Ferrugem e Picolé - Parte I




Por Ferrugem...

Essa coisa de apelido era o que mais rolava nos anos 80 e 90 com a gente. Na minha sala tinha o Bocão, o Suvaco, o Bacalhau, a Japa, a Pati Carneiro (seus cachos lembravam uma ovelhinha mesmo) e também tinha outros menos mencionáveis. 

Ah, tinha um bom: o Pomba. Foi nosso primeiro colega a ver uma menina pelada, aí seu apelido era algo que o tornava o ser supremo.

Chegou minha vez de confessar, eu tinha um apelido também: o Ferrugem. Eu achava maneiro e curtia à beça.

Esse lance de apelidar, geralmente não muda. Os amigos olham alguma característica que se destaca em você e te "botam" a nomenclatura e se não gostar, azar seu, porque a galera vai te perturbar mais ainda.

Aí alguém pergunta: Oh Ferrugem, o que eu faço se me apelidarem de Peidão? Eu respondo: Ahhh, queria eu ter essa alcunha, seria o auge! Eu só mandava meus chegados: segura o cara que me apelidou que vou soltar "o vento" na cara dele. 

Então, tá respondido?

Era por aí que aconteciam as coisas e mesmo sendo eu o cara descolado e maneiro na minha adolescência, teve um período que não tirei de letra com facilidade. Digamos que foi coisa de primeiro amor. Ah, que coisa brega. Foi isso, culpa do Picolé.

Ah, o meu Picolé. Chupar Picolé é muito bom, sempre foi...

Ele tinha um nominho difícil, daquele tipo que o pai decide que o filho vai ser sua continuação e mete um Júnior no final pra não ser tão odiado. Alcebides. Alcebides. Falando muitas vezes não é tão estranho e a gente até acostuma. Ele odeia.

O meu é melhorzinho: Fernando. Tem muitos Fernandos por aí. Podiam ter me apelidado de Nando, mas tem também muitos Nandos e cada Fernando é único, podem acreditar. Por isso eu curto "o Ferrugem" até hoje, já beirando os quarenta e com essa cabeça de moleque porra louca.

Eu e minha turma éramos os terrores daquele bairro. Eu mesmo quebrei o braço duas vezes só de "empacotar" morro abaixo com meu carrinho de rolimã. Podia estar quebrado, mas a mãe juntava por um braço e descia a cinta nas costas. Claro, ela se preocupava e eu tinha mais três irmãos com pouca diferença de idade.

Ah, bons tempos...

Mas voltando ao Picolé...

O cara albino era a pessoa mais estranha fisicamente que já tinha visto e me chamou a atenção demais. Eu tinha uns treze anos quando o vi direito, apesar de sempre ter morado perto da minha casa.

Sua casa era bem grande, sua família tinha boas condições financeiras e ele ia para a escola de carro. Nem em finais de semana eu o via, nem que quisesse porque sua casa tinha muros altos e por ali era a única assim. Isso era um baita incentivo para apertar a campainha e sairmos correndo. Na minha casa tinha um cercado de estaca de madeira bem caprichado, mas era baixo, cheio de grama e as flores da mãe.

Ninguém sabia o nome do guri e logo eu tratei de arrumar um pra sabermos quando falávamos dele: o Picolé.

Sei lá por que. Sei que ele era albino, o primeiro que conheci e ele era tão único que nem mesmo seus familiares pareciam seus parentes. Eu morria de vontade de fazer amizade só para perturbar o cara, mas só um ano depois quando entramos no ensino médio que nos conhecemos. Eu estava me coçando para chamar o cara de Picolé e começar a gozação, imaginando aquela brancura ficar vermelha e ele chorar... 

Eu era bem filho da puta... mesmo minha mãe sendo uma recatada dona de casa.

O tal guri que tinha também quinze anos, era filho de uma professora da rede estadual e por isso ele foi transferido para a rede pública.

"Merda", como eu ia azucrinar o cara? Isso meio que perdeu a graça por essa fase e eu não era mais tão bosta, já estava largando mão de ser o Ferrugem (o peste) e aprendendo a ser o Fernando (gente). Meus cabelos cacheados e volumosos que pareciam estar pegando fogo, não tinham mais tanto charme como tinham na infância e minhas sardas não eram mais tão legais. Eu sabia que não atendia ao padrão de beleza comum, sendo ruivo e muito sardo na adolescência, mas nunca tive problemas de relacionamento, fossem amizades ou as primeiras paqueras. Já o Alcebides, o Picolé, que nem sonhava que fora apelidado assim, não se enturmava. Isso o tornava ainda mais esquisito.

Mas um dia o vi rindo. 

E daí?

Eu fiquei estranho, foi isso.

Que coisa eu sentia pelo Picolé? Afinal era o único cara com cílios brancos e braços densamente peludos, algo que atraia meu olhar, me traindo quando eu não queria olhar. Pois era na direção dele que meus olhos sempre se voltavam. Picolé era magro e estranho, seria correto dizer singular. Mas seu sorriso era charmoso e seus dentes grandes e bonitos. Gostei dos lábios finos dele e do nariz pequeno. Como pode um camarada branco feito o Gasparzinho, de cabelo, cílios e pelos brancos, seco igual pau de virar tripa, ser bonito?

