Capítulo 16 - Antes do adeus
SOCOTRA ERA UMA ILHA exótica situada no Oceano Índico, conhecida por sua biodiversidade única e paisagens deslumbrantes. Famosa pela vegetação peculiar que não era encontrada em nenhum outro lugar do mundo, a ilha tinha como símbolo principal as árvores de dragoeiro, cuja aparência distinta e formato de guarda-chuva, ajudavam a compor a atmosfera quase surreal que permeava aquele ponto do mundo.
Algumas áreas de Socotra possuíam um visual que lembrava cenários extraterrestres. Rochas calcárias e formações geológicas criavam um ambiente intrigante e, à primeira vista, era como se André Nascimento e eu tivéssemos mesmo desembarcado em outro planeta.
O clima da ilha era extremamente árido mesmo à noite, e o calor era quase tão insuportável quanto o da floresta amazônica, no Brasil. Assim que saímos do Portal do Infinito, guiados magicamente por Aodh o caminho inteiro, nos deparamos com uma praia de areia branquíssima e águas cristalinas que refletiam o luar. Dali, era possível testemunhar a beleza da agitação das ondas contra as falésias, além do colorido extraordinário das plantas únicas do local.
O meu companheiro ainda não havia se recuperado totalmente dos ferimentos causados pelos descendentes de Dumitri Ardelean no estado do Acre. Andava com dificuldade e fazia caretas com qualquer esforço além do comum para se movimentar. Eu não estava nem um pouco acostumada àquelas viagens dimensionais e ainda me sentia desorientada em meio ao clima seco da ilha africana, quando o vi apontar para uma direção mais ao norte, me mandando segui-lo.
— O esconderijo de Eleonor fica naquela direção. Deve dar alguns quilômetros a pé. Se prepare.
Guiados apenas pelas estrelas que pontilhavam o céu escuro sobre nós, André e eu alcançamos uma casinha escondida por árvores de casco grosso. A película espessa que cobria a vegetação era impregnada de seiva, vitimando alguns insetos que nela pousavam inocentemente. Desviamos de alguns cipós antes de adentrar a área mais escura da mata que desembocava adiante, então, alcançamos uma porta de madeira, onde jazia gravado um símbolo rúnico na parte superior, acima de nossas cabeças. A casa de Eleonor Bridge era a típica morada das bruxas das histórias clássicas infantis que eu lia para Alexandra em nosso château em Vaucluse, nos anos cinquenta.
A fechadura não apresentou qualquer resistência ao empurrão do ombro de André. Tão logo a dobradiça gemeu ante o peso da porta, nós entramos por uma sala de piso amadeirado, onde a desorganização de móveis e objetos pessoais indicava que ninguém habitava aquele lugar há bastante tempo.
— Era o que eu temia. Eleonor foi raptada. Eles chegaram a ela antes de nós.
A minha audição sensível captou movimentação no aposento que ficava ao lado da sala e avisei André para que se preparasse. Eu conseguia ouvir passos diminutos vindos do quarto onde a bruxa irlandesa dormia, além de uma espécie de cauda envolta em um casco a arranhar levemente o piso. Era pequeno demais para que representasse perigo, e a teoria se concretizou quando um lagarto de couraça colorida se apresentou à porta.
— Drago, garoto! Você está vivo!
O animal que servia como âncora mística para a bruxa irlandesa era um camaleão-do-Iêmen, um réptil de cores vibrantes que possuía uma crista casqueada proeminente em sua cabeça, além de olhos independentes que podiam se mover e focalizar em direções diferentes, lhe dando visão panorâmica ampla do ambiente ao seu redor.
O aproximadamente quarenta centímetros de comprimento. Tinha o corpo alongado e delgado, e a sua cauda preênsil o auxiliava na locomoção por entre galhos, o adaptando à vida arbórea. Assim como a maioria dos bichos que moravam naquela ilha, o camaleão estava acostumado ao clima árido e sabia se virar em áreas com vegetação escassa.
— Você pode conversar com o lagartinho aí e perguntar o que aconteceu à dona dele?
André estava de testa franzida quando me encarou, ainda pouco acostumado com o jeito sarcástico com que eu tratava certas práticas místicas que ele e o outros membros do conciliábulo tão bem executavam em seu dia a dia. No momento seguinte, quando concluiu que já havia me deixado suficientemente desconfortável com a sua desaprovação às minhas atitudes negacionistas, ele sentou-se mais uma vez em posição de lótus no chão para iniciar o diálogo psíquico .
