Capítulo 25 - O filho de Archambault

NASCIDO EM UMA REGIÃO pobre de Montbéliard em 1710 e filho de trabalhadores de uma zona rural francesa, o jovem Lucien tinha então vinte e cinco anos quando sobreviveu ao ataque feroz de uma vampira que o encurralou num campo de trigo, a poucos quilômetros de onde ele morava com os pais.

O francês ainda definhava por conta da perda de sangue do ferimento em seu pescoço quando a mulher que o mordera se compadeceu de seu sofrimento e se aproximou para sacrificá-lo. Inadvertidamente, o moribundo encontrou forças para reagir. A atingiu mortalmente no peito com a ponta de um instrumento de arado feito de madeira e conquistou mais alguns minutos de vida.

Acidentalmente, no entanto, o sangue da vampira entrou em contato com o seu ferimento, sendo absorvido por seu corpo em seguida. Por causa disso, dias depois, ele acordou no mesmo campo de trigo, ao lado das cinzas do que antes era o cadáver da vampira e o sol estava a pino. Naquela noite, ele se transformou pela primeira vez e foi obrigado a abandonar o pai e a mãe, temendo que a sua sede de sangue o fizesse devorar a ambos.

Usando de seus novos dons extrassensoriais para adquirir conhecimento e riquezas, Lucien roubou para si o sobrenome de um rico mercador francês que exportava pedras preciosas por via marítima, e que contrabandeava produtos como tabaco para a Suíça. Não demorou para que o argucioso rapaz estivesse à frente das negociações com a variada clientela estrangeira do mercador de joias e assumido o seu lugar de destaque.

Durante anos, ele conheceu vários lugares do mundo viajando de barco e, com isso, acumulou mais riqueza do que podia gastar em uma só vida. Comprou diversos imóveis em regiões remotas da França — incluindo a velha fazenda onde morava na juventude com os pais, em Montbéliard — e, solitário, começou a procurar pela Europa outros como ele e a mulher que o atacara naquela noite fria, no campo de trigo.

Depois de décadas de procura incansável por rastros quase invisíveis, conheceu em uma taberna francesa um homem chamado Mael D'Aramitz, cujo avô tinha sido um dos antigos clientes de negócios do velho — e verdadeiro — Archambault. Os dois logo ficaram amigos e os seus laços se estreitaram ainda mais quando descobriram que tinham em comum o fato de serem imortais. Mael também tinha sido transformado em vampiro por um desconhecido que o abordou na saída do bar após uma noite de bebedeira e, desde então, vinha gastando a fortuna da família D'Aramitz em farras, prostíbulos e bebidas importadas, sem saber como aproveitar a sua aparente vida eterna.

Com a morte do pai por velhice, Mael se tornou o responsável pelas joalherias da família e, com a ajuda oportuna de seu novo amigo, Lucien, aprendeu a gerir bem os negócios, multiplicando a já crescente fortuna.

Anos depois, Lucien e Mael fizeram uma viagem de barco até a Grã-Bretanha para negociar as joias D'Aramitz a um comprador britânico. Após a venda dos conjuntos valiosos que tinham em sua posse, saíram para badalar pela capital londrina e gastar dinheiro, foi quando conheceram, em um bar local, a herdeira mais nova de uma tradicional família irlandesa, que estava de passagem pela Inglaterra.

A mulher se chamava Adela Quinn e ficou totalmente interessada em ambos, com a mesma intensidade. Em especial, pelo charme de Mael e pelo porte físico de Lucien. A partir daquela noite, ela se tornou amante dos dois e, com o passar do tempo, ao descobrir que eles eram vampiros, se deixou transformar, seduzida pela ideia de ser jovem para sempre e poder viajar o mundo com a fortuna de seu pai, um chefe de estado irlandês.

Juntos, os três encabeçaram os principais clãs vampiros da Europa e começaram a arregimentar exércitos de subordinados para arquitetar planos de perpetuação da sua espécie. Com a descoberta da existência de outros seres fantásticos como eles pelo mundo, ganharam rivais à altura na pele de um clã de licantropos famoso por caçar e matar vampiros. Travaram uma guerra secreta com os homens-lobos por toda a Europa, o que gerou muitas mortes dos dois lados da equação.

