Capítulo 1 - Provação tibetana
EM 1972, OS LÍDERES dos Estados Unidos e da União Soviética assinaram o Tratado de Limitação de Armas Estratégicas — SALT I — como parte do Acordo de Moscou, um ajuste entre os principais representantes mundiais que limitava o número de mísseis balísticos intercontinentais e sistemas de lançamento de mísseis que cada país poderia possuir, reduzindo as tensões na Guerra Fria.
O SALT I foi assinado em Moscou em 26 de maio daquele ano, e foi um marco importante nas negociações entre os Estados Unidos e a União Soviética, visando apaziguar as tensões cada vez mais crescentes entre os dois lados daquele conflito desde o final da Segunda Guerra Mundial.
Enquanto o mundo parecia tomar um fôlego extra ante o relógio do juízo final com o acordo firmado entre as duas grandes potências nucleares, para nós, os monstros que viviam à margem dos mortais, o panorama não podia ser mais desesperador.
Após a batalha de Montbéliard, eu perdi todo e qualquer contato com os meus aliados do clã Grealish. Mason, o patriarca dos licantropos britânicos, estava além do meu toque psíquico. A minha filha, Alexandra, também jazia desaparecida. Raptada pelos vampiros do Concílio de Sangue... brutalizada... ou, talvez, morta.
Durante o meu embate direto contra Thænael, o nefilim que habitava o corpo vampiro de meu meio-irmão, Costel Grigorescu, eu fui ferida mortalmente. Apenas o que os religiosos chamavam de "milagre" explicava que eu ainda estivesse viva após ser trespassada por uma lança africana.
Salva na última hora pela magia de teletransporte de um homem que eu conhecera brevemente em meu passado de aventuras, fui conduzida a um lugar inóspito, muito além dos limites do que conhecia como realidade. Lá, eu fui curada. Thomas Blackwood, era um feiticeiro que, antes mesmo de eu nascer, já fazia parte do Conciliábulo Dubhghaill, uma convenção de bruxos poderosos de várias nações que usavam os seus dons para manter o tecido da realidade intacto.
A minha bisavó, Alanna, era a líder desse conciliábulo. Pelo que eu tinha lido a seu respeito — tendo em vista que nunca a conheci pessoalmente e, até pouco tempo, nem sabia quem ela era —, a mulher não só era a mais poderosa entre seus pares, mas também, a responsável direta por manter o nosso plano terreno longe das ameaças externas que tentavam a todo custo vencer as barreiras que os mantinham do lado de lá.
Blackwood era um dos remanescentes dessa convenção de bruxos e, como súdito fiel de minha bisavó, tão logo ele me transportou de seus domínios em Salisbury, ele também me deu um novo propósito de vida. Uma coordenada marcada como em brasa em meu braço me indicava a direção. Eu só precisava segui-la.
♦
Em 1972, o Tibete estava sob o regime da República Popular da China, e a ocupação chinesa gerava tensões políticas e culturais significativas na região. Durante esse período, o governo chinês implementava políticas que visavam integrar o Tibete ao restante da China, promovendo uma campanha chamada "Reforma Democrática". A ideia era reestruturar as instituições sociais e econômicas do Tibete de acordo com os princípios socialistas da China.
Essa reforma, de um modo bem amplo, incluía a coletivização de terras, a supressão de instituições religiosas e a promoção da ideologia comunista, limitando até mesmo as informações disponíveis sobre a situação do país naquela época. Com isso, a liberdade cultural dos tibetanos fora severamente afetada, e muitos tibetanos enfrentaram restrições em suas práticas religiosas e expressões culturais.
Eu cheguei ao Tibete dois dias após a minha saída da Inglaterra. Devido às diversas escalas de voos entre os continentes e paradas estratégicas por causa do mau tempo, só consegui botar meus pés em solo asiático quase vinte e quatro horas além do previsto.
Eu não tinha qualquer informação a respeito da região exata onde Caihong Chen morava, e só por meio de mapas e guias de viagem, eu consegui transformar as coordenadas em meu antebraço em uma direção minimamente compreensível. O Tibete era um território dentro da China que compreendia quase dois milhões de metros quadrados e, num primeiro momento, era como se eu tivesse caído em um palheiro à procura de uma agulha.
O que diabos eu estou fazendo aqui?
