Capítulo 24 - Nas entranhas de Glenarm
O VÔMITO ESCALDANTE FOI expelido com fúria para fora da minha boca no momento em que pousamos em um beco escuro. Estávamos no limite entre dois prédios altos e antigos em algum lugar do País de Gales. As lâmpadas públicas que ainda persistiam nas luminárias acima de nossas cabeças se espatifaram com a interferência magnética que a simples presença da minha acompanhante exercia sobre equipamentos elétricos. Enquanto eu me esvaía em bile, agachada no chão, a albina apenas me observava.
Eu nunca vou me acostumar com essas viagens instantâneas de um lado a outro do mundo!
A diferença de fuso-horário entre a República Socialista Federal da Iugoslávia e o Reino Unido era apenas de uma hora, mas eu sentia como se a transferência tivesse ocorrido como num piscar de olhos.
— Há quanto tempo, Alina! Vejo que ainda tem problemas com teletransportes angelicais...
A voz soou áspera em meus tímpanos, me botando em alerta. A cidade atrás de nós jazia tranquila. O beco onde estávamos era mal iluminado e a chegada de Samyaza o tinha tornado ainda mais escuro, o que não era um problema para a minha visão noturna, mesmo ela reduzida a apenas uma das vistas. Um de meus globos oculares jazia inchado, mas eu podia ver com nitidez um homem de altura mediana e cútis preta que me observava. Estava encostado na lateral de uma das paredes que nos cercava. A minha reação foi a mais direta possível ao reconhecê-lo.
— Eu já não matei você, seu filho da puta?
Eu estava dolorida por conta da surra que levara de Sephiræd em Visoko, mas sentia que ainda podia render mais alguns rounds contra o sujeito a sorrir para mim. O meu punho o atingiu certeiro no rosto da primeira vez e eu já preparava outro soco quando ele interveio, me agarrando com força.
— Se acalme! Eu não sou quem você pensa.
Arnaud Quinn havia ressuscitado dos mortos de alguma maneira, e estava lá, depois de muito tempo, pronto para me emboscar novamente. Eu me lembrava com clareza de nosso último encontro no interior do castelo de Pleven. Na ocasião, ele e a sua irmã, Maeve, me cercaram enraivecidos, tentando se vingar de mim pela morte da sua mãe adotiva, Adela. A vampira irlandesa tinha se liquefeito tão logo se banhou com o meu sangue em uma piscina. Ela esperava ganhar poder além da imaginação com o plasma arrancado das minhas veias. Em vez disso, encontrou a morte.
Espero que esteja queimando no fogo do Inferno!
Arnaud não tinha sido páreo para a minha experiência em combate e morreu estrebuchando no chão do castelo de Lucien Archambault, aos meus pés. Vê-lo ali saudável e com o pescoço intacto me causava uma sensação de trabalho incompleto, o que eu precisava corrigir.
— Não há de ser nada. Acabei com a sua raça uma vez, posso acabar de novo!
Eu o acertei com uma cabeçada que doeu muito mais em mim. Fiquei atordoada com o choque contra aquele crânio duro, então, ele estendeu uma das mãos para que eu me apoiasse ao me levantar. Samyaza agora trajava roupas comuns. Como da outra vez, a sua armadura esplendorosa desapareceu no ar e a albina nos assistia impassível, como se nada tivesse a ver com os nossos assuntos pendentes.
— Como voltou dos mortos, seu canalha? Eu matei você e a sua irmã. Eu vi ambos caídos, sem vida. Como conseguiu voltar?
Eu ainda estava tonta por conta da cabeçada. Cambaleei para trás e quase caí de bunda no chão. A batalha em Visoko havia me esgotado mais do que eu imaginava.
— Você atingiu Arnaud Quinn mortalmente, Alina, isso é um fato. Porém, antes que ele desse o seu último suspiro, eu pedi permissão para tomar o seu corpo e ele me concedeu. A figura que você enxerga é a do garoto francês, filho de Adela Quinn, mas a essência não. Ainda não consegue me reconhecer?
Havia um chiado de energia em torno do corpo definido que eu via diante de mim, além de uma espécie de aura frágil e dourada que o envolvia totalmente. Eu tinha captado aqueles sinais desconhecidos de energia apenas duas vezes na vida. Uma, na presença da própria Samyaza. Outra, na de Akanni.