Em paralelo ao conflito com o clã inglês de lobisomens, em 1886, Lucien casou-se com uma influente dama da sociedade búlgara a fim de expandir os seus domínios. E, como não era mais capaz de procriar devido à sua maldição vampira, em segredo, mandou que um de seus mais fiéis serviçais da guarda de segurança do castelo em Pleven a engravidasse, a fim de gerar descendentes da casa Archambault, mesmo que não-legítimos. Como ninguém da sociedade burguesa da região sabia da natureza vampira de Lucien, o acordo entre ele, o guarda e a esposa que gerou os três garotos ficou em segredo, bem como a posterior morte do pai biológico das crianças em uma caçada noturna.

O filho mais velho de Lucien e a condessa Cassandra se chamava Anton, enquanto os dois mais novos, os gêmeos, se chamavam Yan e Ives. Eles seriam os responsáveis pela perpetuação do nome Archambault pela Europa e herdeiros de toda a fortuna conquistada por seu pai em seus longos anos como patriarca dos clãs vampíricos da região. No entanto, quando a guerra contra os lobos de West Ham tornou-se insustentável, um acordo de benefício mútuo precisou ser firmado entre os dois lados, foi quando eles dividiram claramente o território onde podiam coexistir em 1895.

Como forma de tornar o acordo perpétuo, mesmo após a morte de seus declarantes, as duas famílias decidiram entregar, de bom grado, os seus primogênitos para que o outro lado os criasse como a um semelhante. Assim, Lucien Archambault deu o seu filho Anton para que a alcateia tomasse conta, e assumisse uma posição de destaque em seu conselho quando chegasse a hora. Já o outro lado, representado pelo alfa Mason Grealish, cedeu o seu único filho com a esposa falecida, Alura— morta durante um dos inúmeros combates contra as tropas de Lucien — para que o rival abrigasse. Na época, Reece ainda era uma criança e, por conta do pacto feito por seu pai, ele foi obrigado a morar na França, com o Concílio de Sangue.

Toda aquela história me foi contada por Gretta, enquanto nos preparávamos para a viagem até a Austrália. Eu já sabia a respeito do pacto entre lobisomens e vampiros, bem como a troca de seus primogênitos como uma forma de selar a paz entre as famílias, mas desconhecia a ilegitimidade dos filhos de Lucien Archambault. Quando aquilo me foi revelado, me veio à mente as lendas de que vampiros não podiam procriar e que só a espécie moroi tinha a possibilidade de passar adiante o seu amaldiçoado código genético.

— Isso quer dizer que a condessa Cassandra ainda era humana quando engravidou do tal guarda em Montbéliard? — indaguei à mulher voluptuosa ao meu lado, pouco antes de embarcarmos de avião rumo à Oceania.

— Tanto ela quanto o pai das crianças eram humanos normais. Lucien a transformou muito tempo depois, quando os gêmeos já eram adolescentes — respondeu-me Gretta, cujas informações secretas sobre o antigo Concílio de Sangue ela sabia por intermédio do marido, Mason e de Reece, que convivera entre os vampiros por décadas.

Anton Archambault era um rapaz sombrio cuja expressão gélida transmitia sempre um ar de desprezo aos que o cercavam. Era esguio como a mãe e não aparentava força ou destreza, ao contrário do que diziam as histórias sobre ele. Segundo o que eu ouvia falar, o único remanescente do clã Archambault era uma perfeita máquina vampira de matar. Capaz de se infiltrar em qualquer lugar, por mais seguro e vigiado que fosse, agia feito a um espectro evanescente, não poupando violência ou sadismo para atingir os seus objetivos.

O jatinho particular da Rux-Oil que eu havia conseguido em caráter de urgência para nos levar até a Austrália comportava bem todos os principais membros do clã Grealish, além do próprio Anton. Quando decolamos do aeroporto em Belfast, Mason, Gretta, Olympia e Wolf se sentaram próximos, nas fileiras da frente do avião. Mais atrás, Bethany Green e Jack Lampard faziam companhia a Akanni, Brian O'Toole e outra meia dúzia de soldados lobisomens. Eu decidi me sentar ao lado do garoto Archambault em uma poltrona mais ao centro porque precisava acertar alguns pontos com ele, bem como conhecê-lo melhor antes de aceitá-lo como aliado.