Eu tinha problemas de comunicação por conta do idioma que eu não dominava. Todas as minhas tentativas de me fazer entender pelas pessoas que encontrava pelo caminho eram através de gestos ou mímica. Até que simplesmente desisti, quando percebi que estava perdendo o meu tempo. Seguindo um guia impresso de viagens mais por intuição do que qualquer outra coisa, acabei chegando até o sopé do Monte Kailash, e a visão que tive de baixo da montanha era surreal. Eu estava prestes a subir um dos picos mais altos do mundo e respirei fundo antes de dar o primeiro passo.
Caihong Chen, aí vou eu!
Eu tinha me preparado para temperaturas negativas com um casaco de pele grosso e forrado, mas quando atingi certa altura da inclinação diante de mim, percebi que até mesmo a minha estrutura física vampírica tinha seus limites. O ar naquela altitude era rarefeito e, apesar da sensação de mistério e serenidade que o clima congelante proporcionava ao cair da noite, respirar era como espetar centenas de agulhas nos meus pulmões.
As montanhas em meu entorno se elevavam imponentes, com picos nevados que pareciam tocar o céu. Mesmo no breu, eu conseguia enxergar perfeitamente os vales verdejantes que rodeavam as cordilheiras do Himalaia, todavia, a sensação de frio extremo incomodava bastante, dificultando até a minha percepção de espaço.
Por saber de antemão das condições climáticas que enfrentaria, eu havia carregado pouca bagagem. Levava comigo apenas uma mochila com os itens mais importantes nas costas, além de pares extras de luvas e toalhas. Nos picos mais altos do Himalaia e em altitudes extremas acima dos sete mil metros, a velocidade dos ventos podia exceder os cento e sessenta quilômetros por hora e, naquele dia em específico, enquanto eu subia a montanha com extrema dificuldade de locomoção, eu estava sendo atingida por algo em torno disso.
Há muito tempo, eu tinha lido em um artigo de revista que os alpinistas mais experientes com equipamentos apropriados e uma aclimatação[1] adequada podiam atingir altitudes de cerca de oito mil metros ou mais em pontos como o Monte Everest, por exemplo. Eu não era alpinista e nem tinha sido treinada para um desafio como aquele, mas sentia em meu âmago, de alguma forma, que precisava passar pela experiência, uma vez que estava disposta a qualquer coisa na esperança de deter o nefilim que habitava o corpo de meu meio-irmão.
Eu só espero estar viva ao final da minha jornada ao Monte Kailash para comprovar que a minha intuição não falha nunca...
Próximo da altitude limítrofe que os especialistas chamavam de "oito milers", eu senti que a diminuição da disponibilidade de oxigênio começava a me afetar, embora eu não necessitasse de tal componente tanto quanto um humano comum. A condição climática hostil prejudicava gravemente o meu senso de orientação e, num dado momento, comecei a pensar que estava ouvindo uma voz me chamar.
"Siga em frente. Você está quase chegando a seu destino. Não desista".
Eu já não sabia mais quanto tempo havia passado desde a minha última tentativa de comunicação com um tibetano no sopé da montanha, ou o que estava tentando provar com aquela escalada rumo ao desconhecido. O vento me cortava o rosto com tanta força que eu sentia como se uma camada de gelo tivesse substituído a minha pele. Era como se eu fosse craquelar até cair aos pedaços no chão de neve.
"Mais um pouco. Quase no seu destino. Aguente mais um pouco".
A voz ecoava dentro do meu cérebro. Eu gemia de dor, sentindo como se meus membros pesassem toneladas à medida que dava passos pequenos, com os pés afundando na neve. O vento assoviava em meus ouvidos tentando me jogar do alto. Era preciso um equilíbrio muito grande para não ser vencida por ele.
"Você está quase lá. Não desista. Só mais um pouco".
A minha mente estava ainda mais confusa pela falta de oxigênio. O meu coração disparou dentro do peito quando me ajoelhei na neve, fraquejando. Tentei me manter firme em meu caminho, obedecendo a voz que ecoava em minha cabeça mandando que eu não desistisse. Mas, por fim, eu fui vencida pelas intempéries daquela montanha maldita.
Eu... não aguento mais...
[1] Aclimatação se refere a uma adaptação ou ajustamento a certo ambiente. No caso aqui específico, as montanhas nevadas.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top