus tinha tanto apreço pela raça dos homens.
Ešum, como ele se chamava, era filho de uma moradora da região da Mesopotâmia de nome Inanna, e seu pai era conhecido por Akanael, um soldado da linha de frente das hostes celestes, cujo comandante era Rafael, o arcanjo. Atraído pela beleza da mulher em seu período fértil, em uma noite de luar intenso, o anjo desceu à Terra com sua esplendorosa armadura de guerra. Despiu-se dela num piscar de olhos, aproximou-se da fêmea e a violentou.
Embora Inanna não soubesse que seu agressor se tratava de uma criatura angelical, ela viu as demais mulheres de sua vila serem acometidas pelo mesmo crime, sendo defloradas por outros soldados como Akanael. Segundo o que ela relatara, eram centenas deles. Todos ávidos para experimentar sem permissão a gruta cálida entre as pernas de suas vítimas.
Anos mais tarde, parte da comunidade mesopotâmica já havia sido varrida do mapa pela inundação bíblica conhecida como 'o Dilúvio' e muitos dos filhos dos anjos deixados em terra pereceram. Inanna e seu herdeiro, no entanto, sobreviveram. Pelo menos, o suficiente até que ambos fossem vítimas de outro ataque celeste, desta vez, mortal.
Liderados por um anjo das castas mais altas, Samyaza, os Grigori, ou Santos Vigias, comandados por Rafael, infligiram um levante destrutivo ao povoado onde Inanna havia se refugiado com o filho já adulto, a sua nora e o bebê recém-nascido de ambos. Tendo recebido a missão de corrigir o seu erro passado de procriar com fêmeas humanas, o próprio Akanael ficou incumbido de ceifar a vida não só de seu filho, mas também de toda a sua família.
Aquele massacre ficou conhecido por muito tempo como 'A Fúria Divina', mas era bem óbvio que Deus nada tinha a ver com aquilo. Os anjos estavam ali única e exclusivamente para limpar a sua imagem de criaturas bondosas e justas, mesmo que essa limpeza fosse às custas de sangue humano.
Por seus pecados em vida como práticas ilícitas de ganhos materiais e até mesmo adultério, após a sua morte, o herdeiro de Inanna trilhou um caminho diferente ao da esposa e do filho recém-nascido. Por conta disso, em vez do Reino do Céu e a glorificação da vida eterna, a alma do homem foi enviada ao Sheol, o lugar invisível, o submundo oculto, local de onde ele esperaria o Juízo Final na companhia de outros pecadores como ele.
Perdido, confuso e sem esperanças de que um dia voltaria a reencontrar a esposa, o homem, então, foi abordado por pessoas que se encontravam em mesma situação que ele, e que, além de cumprirem a sua pena em celas de prisão sujas e fedorentas como a sua, também eram filhos de anjos com mulheres mortais.
Foi durante a sua sentença no Sheol que ele conheceu Anthea e Sin, aqueles que seriam os seus principais aliados no mundo das trevas.
'Nós não sabíamos na época', começou a dizer ele após uma pausa reflexiva de seu monólogo, 'todavia, os vales perdidos do Sheol possuíam vias de acesso para as profundezas do Inferno. Para alguns seres de incomensurável poder, a passagem de um reino para outro era tão facilitada quanto o transitar da sala para o banheiro da casa de um mortal', disse ele, numa analogia facilmente inteligível.
'Depois de uma estadia longa em nossas prisões, podendo nos encontrar entre os intervalos concedidos por nossos carcereiros a cada semana, meus amigos e eu descobrimos que tínhamos muito mais em comum além de nosso parentesco com os anjos. Um rancor muito grande por nossos pais havia dilacerado a nossa alma com a passagem do tempo, por conta da maneira desumana e cruel com a qual eles nos descartaram em vida. Quanto mais conversávamos sobre o assunto, mais crescia a chama da vingança em nossos corações'.
Segundo o relato de Thænael, ambos os seus companheiros de clausura eram nefilins como ele que haviam sido condenados à morte por conta de sua herança genética ligada aos anjos. Para os comandantes celestes, os filhos dos anjos com as mulheres humanas eram abominações que iam contra toda a vontade divina, portanto, precisavam ser eliminadas. Algo com a qual eles não concordavam.
'Anthea era filha de Uriael, um dos guerreiros mais violentos e cruéis dos Santos Vigias. Assim como Akanael havia feito com a minha mãe, Uriael violentou a mulher que viria a parir a minha amiga em sua vida mortal, depois, retornou para assassiná-la, quando já estava em sua vida adulta e mãe de quatro crianças. Uriael exterminou a todos como se fossem insetos, e o fez com requintes de crueldade. Levou séculos até que o espírito de Anthea se recuperasse do ataque violento e conseguisse voltar a se materializar no Sheol, onde nos encontramos. Por conta da proximidade que a sua história tinha com a minha, nós ficamos intimamente ligados'.
E quanto a Sin? Ele também queria vingança contra os anjos? indaguei a ele, no alto de minha curiosidade.
'Com certeza', respondeu ele sem pensar muito. 'Meu amigo foi um dos únicos nefilins que conseguiu sobreviver ao expurgo angelical no período pré-diluviano. Sempre disfarçado e mudando de cidade em cidade feito um nômade, escapou de seu pai por séculos, quando então foi caçado e assassinado por ele pela primeira vez. Assim como o seu progenitor, Sin possuía uma resistência sobre-humana o que, infelizmente, não foi suficiente para impedir a sua morte. Samyaza era um dos anjos mais poderosos do exército de Rafael e, como os irmãos de ofício, era implacável em sua missão filicida'.
E onde eu me encaixo nessa história de vingança? perguntei, afoito para entender o que Thænael planejava fazer com o meu corpo. Você quer começar uma rebelião contra os anjos? Contra Deus?
'Não é rebelião, pequeno Costel, é reparação histórica. O seu chamado 'Deus' nos relegou ao esquecimento no Sheol. Permitiu que seus amados filhos nos assassinassem e nos apagassem da história impiedosamente. Em toda a Sua onisciência e onipresença, não fez nada para impedir as ações temerárias dos ditos anjos contra nós. Fomos assassinados em Seu nome, em Sua homenagem. Não queremos nos rebelar. Queremos nos vingar'.
Era possível sentir a carga emocional na voz do nefilim demoníaco conforme ele me explicava os seus planos.
Você pretende libertar os seus amigos da mesma maneira que Adon Gorky o libertou? O interroguei.
'Um gasto de energia incomensurável precisa ser despendido para a abertura de um portal grande o suficiente que permita a passagem de uma legião de nefilins. Entretanto, a Ordem do Portal de Fogo já tem um plano a ser posto em prática para a realização desse grandioso ritual. Tudo que tenho que fazer é esperar pela vindoura chegada de meus irmãos de batalha'.
E quanto a Demophilus? Ele também fará parte dessa libertação?
'Eu liderarei as legiões e expurgaremos a Terra de seus opressores. Quando tivermos causado destruição suficiente para chamar a atenção dos seres celestes, nós os aniquilaremos com ferocidade e fúria. No momento em que não houver mais ninguém a se interpor entre nós e os nossos objetivos de conquista, então será chegada ascensão de Demophilus, o nosso mestre'.
Eu tinha sido levado para o olho do furacão. Acuado entre o poder dos Céus e a cólera infernal. E, para o meu azar, não havia qualquer modo de escapar daquela situação com vida".
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