— Este lugar está vago? — perguntei, tentando quebrar o gelo entre nós. Anton estava sentado próximo à janela e parecia perdido em pensamentos.

Me acomodei antes que ele respondesse algo. Seus olhos escuros miraram os meus sem transmitir emoções.

— Eu lamento muito o que houve à sua família, Anton — comecei a dizer. — O seu pai e eu éramos rivais. Tentamos matar um ao outro algumas vezes, mas eu realmente me compadeci com a sua morte, e como tudo aconteceu.

Anton me olhava como que tentando arrancar a minha alma, se pudesse. Os seus pensamentos a meu respeito eram claros. Ele me chamava de vagabunda superficialmente, mas não parava de mirar os meus peitos por sobre a roupa e nem de se imaginar comigo na cama, fazendo sexo selvagem. Nos conhecíamos a menos de um dia e eu já sentia vontade de espancar aquela carinha macilenta.

— Você esteve na mansão em Montbéliard antes de minha mãe ser sequestrada... viu o que o demônio fez aos meus irmãos...

Assenti. Os gêmeos Ives e Yan tinham sido mortos nos andares superiores da casa com requintes de crueldade. Não faziam sombra aos planos de conquista de Thænael, mas foram mortos de maneira brutal apenas porque levavam o sobrenome de seu pai.

— Eu entendo que queira se vingar por causa da morte de seu pai e de seus irmãos, Anton, mas quero que entenda que essa não é uma missão de retaliação. Thænael se tornou alguém que não pode mais ser combatido individualmente. Ele tem poderes além das capacidades de qualquer um aqui dentro desse avião. Você terá que me obedecer quando chegar ou se chegar a hora de encará-lo em campo de batalha. Estamos entendidos?

Os olhos escuros voltaram a me esquadrinhar o corpo de cima a baixo.

"Além de gostosa, a vagabunda ainda é mandona! Que tesão!"

Aquela frase ecoou em minha mente. Anton era um poço de machismo e quase rivalizava com Costel, em seus tempos de amante voraz na Rússia.

— Espero que sim. Não quero vê-lo sendo feito em pedaços só porque quis bancar o adolescente rebelde tardio em batalha — ele franziu o cenho, já pronto para disparar outra de suas frases machistas em pensamento. — Ah, e quanto a esse seu desejo por mim, desista. Você não faz o meu tipo!

Dei-lhe um soco encaixado em sua genitália e ele ganiu de dor. Me proferiu um sem-número de palavrões, mas decidiu se comportar, voltando a olhar a janela algum tempo depois.

O voo de Belfast, na Irlanda do Norte, até Uluru demorou mais do que o previsto e, embora eu mantivesse uma esperança de que Thænael não tivesse lido a minha mente em Visoko e descoberto a respeito do bracelete dado a Narel, eu sabia que as chances de os Anangu ainda estarem vivos eram remotas.

Quando pisamos no solo arenoso de Uluru, era noite, mas o cheiro de putrefação nos recepcionou mesmo assim. Pássaros carniceiros sobrevoavam a área de vários quilômetros que circundava o parque nacional australiano. Toda a aldeia aborígene havia sido destruída.

— Foi um massacre — a voz de Mason soou lúgubre aos meus ouvidos. — Os coitados não tiveram a menor chance.

Idosos, mulheres e crianças foram exterminados sem qualquer tipo de clemência. Os seus corpos jaziam dilacerados em várias partes, espalhados por cima do que antes havia sido um santuário de espiritualidade e harmonia com a natureza árida do lugar. Era difícil respirar em meio a um cenário tão caótico.

— E aí? Agora você mudou de ideia a respeito do que falou sobre vingança no avião?

Anton me circundou por um instante e estendeu os braços, como que me mostrando a carnificina que podia ser percebida sem esforço ao nosso redor. Por um momento, tive que engolir o meu orgulho e não dar o braço a torcer sobre o que tinha pedido a ele no voo até a Austrália.

Thænael ordenou a morte de pessoas inocentes... as matou com brutalidade. Vingança seria o mínimo pelo que esse maldito fez aos Anangu, pensei, fortemente abalada com o que via.