— É você?
Ele fez que sim, alargando ainda mais o sorriso branco e caminhando em minha direção. Aquele tinha sido um dia muito fora dos padrões e parecia que só piorava.
— Eu pedi para que Samyaza fosse ao seu encontro em Visoko assim que percebi uma perturbação no tecido da realidade. Forças demoníacas agiam para distorcer as Linhas Ley da Terra e atrair você para uma armadilha. Eu não podia ficar apenas no papel de observador, então, invoquei a ajuda divina mais próxima de mim.
Meus olhos foram dos escuros do homem que falava comigo para os claros da albina atrás de mim. Samyaza permanecia imóvel, sem desviar a sua atenção de nosso diálogo.
— Se você é mesmo o Akanni, por que não foi me buscar pessoalmente? Por que precisou mandar Samyaza em seu lugar? E por que esperou que matassem o meu amigo André até que aparecesse?
As imagens de Filimon Ardelean castigando André Nascimento até a morte rodavam infinitamente em minha memória. Era como se eu ainda pudesse ouvir o seu crânio e a sua massa encefálica se desfazendo ante as pisadas violentas do filho de meu maior inimigo. Eu não conseguia me livrar daquelas lembranças.
— Eu não tenho mais tanto poder quanto antes, Alina. A minha graça é reduzida pela metade cada vez que recebo a chance de voltar à Terra. A comunicação pelas Linhas Ley demorou para chegar até mim. Mesmo com a minha concentração total. Samyaza era a única que podia alcançá-la com a rapidez necessária. Eu sinto muito por seu amigo feiticeiro...
A voz era a de Arnaud Quinn, o garoto arrogante que eu havia conhecido em meu primeiro contato com o Concílio de Sangue, há vários anos. No entanto, o gestual e as palavras eram as de Akanni, o anjo caído que me abriu os olhos sobre a possessão demoníaca da qual o meu irmão havia sido vítima e que me ofereceu ajuda para caçá-lo. Não havia mais dúvidas quanto a isso.
— Me... me desculpe. Você me salvou... se não fosse por vocês dois — e eu me voltei brevemente para a mulher-anjo ali perto. —, Sephiræd teria me liquidado a mando de Thænael. Não há mais qualquer resquício de Costel naquele corpo. Ele agora é uma criatura totalmente maligna. Nós temos que destruí-lo.
Samyaza, enfim, se mexeu de sua posição estática para caminhar até onde estávamos. Tocou o ombro do amigo Grigori e falou em seu tom de voz imponente:
— Eu fiz o que me foi pedido, agora preciso voltar para junto dos meus. Com Sephiræd de volta à Terra, eu tenho que comunicar a Uriael que ele tem uma nova missão por aqui. Retornarei para o conselho dos Santos Vigias e aguardarei por minhas novas ordens. Boa sorte.
Não houve aceno ou despedida. A albina simplesmente partiu dentro de um clarão de luz cuja onda sonora gerada quase estourou os meus tímpanos, me empurrando para trás. A figura de Arnaud Quinn me ajudou a levantar do chão com certa dificuldade e, quando a minha audição voltou ao normal, ele indicou a saída do beco antes de me guiar até lá.
— Sinto que lhe devo algumas explicações, Alina. Teremos algum tempo a sós até o nosso próximo destino. Eu vou lhe contar tudo que me aconteceu desde que Thænael destruiu a minha antiga casca mortal em Hîncesti. Você merece saber.
— O nosso próximo destino? Qual é o nosso próximo destino?
Ele apenas sorriu e pediu para que eu confiasse em sua orientação. Algum tempo depois, estávamos tomando um táxi rumo a Aberporth. O tráfego estava calmo àquela hora da noite nas ruas do País de Gales e, como ele mesmo havia dito, tínhamos muita coisa para colocar a limpo.