Aproveitei aquele tempo para sondar o entorno da casa de madeira, verificando se meus sentidos especiais conseguiam detectar algum vestígio deixado pelos sequestradores. Não precisava ser nenhum gênio para perceber a quem os raptores de Eleonor estavam servindo, mas era crucial saber se tinham obtido o grande prêmio que a mulher escondia: a terceira metade da Chave do Infinito.
Muitas semanas tinham se passado desde que os agentes de Thænael desembarcaram em Socotra. Naquele período, qualquer marca, pegada, cheiro ou mesmo resíduo humano se perdeu no tempo, empurrado pela areia abundante que reinava naquele lugar alienígena.
Voltei para o interior da cabana frustrada e encontrei André em pé, a sobre um móvel lateral que se assemelhava a uma estante de livros.
— O próprio Thænael esteve aqui. Ele estava acompanhado de dois dos filhos de Dumitri Ardelean e mais uma tropa de dez vampiros de seu clã. Torturaram Eleonor com lâminas e outros instrumentos perfurocortantes. Mesmo com a sua resistência psíquica, eles conseguiram arrancar dela a localização da sua metade da Chave do Infinito e as coordenadas para se chegar até Caihong Chen no Tibete. De alguma maneira, eles se tornaram indetectáveis para a magia. Conseguiram se manter ocultos vigiando a cabana de Chen e suas ocupantes.
— Você acha que eles seguiram nós duas do Tibete até o Brasil? — perguntei, intrigada.
— Não descarto essa possibilidade — respondeu o brasileiro, direto.
— Faz semanas que eles levaram Eleonor de casa. Se eles estavam seguindo a gente esse tempo todo, por que não tentaram roubar a metade da chave que estava com Chen antes, André? Por que eles esperaram tanto tempo para nos atacar na floresta?
— Thænael sabia que nenhum de seus acólitos conseguiria arrancar o bracelete das mãos de Caárani facilmente, por mais força bruta que tivessem, Alina. Eles precisavam que eu entrasse em contato com o espírito da floresta antes de obter o artefato, e só quando viram Chen com os dois braceletes é que decidiram entrar em ação.
Aquela hipótese me causou um enorme desconforto. Drago parecia estático sobre o móvel. Num piscar de olhos, movimentou a língua comprida para fora da boca. Então, tornou a se fingir de estátua.
— Mas onde está a metade da chave que Eleonor guardava?
Eu olhei à minha volta, pronta para revirar ainda mais aquele lugar. Porém, percebi a animosidade de meu acompanhante.
— Enquanto velava o seu sono no Vilarejo Belintash, Chen e eu conversamos através do plano astral. Além de Alanna, apenas ela sabia exatamente onde encontrar cada uma das metades da Chave do Infinito. Cada guardião era obrigado a manter em sigilo a localização da peça sob a sua proteção, e mais ninguém deveria saber a esse respeito. Caihong era a amiga mais próxima de sua bisavó, Alina. Ela temia que os ferimentos causados por Reece Grealish a matassem, por essa razão, me revelou a localização dos demais itens antes que isso acontecesse.
— Você vai me contar?
Ele fez ar de mistério. A língua de Drago voltou a ser expelida por um microssegundo naestante ao nosso lado
— Eleonor nasceu na Irlanda, mas passou mais da metade da infância e da adolescência em Veneza, na Itália. A sua mãe era uma bruxa conhecida na região e treinou a filha para seguir os seus passos, muito antes de ambas conhecerem o Conciliábulo Dubhghaill. Segundo o que Chen me contou, Eleonor guardou a sua metade da chave em uma câmara submersa, sob as águas venezianas. Ninguém além dela mesma seria capaz de resgatar o objeto. Assim como eu comando o elemento espírito e Chen a terra, Bridge domina a água. Mesmo que Thænael a raptasse e a obrigasse a dizer onde ela escondia o bracelete, ninguém mais poderia pegá-lo.
— Se a chave nunca esteve em Socotra, por que você nos trouxe até aqui?
— Quando a horda de Thænael nos alcançou no Brasil, eu senti que algo maligno havia acontecido à Eleonor e à Pietra. Quando encontramos a casa de Pietra em Machu Picchu revirada e a sua âncora morta, eu precisava conferir com os meus próprios olhos que Eleonor também estava sob ameaça. Agora eu tenho certeza disso.
André apontou para o camaleão. Os olhos do réptil pareceram nos encarar concomitantemente, mesmo com cada um de nós em uma das extremidades da cabana.
— Se Thænael forçou Eleonor a pegar o seu pedaço da chave em Veneza para entregá-lo a ele, talvez isso signifique que o miserável tenha encontrado um modo de ativar sozinho o artefato. É possível que ele não precise mais de mim para acionar o seu poder.
