Capítulo 26 - Jogos de guerra
AS MEMÓRIAS DE COSTEL
"O ar no Sheol era pesado, como se fosse composto por escuridão condensada. Gritos distantes ecoavam pelos corredores sombrios o tempo todo, formando uma cacofonia de lamentos que penetrava a minha mente, me causando uma constante sensação de frio e desamparo. Corroendo qualquer resquício de esperança.
As paredes da minha prisão, se é que podiam ser chamadas assim, eram feitas de uma substância escura e maleável, pulsando como se fosse uma entidade viva. O ambiente era mergulhado em sombras, e uma neblina etérea serpenteava pelo chão perpetuamente, criando figuras sombrias e indistintas à minha visão periférica.
Na cela, eu estava sentado em um banco desgastado de pedra, meu único companheiro na solidão opressiva. O chão era áspero e irregular, esculpido por mãos torturadas ao longo de eras. Eu segurava uma caneta feita de penas negras e um pergaminho que parecia se contorcer em resposta à presença do próprio Sheol. Escrever as minhas memórias era uma tarefa árdua, mas também uma distração bem-vinda em detrimento ao tédio eterno que me envolvia.
Enquanto rabiscava minhas palavras, de vez em quando, eu podia perceber sombras se movendo nos cantos escuros da cela. Presenças indistintas, manifestações da própria angústia que permeava o confinamento. As figuras, via de regra, tinham membros disformes, rostos contorcidos em expressões de sofrimento eterno. Olhos vazios pareciam buscar algo além da realidade que a prisão oferecia. Não emitiam som algum, mas seu silêncio era mais ensurdecedor do que os gritos que ecoavam pelo corredor.
O que querem de mim? perguntava, com minha voz ressoando em um eco fraco na escuridão.
Os visitantes sombrios não respondiam, mas seus movimentos tornavam-se mais frenéticos, como se tentassem se comunicar através de gestos desesperados. Eu sentia um arrepio percorrer a minha espinha cada vez que os espectros se aproximavam. Por algum tempo, as órbitas vazias encontravam os meus olhos, e uma onda de desespero e agonia emanava das figuras.
Que maldição é esta?
O silêncio voltava a reinar na cela. A monotonia era quebrada apenas pelo ocasional gemido distante de outras almas perdidas. Eu os usava como ruído branco, como plano de fundo para que as minhas memórias fossem reavivadas. Então, continuava a minha narrativa. Tentando deixar registrado em meu diário o meu testemunho, na esperança de que, de alguma forma, ele alcançasse alguém além dos confins do Sheol.
Como se isso fosse ajudar a me redimir de meus pecados, pensava eu, ressentido.
Eu sabia que estava aprisionado não apenas pela estrutura retorcida da dimensão, mas também pelos grilhões de minhas próprias escolhas e destinos entrelaçados. Enquanto escrevia, uma voz sibilante ecoava na cela, uma risada distante e perturbadora que fazia com que eu me lembrasse do ser que, de uma maneira ou de outra, era o responsável pela minha prisão.
"Pequeno Costel... como é bom revê-lo. Vejo que está escrevendo as nossas memórias. Oh, e pela cor da tinta, vejo que está caprichando nos tons de vermelho... vermelho sangue. O sangue com que as suas mãos estão manchadas!"
Eu sabia que não era possível que eu ainda estivesse sendo assombrado pela sua presença. Não naquela cela. Não naquele lugar. No entanto, a sua risada continuava ecoando mais e mais. Cada vez mais alta. Cada vez mais nítida. Sem pausas. Sem trégua.
"Pequeno Costel... estamos aqui. Liberte-nos. LIBERTE-NOS!"
♦
As sombras dançavam pelo corredor, lançando uma sinistra sinfonia de contornos inquietantes sobre os convidados involuntários do castelo. As brasas na lareira crepitavam, e a luz vacilante projetava sombras nos rostos dos lobisomens na arena, em meio ao círculo de combate.
Brittany e Scott, os irmãos Grealish, estavam lá, musculosos e tensos, olhando-se com uma mistura de desconfiança e raiva. Os grilhões que os prendiam tremiam levemente, e a atmosfera estava saturada com a eletricidade da antecipação. Thænael observava de seu trono de ébano, satisfeito com o entretenimento que estava prestes a se desenrolar.
'Como é poético, não é, pequeno Costel? Irmãos lutando entre si. Uma tradição tão antiga quanto a humanidade', murmurou Thænael, sua voz ecoando em minha mente.