♦
A travessia de barco de Aberporth até uma região próxima da floresta de Glenarm, na Irlanda do Norte, levou várias horas, o que garantiu que Akanni e eu botássemos o papo em dia. Era terrivelmente desconfortável conversar amenamente com alguém que tinha o rosto do garoto que eu mesma havia ferido de morte, em uma batalha que eu tentei evitar a todo custo. A situação só piorava quando eu me lembrava quem era a sua mãe adotiva, e o que a desgraçada tentara fazer comigo apenas algumas horas antes do meu confronto definitivo com o rapaz.
Enquanto eu tentava me desassociar de meu incômodo com o seu novo corpo, a caminho de uma área de floresta densa a quarenta e sete minutos de Belfast, a capital do país, Akanni me contou que havia recebido a benção de seu comandante, Rafael, para caçar e destruir mais uma vez o seu filho nefilim, e que aquela era a sua última chance. Se falhasse, o anjo caído seria destituído completamente de seus dons angélicos e seria condenado a viver como um mortal na Terra.
Durante o período do seu retorno ao mundo que conhecia tão bem e o nosso reencontro conturbado no País de Gales, Akanni relatou que estivera à procura de Thænael obstinadamente e que não desistiu de sua missão em nenhum momento. Ciente de que havia um bruxo atuando em pró dos planos maquiavélicos de seu filho, e que esse mesmo homem agia em contato com as Linhas Ley terrestres, o anjo negro passou a usar de magia enoquiana para também se comunicar com as artérias de energia do planeta, foi quando ele me encontrou.
— Nós não tínhamos notícias suas desde a batalha de Montbéliard. Sabíamos que tinha conseguido escapar com vida da mansão de Lucien Archambault, mas não fazíamos ideia de onde estava todo esse tempo. Quando captei o seu sinal místico em Uluru e, depois, em Visoko, eu precisei agir rápido antes que as informações sobre o seu destino também chegassem ao conhecimento de Thænael. Foi aí que convoquei Samyaza.
Caihong Chen havia me explicado que era possível a comunicação mágica através das Linhas Ley, mas eu não entendia como aquilo funcionava. De acordo com as explicações de Akanni, tanto os bruxos do bem quanto os das trevas eram capazes de usar esse mesmo campo de energia a seu bel prazer.
— Esse bruxo, Kelvin Gallagher... ele também é capaz de viajar através do Entremundos? Ele pode acessá-lo?
— Talvez — respondeu-me o anjo. — De alguma maneira, ele consegue dialogar com a luz que emana dos dez Portais do Infinito e usá-la para localizar outros praticantes de magia por meio dela. Se ele é tão poderoso, não é impensável que possa viajar por esses portais.
Aquela elucubração me fez pensar em Iolanda Columbus e em como a velha bruxa havia aprendido a acessar o Entremundos, bem como a se camuflar por ele através das décadas.
— Mas, você se referiu a "nós" agora há pouco. Quem são esses "nós"?
Um sorriso enigmático foi a única coisa que recebi como resposta e não tocamos mais no assunto até que começássemos a seguir a pé por uma área ainda mais densa dentro da floresta. Ali, uma grande variedade de espécies arbóreas como carvalhos, freixos, faias, sicômoros, larícios-japoneses e abetos Sitkas cresciam em excelentes condições de solo e clima. No chão da floresta se via plantas como campânulas, primulas, e heras terrestres. Em torno da mata, numerosos riachos desciam pela lateral do vale para se juntarem ao rio Glenarm, formando faixas grandiosas de beleza natural através da floresta.
Era uma belíssima paisagem selvagem, e um esconderijo ainda mais eficaz para seres sobrenaturais.
Cinco minutos após passarmos por um arco de vegetação que se formava a quase cinco metros do solo, a minha audição captou vários batimentos cardíacos ao nosso redor, sobretudo, acima de nós, o que me botou em alerta. A noite já havia caído completamente no céu e, daquela distância da floresta, quase não podíamos enxergar as estrelas. Um grupo de pelo menos quinze homens nos cercou antes mesmo que déssemos mais dois passos. Um perfume almiscarado familiar me atingiu o olfato e eu tive a certeza de que estávamos chegando em território do clã Grealish.
— Sou eu, o Akanni. Podem baixar as armas.
Um homem alto e musculoso de tez preta saltou diante de nós de cima do morro lateral. Usava um colete em pele de cervo, tinha cabelos presos em tranças dreadlocks e começou a recolher na bainha em seu cinto um facão que empunhava. Ele se chamava Brian e cumprimentou Akanni cordialmente. Os homens à nossa volta também relaxaram as armas.