— Não temos como saber, Alina — afirmou André. — O fato é que, uma vez realizada a sua tarefa em Veneza, Eleonor se tornou descartável para o nefilim. Nós precisamos localizá-la antes que seja morta por ele...
Algum tempo depois da nossa chegada ao Iêmen, André preparou o encantamento para nos conduzir através do Entremundos. Diferente do que eu pensava, os animais de estimação de qualquer um dos guardiões podia servir de âncora a outros feiticeiros, de modo que o brasileiro usou a conexão psíquica com o para que viajássemos em segurança, desta vez, até Salisbury, na Inglaterra.
Com o desaparecimento das guardiãs de Socotra e Machu Picchu e com a região de Uluru, na Austrália, desguarnecida pela ausência de André, mais da metade dos portais cobertos pelas Linhas Ley da Terra jazia sem defesa, o que significava que os nossos inimigos podiam se aproveitar dessa fragilidade. Quando pisamos em Salisbury, no Condado de Wiltshire, a ideia era juntar forças com Thomas Blackwood, o mais velho dos feiticeiros ainda em atividade. Entretanto, descobrimos que podia ser tarde demais.
Fazia mais de um ano que eu havia estado naquele país e as lembranças ainda eram vívidas de como eu fora salva da morte pelos rituais de cura praticados por Blackwood, e de como o velho britânico me mandara em uma missão só de ida até o Tibete, para que eu conhecesse Caihong Chen.
Diferente da última vez, André não me levou até o monumento megalítico do Stonehenge, mas sim para um castelo pequeno erguido ao sopé de uma montanha próxima, onde fomos recepcionados à porta por um jovem de aparência frágil e com forte sotaque inglês.
— Entrem. Ele me alertou que vocês viriam visitá-lo.
O rapaz era magro e pálido em demasia. Trajava uma toga escura furada por traças e a sua pele exalava a ervas do campo. Tinha olhos acinzentados, cabelos ralos e lábios finos. Nos conduziu pacientemente por um conjunto grande de escadas e chegou esbaforido à porta de um quarto, ao final do corredor. Lá dentro, a escuridão total só era combatida pela luz fraca de um candeeiro preso na parte mais alta da parede leste. Ao centro do aposento, uma cama de solteiro servia de leito de morte para um já combalido Thomas Blackwood. Em seus últimos momentos de vida.
Seus olhos fitaram nós dois tão logo nos encaminhamos para diante de sua cama. André posicionou-se a seu lado direito. Eu, do esquerdo.
— O que houve, velho amigo? O que está fazendo deitado nessa cama?
Era uma pergunta para a qual André já sabia a resposta. O brasileiro segurou uma das mãos do velho barbudo firmemente com as suas duas mãos. Sentou-se a seu lado e inclinou o corpo para ouvi-lo mais uma vez.
— É chegada a hora da minha partida, caro amigo. Fui abençoado por uma vida longa e proveitosa mas agora eu devo seguir para o meu descanso eterno. O meu tempo aqui acabou.
Blackwood respirava com extrema dificuldade e a sua voz soava fraca. Ele estava ainda mais debilitado do que em nosso último encontro, e quase já dava para sentir o fedor da morte se aproximando daquele quarto.
— Chen está ferida, Eleonor foi raptada, Pietra está desaparecida... os nossos inimigos estão ganhando cada dia mais território, Thomas. Eu não sei o que devo fazer... eu o procurei para que me orientasse, me guiasse...
O rapaz magro saiu do quarto sem que nós o víssemos. Me sentei em um banco do outro lado da cama e procurei ler os pensamentos de Blackwood. Estavam claros como água.
— Eu não posso mais ajudá-lo, André. Passei adiante todo o conhecimento que pude a meu aprendiz. Agora, será Conor quem os guiará com o que precisarem. Ele é quem vai proteger o portal do Stonehenge em meu lugar...
Uma tosse interrompeu o velho bruxo e a sua feição de sofrimento deixou claro que era cada vez mais difícil respirar. Logo em seguida, ele se voltou em minha direção e esboçou um sorriso quase débil.
— Minha querida... vejo o quanto você cresceu. A aura ao redor de seu corpo está mais luminosa, mais poderosa... Caihong fez um excelente trabalho.
— Eu não consegui protegê-la e nem aos portões, Thomas. Eu ainda não sou forte o suficiente... eu preciso de mais tempo...
Blackwood fez um meneio e, naquele momento, foi como se ele estivesse se despedindo de nós. O britânico não tinha me dito nada verbalmente, mas os seus pensamentos me alcançaram com muita nitidez, me dando a certeza de que aquele não era o fim.