Eu jazia cativo dentro de minha própria cabeça, lutando para romper as correntes mentais que me mantinham preso. Havia sadismo no tom de voz de Thænael enquanto ele comentava a respeito do confronto dos irmãos Grealish lá embaixo. A arena estava imersa em expectativa. Os vampiros do Concílio de Sangue, às centenas, se deliciavam com o espetáculo violento. Ávidos por sangue. Ávidos por carnificina.
'Agora, quanto à busca pelas demais peças da Chave do Infinito, meu caro Costel, eu tenho planos ambiciosos'. Thænael projetou imagens mentais de mapas se desenrolando, marcando locais estratégicos ao redor do mundo. Era uma rede complexa, indicando os lugares onde as peças perdidas poderiam ser encontradas. Dez pontos específicos apareciam marcados em vermelho. Eram os mesmos descritos por Dumitri Ardelean em suas anotações seculares.
'Gallagher tem estudado com afinco às informações que lhe forneci sobre as Linhas Ley. Ele desenvolveu uma técnica para absorver conhecimento delas e nós podemos nos beneficiar de tais informações. O britânico descobriu que os antigos aliados de Alanna Dubhghaill também podem entrar em comunhão com os caminhos de energia do planeta e isso pode nos garantir uma vantagem sobre eles. Podemos surpreendê-los. O jogo está apenas começando, e eu tenho em mãos todas as peças certas para ganhar.'
Scott e Brittany lutavam ferozmente na arena, se atingindo sem clemência e ignorando o seu parentesco. A influência hipnótica exercida pela ampliação de meu poder de compulsão parecia irresistível àquela altura dos fatos, tanto que os dois chegavam ao ponto de quase se matar, sem qualquer consciência ou vontade própria. Eram selvageria pura.
Enquanto os ganidos e rugidos dos dois lobisomens vibravam pelas paredes em torno do ringue, Kelvin Gallagher surgiu pela entrada lateral do local, trazendo presa a uma corrente reforçada a criatura de pelos claros e olhos vermelhos a que ele dominava com magia das trevas. A minha sobrinha, Alex, estava cada dia mais trancafiada dentro do corpo da fera, sem chances de voltar a ver a luz do dia. Aquilo me causava um misto de revolta e agonia.
'Ora, veja quem se aproxima. A campeã invicta nos jogos mortais da nossa arena. A pequena Alex tem se saído bem como gladiadora, não tem, Costel? Como o seu tio, deve estar se sentindo extremamente orgulhoso dela!'
Rugindo, agindo mais como fera do que como humana, Alexandra não se comunicava mais verbalmente. Estava na forma de vircolac há mais de dois meses e seu estado mental era cada vez mais selvagem. Apenas Gallagher e Thænael a podiam controlar. Tudo mais à sua volta se tornava presa. Se tornava caça.
Seu maldito! O que ganha me torturando dessa forma? Você já não teve o que queria? Já não se divertiu o suficiente? Liberte a menina. A deixe sair do corpo desse monstro!
'Seus protestos são inúteis, assim como qualquer resistência que você ainda possa oferecer, pequeno Costel. Sente-se em sua masmorra e aprecie o show!'
A sala principal do castelo parecia ecoar com as risadas cruéis de Thænael. Na arena, a cena atingia o seu clímax. Um dos irmãos Grealish derrubou o outro para o delírio da plateia de vampiros que gritava em aprovação nas arquibancadas. Thænael levantou-se de seu trono, aplaudindo com satisfação à medida que os irmãos se levantavam, feridos e exaustos. O perdedor se encaminhava para a saída, puxado pelas correntes por Serj Bogdanov, o strigoi com cara de morcego. Scott tinha falhas nos pelos escuros e marcas profundas das garras da irmã em costas, cabeça e braços. Estava ferido e manquitolava de uma perna. Foi surrado pelos punhos de Bogdanov antes de voltar a ser trancafiado em sua jaula, e lá aquietou-se em seu canto, ofegante.
'Um espetáculo magnífico, não é, pequeno Costel? A lealdade familiar testada na mais brutal das arenas.'
Os portões mantiveram-se abertos para a entrada da vircolac na arena. O público aplaudiu com intensidade tão logo Gallagher, em sua obediência cega, soltou as correntes de seu gigantesco animal de estimação, permitindo que ele circundasse a rival, farejando o seu medo. Brittany era uma valente concorrente, mas em mais de uma dezena de combates, mal tinha chegado a se equiparar em força e em agilidade com Alex.