— Voltou antes que o previsto, Akanni. E vejo que trouxe companhia.
O sujeito forte me esquadrinhou de cima a baixo. Possuía um sotaque irlandês carregado e não parecia me conhecer. Nem eu a ele.
— Esta é Alina Grigorescu, uma antiga aliada nossa — disse Akanni, causando uma expressão de curiosidade no rosto do outro. — Mason ficará feliz em revê-la.
O clã Grealish era costumeiramente dividido em duas metades dentro do território do Reino Unido; uma delas, em West Ham, na Inglaterra, local que eu já havia visitado inúmeras vezes. A outra metade costumava residir em Dublin, na Irlanda, e era comandada pelos três filhos de Mason Grealish com a sua esposa Gretta; Brittany, Olympia e Wolf. Após a captura de Brittany pelas forças de Thænael, ficou a cargo dos dois mais jovens a liderança da alcateia irlandesa, o que imaginei ter se seguido após a batalha de Montbéliard.
— O que houve em Dublin? Por que vocês se mudaram para Glenarm? — perguntei a Brian, enquanto ele e mais oito de seus guardas nos escoltavam até a casa de Mason.
— Depois do que aconteceu em Montbéliard, houve um ataque do Concílio de Sangue ao nosso assentamento nas florestas de Dublin. Muitos dos nossos homens e mulheres pereceram em combate, mas conseguimos resistir. Depois disso, o nosso alfa decidiu mudar toda a alcateia remanescente para cá, em Glenarm. Desde que Akanni surgiu em nosso portão oferecendo ajuda há alguns meses, você é a primeira pessoa não-licantropa que deixamos entrar com vida em nosso território.
— Me sinto lisonjeada! — disse, num tom irônico que não foi captado por Brian.
Poucos minutos de andança depois, uma vila ainda mais rústica que a de West Ham surgiu iluminada por archotes e uma fogueira acesa bem ao centro do corredor de tendas e casas de madeira, todas construídas no coração da mata. Vários moradores locais se sentiram curiosos a respeito dos visitantes. A maioria deles era de rostos desconhecidos a mim. Brian conduziu a mim e a Akanni até uma tenda maior, erguida sobre troncos finos de madeira e lona. Lá dentro, em torno de uma mesa de reuniões de tampo irregular, encontramos o seio do clã Grealish.
— Alina, querida! Como é bom vê-la novamente!
Gretta, a matriarca da família, me envolveu em um abraço caloroso tão logo me viu entrar pela porta da tenda. Tinha cicatrizes nos braços expostos e uma aparência mais abatida.
— Também é bom vê-la, Gretta.
Tentei retribuir o abraço, mas era difícil envolvê-la toda com os meus braços curtos.
— Nem consigo acreditar que Akanni cumpriu mesmo a promessa de trazê-la de volta, Alina. Que bom que está aqui.
Foi a vez de Mason me abraçar. A exemplo da esposa, o chefe do clã Grealish jazia bastante abatido e outras cicatrizes em seu rosto tinham se juntado àquela que já cruzava o seu olho esquerdo quando o conheci em West Ham.
— Acho que temos muita coisa para conversar, Mason.
À mesa, do que restava da Tertúlia da Lua, ainda estavam a valente Bethany Green, que me cumprimentou com um aceno displicente e os dois filhos de Grealish, Olympia e Wolf. Eu fui apresentada aos irmãos antes de me oferecerem um assento, então, começamos a trocar informações a respeito do que havia acontecido desde a última vez que compartilhamos o mesmo ambiente.
Em uma narrativa concisa, o líder dos licantropos me informou que a batalha em Montbéliard tinha sido sangrenta e que ele e os seus aliados só escaparam com vida porque decidiram, em comum acordo, debandar do campo de batalha. Durante a luta ferrenha contra todo o poderio de Thænael e os vampiros do Concílio de Sangue diante dos portões da mansão Archambault, eles perderam mais da metade de seu efetivo, além de amigos próximos como Daniel McCready, Rupert Green e Janice Lampard.