"O espírito é um dos elementos naturais que dão poder a um bruxo, Alina. A sua bisavó me ensinou a usá-lo e tenho certeza de que você também será capaz. Eu, Alanna e todos os outros sempre estaremos com você... sempre..."
A partida de Blackwood foi mais triste do que eu podia admitir. Eu havia convivido pouco com o homem, mas compreendia o infinito valor que ele possuía para a convenção criada por minha bisavó, e o quanto a sua experiência significava para todos eles.
Durante a preparação do corpo e a sua cremação, Conor Rice esteve presente o tempo todo e o rapaz aparentou muita serenidade enquanto nos acompanhava. Em seu ombro, estava empoleirado um pássaro de cabeça branca e penugem marrom no restante do corpo. Avalon, a águia-real que servia de âncora para Blackwood no Entremundos, agora pertencia a seu pupilo.
— O mestre me preparou para auxiliá-los com o que precisarem — disse ele, logo após o funeral, já na imensa biblioteca do castelo onde Blackwood morava. Avalon estava sentada no beiral amplo da janela a nos observar. — Ele me informou que os dias de trevas estavam prestes a chegar, e que vocês viriam atrás de um artefato especial que ele mantinha sob a sua proteção.
Conor deu-nos as costas. Apoiou um banco de três pernas numa das prateleiras mais baixas da estante larga atrás dele, em seguida, alcançou uma caixa pesada de madeira que ele pousou sobre a mesa de carvalho entre nós. André e eu nos entreolhamos, surpresos. Quando o garoto destrancou o cadeado que lacrava a caixa, as nossas suspeitas se confirmaram.
— O bracelete de Blackwood. Ele manteve guardado aqui esse tempo todo? Em uma caixa vagabunda de madeira?
Conor encenou um sorriso e me respondeu:
— O bracelete estava guardado na casa onde ele passava algumas temporadas no Entremundos. O mestre mandou que eu o apanhasse e o trouxesse para cá há duas noites. Ele sabia que vocês viriam pegá-lo. Thomas sentiu uma perturbação nas Linhas Ley não tem muito tempo. Sabia que os amigos corriam perigo.
Ameacei botar a mão dentro da caixa para apanhar o bracelete acobreado, mas André foi mais rápido. Pegou o objeto e o fixou ao próprio pulso direito. Sentiu dor com o contato do metal em sua pele.
— Então, você aprendeu a abrir fendas dimensionais para o Entremundos? — quis saber André. — Sabe fazer isso sozinho?
— Sei — respondeu o garoto. —, mas ainda não sou forte o bastante para mantê-las por muito tempo. Mesmo com o elo entre mim e Avalon estabelecido, ainda é difícil concentrar tanta energia para executar a abertura e a transposição entre os portais de maneira eficaz.
Embora eu não soubesse na época, Rice já vinha sendo treinado por Blackwood há pelo menos dez anos, desde que o feiticeiro sobrevivera a um ritual satânico comandado por Kelvin Gallagher e a sua Ordem Negra. Mesmo assim, para os padrões do Conciliábulo, ele ainda era um novato.
— Se você tem acompanhado Blackwood nos últimos meses, você deve saber que estamos em guerra com uma entidade diabólica chamada Thænael, e que ele pretende usar os Portões do Infinito para trazer uma legião de demônios para a Terra.
Rice fez que sim.
— Blackwood tinha alguma ideia de como encontrar Thænael ou como podemos chegar o mais próximo possível dele sem sermos detectados?
— Não exatamente — respondeu o garoto, indo até a estante de livros raros e puxando um volume com capa vermelha de couro de lá. — O mestre mencionou um feitiço que pode ser conjurado para antecipar a aproximação de criaturas que já estiveram nas fossas infernais, ou que tiveram contato com quem esteve lá. Se pudermos ampliar os efeitos desse encantamento, temo que possamos encontrar Thænael e seus aliados.
Era uma boa notícia e André achou que valia a pena tentar. Enquanto os dois começavam a preparar os ingredientes para a feitura do feitiço indicado por Rice no livro, Avalon se agitou em seu poleiro, abriu as asas e alçou voo janela afora. A águia-real era o maior pássaro que eu já tinha visto pessoalmente, e também o mais majestoso dos animais.
Enquanto acompanhava o voo da águia nos céus da Inglaterra, a minha mente se enchia de dúvidas e incertezas. Em especial, quanto à mensagem final de Blackwood em seu leito de morte.
O que será que ele quis dizer sobre eu aprender a usar o espírito, e como isso pode me ajudar na batalha contra Thænael?
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