Desabafos de Quarentena
Sonhei que pegava o ônibus. Sonhei que pegava o trem na Sé às seis da tarde. Sonhei que estava em uma festa. Sonhei que abraçava meus amigos e os cumprimentava com um beijo no rosto. Sonhei que abraçava meus sobrinhos. Sonhei que saía sem máscara. Sonhei que beijava na boca.
Acordei aflita.
Todas as coisas que antes me deixavam com o coração quentinho agora me deixam com um frio na barriga.
Conto para o meu namorado. Choro. Ele diz que preciso conversar com a minha psiquiatra, que eu não estou bem. Ela diz que eu estou ansiosa, mas é normal. Não deveria ser. Aumenta minha dose de fluoxetina.
Já conheço minha casa bem demais, todos os cantinhos. Montei uma academia no meu quarto. Já fiz ballet, musculação, escrevi, e fico tomando sol nas únicas horas que ele entra pela janela. Já mudei todos os móveis de lugar, assisti todos os programas do Netflix, li todos os livros da estante e tem mais encomendados. Já limpei cantos da casa em que a poeira acumulava há anos.
Tomo meu remédio e coloco a minha máscara. Já tenho uma coleção. Fico me perguntando o que farei com todas elas assim que isso acabar. Espero que seja logo.
Vou à farmácia, vou ao mercado.
As ruas estão vazias, as pessoas não se aproximam mais. Não há mais contato físico, não há mais afeto.
Não têm mais álcool nas prateleiras.
Não há tapetes na frente das casas. Os calçados ficam do lado de fora.
Ninguém sorri. Não que dê para ver por baixo do pano que cobre o rosto.
Volto para casa. Esterilizo as compras, a chave, a maçaneta, o cartão, os óculos, o celular.
Tiro a roupa toda na lavanderia e entro no banho. Choro.
Não posso ficar doente. Minha mãe é asmática, meu pai é idoso. Sinto saudades da minha família.
Meu namorado vem me ver e eu mando ele direto para o banho. Estou feliz, mas com medo por ele. E se ele ficar doente? E se a família dele também ficar?
Choro. Ele pergunta se eu estou tomando o remédio, que vai ajudar.
Ele vai embora quando já é tarde.
Eu tomo o remédio.
Estou ansiosa. Desligo a televisão que diz que somos o epicentro da doença e conta que estamos morrendo.
Durmo com a ideia de que estou vivendo um filme de terror.
Durmo com saudades.
Sonhei que pegava o ônibus.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top