— Eu sinto muito por isso, Mason — lamentei em tom de tristeza. — Quando avancei em direção a Thænael, eu só pensava em libertar Alex das garras infectas daquele amaldiçoado. Eu não medi as consequências de meus atos... eu coloquei a todos em perigo.
— Não se lamente por isso, Alina — disse Mason, ao centro da mesa de reuniões. — Mesmo que não o tivesse confrontado, não era a intenção de Thænael deixar que nenhum de nós saísse com vida daquela mansão. Nós seríamos obrigados a lutar por nossas vidas de qualquer maneira. Você só antecipou a ação.
— Além disso, era em nome da segurança da sua filha que estava agindo, Alina — concordou Gretta, amável. — Se eu estivesse lá, teria feito a mesma coisa para libertar Scott e Brittany.
A mulher corpulenta abaixou os olhos ao mencionar os dois filhos que, assim como Alexandra, também jaziam prisioneiros de nosso inimigo em comum. A dor que ela sentia com aquele afastamento era a mesma que eu compartilhava.
— E o seu pai, Bethany? — indaguei à garota de olhos estreitos sentada à minha frente. Num passado distante, ela e eu tínhamos sido rivais fervorosas, mas agora dividíamos o peso de estar do lado daqueles que defendiam o mundo de um mal muito maior do que a nossa contenda pessoal. — O que aconteceu com ele em Montbéliard?
— Quando a briga começou, ele e eu nos separamos. Me juntei aos dois irmãos Lampard para resistirmos a um grupo de Ardelean que nos atacou e não vi o que aconteceu com ele depois disso. Mal conseguimos escapar vivos daquele pandemônio. Eles eram muitos e começaram a atirar suas armas militares contra nós. Só descobri que meu pai estava morto algum tempo depois, quando retornamos ao terreno da mansão Archambault para recolher o que sobrara de nossos entes queridos e amigos de clã... eu nem mesmo sei quem o matou ou a quem devo redirecionar a minha vingança.
Aquela foi uma das poucas vezes que vi Bethany se emocionar. Ela tinha verdadeira adoração ao pai, Rupert, e a sua revolta nem mesmo podia ser apenas direcionada à morte dele. Além do progenitor, a loba perdera durante a guerra a melhor amiga, Janice, e vários de seus companheiros de combate em West Ham. Sem falar no noivo, Reece, que agora estava possuído por um nefilim-demônio.
Eu reconheço o ódio que arde na íris esverdeada de Bethany, pois é o mesmo que arde dentro dos meus olhos, pensei enquanto procurava engolir aquele sentimento amargo que mal me descia pela garganta.
Depois do relato de Bethany, foi a minha vez de sintetizar todas as aventuras que havia vivido do resgate feito por Thomas Blackwood na França, da minha passagem pelo Tibete ao lado de Caihong Chen, o meu retorno ao Brasil e a desastrosa viagem até Visoko. Ainda era difícil aceitar que André Nascimento havia sido brutalmente assassinado na minha frente, sem que eu pudesse fazer nada. Falar sobre aquilo em voz alta me doía mais do que ser apunhalada por uma adaga de prata.
Se eu fosse mais forte... eu não teria deixado que nada disso acontecesse, refleti, desolada.
— Você mencionou há pouco que esteve em contato com o nosso irmão, Reece, na floresta amazônica — Wolf era um rapaz gordo cujo rosto redondo brilhava rosado, iluminado pelos archotes do lado de fora. Tinha cabelos castanhos claros e olhos escuros. Vestia um casaco de pele que o deixava ainda mais corpulento, mas que, ao mesmo tempo, lhe dava alguma imponência. — Ele estava mesmo agindo a serviço de Thænael?
Todos estavam voltados para mim aguardando a minha resposta. Eu só conseguia me lembrar do licantropo loiro gigante tentando me matar em meio à selva, e em como Caihong Chen o atingiu com um vagalhão de pedaços de árvores, galhos e pedras para se salvar de sua fúria.
— Seja lá o que esteja controlando as ações de Reece agora, a verdade é que não restou nada de seu irmão dentro daquela casca, Wolf. Assim como não há mais nada de meu irmão, Costel, dentro de Thænael.