— Mais uma vez a culpa é minha... a tribo inteira foi morta porque eu não soube proteger a informação sobre o destino do bracelete de Thomas Blackwood...

Gretta tocou o meu ombro procurando me consolar, mas disse, com sabedoria:

— Você e Akanni nos contaram que Thænael agora é capaz de seguir os rastros místicos deixados pelo uso das Linhas Ley. Se isso é verdade, é possível que ele não tenha precisado ler a sua mente para descobrir o paradeiro do bracelete. Ele sabia desde o início onde você estivera com André Nascimento antes de Visoko. Uluru era o destino natural depois que você conseguiu fugir da sua armadilha nas pirâmides.

Aquilo me soou feito a uma pancada na cara. Gretta tinha toda a razão.

— Esses aborígenes foram atacados por algum tipo de animal de grande porte — Mason estava agachado próximo a um ancião Anangu cujo corpo estava relativamente intacto, mas que possuía marcas paralelas de garras em seu torso. O alfa analisava os ferimentos do velho e concluiu em seguida: — Eu diria que essas pessoas foram mortas por um lobisomem, mas pela espessura das chagas e a profundidade que elas atingiram pele e osso, eu tenho quase certeza de que algo maior do que um licantropo adulto os atingiu.

Um novo choque. Então, a confirmação veio de Bethany, que já havia investigado uma parte considerável do cenário e retornava para perto de nós com semblante sisudo.

— Encontrei apenas três pegadas distintas que não pertencem aos aborígenes. Duas delas eram de homens de estatura mediana usando calçados. A outra, era grande o suficiente para pertencer a um lobo gigante... ou a um vircolac.

O meu coração acelerou.

— Deu para sentir o cheiro de Alexandra em vários dos corpos destrinchados pelo parque, Alina. Eu a enfrentei uma vez. Poderia reconhecê-la de longe — e a garota Green apontou para as próprias narinas, me dando a certeza do que estava falando.

— Eu pensei tê-la visto com ele em Visoko, mas tudo aconteceu tão rápido depois que percebi a emboscada, que acabei duvidando dos meus olhos. Eu cheguei a sentir o seu cheiro por lá... Thænael está usando a minha Alex para matar pessoas inocentes... chacinar pessoas indefesas.

Senti um nó na garganta. A realidade era cruel de aceitar.

— Ele sabe que a guerra está próxima do seu clímax e vai jogar com tudo que tem sem se conter.

As palavras de Mason eram sombrias e, pouco depois de ele as proferir, Jack e Brian retornaram para perto de nós. Traziam um corpo bastante mutilado e quase irreconhecível devido aos ferimentos em seu rosto. Mas era de alguém que eu podia identificar.

— Narel. Foi com ele que André deixou o bracelete pouco antes de partirmos para Visoko. O coitado não teve a menor chance contra a Alex...

Agora não restavam mais dúvidas de que Thænael detinha em seu poder dois dos cinco componentes que formavam a chave confeccionada por minha bisavó há mais de um século. Nós não sabíamos como, mas era cada vez mais claro que o nefilim tinha meios de acionar a relíquia, bem como de abrir os Portões do Infinito com ela.

— Vamos enterrar o que restou dos corpos dos Anangu. Não podemos deixá-los aqui para um festim de corvos e abutres.

A voz de Mason foi interrompida por um som que se assemelhava a um latido de cão ao longe. Ouvimos passos vindo em nossa direção e todos assumiram posição defensiva, quando eu os desarmei.

— É a Zara, a âncora de André. Ela sobreviveu ao massacre.

A fêmea de dingo se aproximou de nós com as orelhas em pé e postura desconfiada. Se esfregou em minha perna me reconhecendo de minha última visita ao povoado Anangu e parecia querer me transmitir uma mensagem. Eu não tinha a capacidade de me comunicar com animais como André, Chen e Thomas, mas me abaixei diante dela, tentando concentrar a minha telepatia em sua mente.

As palavras Gunya Marrang ressoavam como que transmitidas pelo cão selvagem a mim e aquilo foi tudo que consegui absorver. Mason e Gretta ficaram a me observar, curiosos.

— Conseguiu falar com a fêmea? — indagou-me a mulher.

— Não exatamente, mas agora eu sei onde procurar ajuda para localizarmos Thænael e destruí-lo de uma vez por todas.

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