'Será que vai ser hoje que a nossa desafiante vai nos surpreender?'
A pergunta de Thænael ficou no ar. À direita de seu trono, estavam ladeados os irmãos Ardelean, a garota Ariana e mais uma dezena de outros filhos e netos deles. Do outro lado, atentos à batalha prestes a se desenrolar lá embaixo, acomodavam-se Sephiræd, Jæziel e mais uma porção de membros efetivos do Concílio de Sangue, todos ainda crentes que a mulher loira a quem eles bajulavam era a mesma condessa Cassandra dos tempos em que Lucien era o seu rei, e a organização era uma espécie de máfia vampiresca.
O que aconteceria se o concílio descobrisse que o seu comandante era agora um nefilim-demônio e que os seus corpos seriam usados muito em breve como invólucros para uma legião de outras centenas de espíritos errantes que jaziam ansiosos para invadir a Terra?
Lá embaixo, um assovio de Kelvin bastou para que Alex saltasse intempestivamente sobre a loba de pelos castanhos avermelhados e começasse a castigá-la com seus punhos, quebrando-lhe dentes e rasgando a sua carne. Não havia mais nada de humano nas garotas dentro dos corpos daqueles monstros e aquilo era assustador.
♦
Algum tempo depois do seu entretenimento violento da arena, Thænael reuniu seus dois mais fiéis comparsas em torno da mesa de jantar e mandou servir uma lauta refeição regada a muito carboidrato e proteína para que os três satisfizessem o seu paladar. Vampiros da espécie 'vira-lata', como os definia Dumitri Ardelean, não precisavam se alimentar de nada além de sangue, porém, a criatura no corpo da condessa parecia ignorar isso. Avançou faminta sobre os cortes diversos de carnes malpassadas servidos e, conforme ela devorava a sua refeição, o trio discutia as próximas fases de seu plano de conquista.
'Agora que ele a trouxe de volta, Sephiræd, eu não vejo mais serventia para Kelvin Gallagher. Pretendo queimá-lo na fogueira amanhã mesmo, antes que ele comece a se sentir importante demais dentro do nosso círculo de confiança'.
A mulher loira mastigava freneticamente um pedaço de bife de bisão quando o fitou do outro lado da mesa larga, posicionada ao centro da imensa sala de jantar do castelo. Ela e Jæziel trocaram um olhar breve, para no momento seguinte, os dois o questionarem a respeito de sua decisão.
'Mas, não é ele quem detém controle total sobre a fera vircolac?', perguntou o nefilim em seu corpo robusto. 'Não será um problema se o descartarmos?'
'A besta também segue o meu comando. Gallagher não é o único que consegue fazer com que ela o obedeça', disse Thænael com toda a segurança do mundo.
'E quanto à abertura do portal? Um bruxo com a sua experiência pode ser útil na conjuração do feitiço que irá abrir uma fenda grande o bastante para que nossos irmãos e irmãs atravessem para essa dimensão', argumentou a mulher, mantendo um tom de respeito em sua voz polida de sotaque francês.
'Eu tenho o sangue da herdeira Dubhghaill correndo em minhas veias e, se isso não for o bastante, também tenho a porção do sangue da própria bruxa em meu poder. Esqueceu o que a ágata-de-fogo guardava em seu interior?'
Ela fez que não com a cabeça. Preocupou-se em limpar os lábios finos do sangue que escorria da carne com um guardanapo.
'Seja como for, Gallagher ainda pode nos ser útil para se comunicar com as Linhas Ley e revelar os próximos passos de nossos inimigos. Não podemos nos esquecer que Alina Grigorescu agora está aliada aos feiticeiros do Conciliábulo Dubhghaill, o que significa que ela agora pode viajar através dos Portais do Infinito, logo, pode ser localizada'.
A mente de Thænael raciocinava com rapidez. Mesmo quando não me permitia acesso aos seus pensamentos, era possível saber o que ele confabulava de maneira solitária.
'Está certo. Vou manter o britânico vivo por mais algum tempo. Pelo menos, até que consigamos todas as peças da chave e até que tenhamos meios de abrir um portal com conexão ao Sheol e ao Inferno'.
Os três continuaram a discutir seus planos com risos e comentários jocosos. Se sentiam confortáveis em sua maldade eterna e desprezavam todo e qualquer resquício de humanidade que as suas cascas físicas podiam minimamente lhes proporcionar".
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