O menino gordo pareceu desapontado. Foi da sua irmã as próximas perguntas:
— Mas, e quanto a Scott e Brittany? O que foi feito deles? Você também os viu no campo de batalha?
Olympia Grealish era em quase tudo semelhante à mãe, exceto por seu porte físico avantajado. Tinha um corpo sinuoso, olhos esverdeados e cabelos crespos longos. As mãos eram grandes e ela tinha braços musculosos, com a pele dos bíceps marcada por cicatrizes de batalhas.
— Infelizmente, não — respondi pesarosa. — Havia dois lobisomens em Visoko que eu reconheci pertencerem à antiga guarda pessoal de Lucien Archambault. Foram os mesmos que capturaram Reece em Lyon, pouco depois de ele impedir que Alex e eu fossemos mortas na mansão de Montbéliard, em 1966. Mas não vi nenhum sinal de Scott ou de Brittany.
— Thænael deve tê-los guardado para um embate futuro, para quando estiver frente a frente com vocês lobos, Mason — era a voz de Akanni ecoando dentro da tenda. — Ele vai querer torturá-los psicologicamente quando chegar o momento. Deixá-los emocionalmente abalados. Por isso, não usará seus filhos em qualquer missão antes disso.
— Você acha que eles foram possuídos por demônios, como aconteceu com Reece? — indagou Gretta, com a voz embargada.
— Acho improvável — disse o anjo caído. — Eles ainda não têm todas as ferramentas necessárias para a abertura de um portal grande o bastante que traga legiões de nefilins para a Terra. Eles só podem invocar um nefilim de cada vez e, mesmo assim, isso exige um esforço descomunal do feiticeiro que realiza o ritual. Thænael deve ter dominado Scott e Brittany da maneira tradicional, com o poder de hipnose de Costel.
Naquele momento, me ocorreu que Thænael portava um dos cinco braceletes que formavam a Chave do Infinito, pouco antes de mandar que sua amante demoníaca, Sephiræd, me sacrificasse. De repente, o meu coração tamborilou rápido dentro do peito, irrigado por uma corrente sanguínea intensa.
— A chave... Thænael matou uma das guardiãs dos Portais do Infinito e tirou dela o bracelete em seu poder. Enquanto me torturava, ele tentou arrancar de mim a localização da chave que André Nascimento guardava... eu me recusei a dizer, por isso, ele mandou que me matassem. — Todos estavam atentos à minha observação. — Mas... e se ele conseguiu penetrar profundamente a minha mente a ponto de descobrir por si só onde a peça estava escondida? E se... E se Thænael descobriu que a metade da chave estava em Uluru, com os Anangu?
Todos os presentes se entreolharam. A possibilidade levantada por mim era bastante viável. Akanni estava inquieto ao meu lado.
— Thænael não medirá esforços para arrasar a tribo aborígene se tiver certeza de que o bracelete de André Nascimento está com eles. Nós precisamos impedir que ele consiga uma segunda parte da chave. Temos que detê-lo a qualquer custo.
Os Grealish começaram a preparar um esquema militar para a nossa viagem rumo à Austrália e, conforme eles planejavam a nossa investida riscando mapas da região e posicionando pedras sobre o papel para simular tropas rivais e aliadas numa possível zona de batalha, alguém surgiu diante da tenda, adentrando o local sem cerimônia. Um rapaz de cabelos castanhos claros, olhos escuros e pele pálida caminhou até a cabeceira oposta da mesa. Pousou a mão direita sobre ela e chamou todas as atenções para si.
— O que está fazendo aqui, Anton? Você não tem permissão para interromper as nossas deliberações — Mason não parecia satisfeito com a entrada intempestiva do garoto. Com um ar de arrogância muito comum aos de sua prole, ele então disse:
— Se vocês pretendem ir atrás do demônio que matou o meu pai e que está usando a minha mãe como a uma escrava, nada vai me impedir de acompanhá-los.
Anton Archambault franziu o cenho antes de ejetar as presas vampiras da boca, em uma postura tipicamente rebelde. Assim como todos em torno daquela mesa de reuniões, ele tinha motivos de sobra para querer vingança contra Thænael.
—Bem-vindo ao clube, garoto — disse a ele, com um olhar de confiança no rosto.
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