Espera, espera... Ele bonito? Eu não queria dizer isso. Ele era albino. Ele era diferente. Era macho. Era não, É macho. Mas ele era bonito daquele jeito.

Porque estou falando de outro macho?

Eu me sentia meio estranho perto dele, tipo inseguro. Picolé não olhava na minha cara, não olhava nos olhos de ninguém, mas o que mais chamou minha atenção foi quando sua mãe, que era professora de Biologia do terceirão, que parecia ter vergonha dele o ofendeu perante a classe. Foi algo tipo:

— Seu esquisito vira pra frente e se concentra... — Ela queria que ele desse o exemplo e fosse completamente atencioso.

Eu torcia para que nenhuma menina se interessasse pelo cara. Mas tinha a Pati Carneirinho que ficava pedindo explicação sobre as "mitocôndrias" só pra chamar sua atenção. De repente a Pati não era mais tão legal e claro que o estava fazendo de bobo. Eu achava, mas não tinha certeza.

Quando que uma menina loura de cachinhos bagunçados e olhos verdes (gatinha) ia olhar para um cara albino? O Picolé era na sua, quieto e estudioso, tipo os atuais "nerds", naquela época chamados de CDF.

— Ei Ferrugem, teu pai já voltou?

— Não, mas é melhor eu nem sair com vocês outra vez. Cara o cheiro da "erva" ficou forte na roupa e levei um couro do pai.

— Ahahaha, tu apanha desse tamanho?

Eu fiquei com a cara quente, isso tinha dois significados: eu estava puto ou com vergonha.

— Levei, levei, apanhei de cinta, ahaha... — Esse era meu segredo. Só mostrar que não liga e o povo não acha graça e para de te encher o saco. O negócio era desse jeito, tem quem aguenta a zoeira, mas tem aqueles que são traumatizados por ela.

— Opa, Cidão! Posso sentar contigo? — Inconscientemente ia pro lado dele quando tinha algum trabalho em dupla. Esse trabalho de Inglês consistia em algo, tipo: "eu leio pra ti e tu lê pra mim" e assim treinamos os diálogos. Eu ficava encantado olhando pra ele. Eu disse encantado? Foi meio isso...(de novo).

— The, cara... não é "dã" nem "de"... Olha o que faço com a língua. ­— Picolé tentava me ensinar a pronuncia dessa merda de artigo definido. — Olha, você tem dificuldade é na pronuncia de algumas palavas, mas tá lendo bem.

Um elogio! Aquilo teve um efeito similar a revista Playboy que eu levava pro banheiro na época. Enfim, eu me perdi por longos momentos olhando o Picolé que ele notou e franziu a testa, juntando as sobrancelhas.

Quando saímos da sala, meus colegas, que obviamente não notaram meu comportamento nem minha excitação, falaram bem alto para que o Alcebides escutasse:

— Oh moleque feio esse Picolé. Branco feito fantasma. — Isso foi o Marcos.

— Não chama ele assim, Suvaco. É gente boa. — Marcos ganhou esse apelido logo que entrou na puberdade, desnecessário seria eu explicar o motivo, pois o nome é bem sugestivo.

— Não chama... — Eraldo (o Melão) falou debochado. — Foi tu que apelidou o cara.

— Quem que o Ferrugem não apelida? — Disse Pati Carneirinho que passava por nós indo pro recreio ao ouvir a conversa. Não era mais tão legal apelidar os colegas, eu me sentia um idiota agora.

Educação física era a alegria da minha turma e o terror dos coitados que ficavam no caminho. Picolé era tão estranho, mas tão estranho que ele se comportava cada vez mais de forma natural. Ele jogava bem, xingava e até argumentava melhor que nós.

Essa normalidade com a qual ele passou a se comportar, não combinava com ele. Afinal, ele era diferente, assim como eu, como a Pati, o Milico, o Alemão... Cada um de nós tinha um apelido justamente por não sermos iguais, por temos características que nos destacassem dos demais.

Não aconteceram tantas coisas assim no primeiro ano do ensino médio que nos aproximasse, mas eu estava na dele. O que eu sentia era um misto de curiosidade e fascinação. Estava assustado e percebi frustrado que aos dezesseis anos eu não comandava minha vontade, meus pensamentos se voltavam a ele quando eu me masturbava no banho.

Bem no princípio eu dizia a mim mesmo que não aceitava-me como sendo gay. Mas eu já era. E aí residia um problema. Picolé estava namorando, namorando uma moça. A Pati, que deu em cima do "meu" cara e levou a melhor, já que eu preferia ficar "guardado" no armário.

Na infância eu era do tamanho dele, na adolescência nos equiparamos na altura e até o final da adolescência ele era muito mais alto e até corpo tinha, deixando de ser o "magrelo". Eu continuei sendo o Ferrugem, um camarada de estatura mediana que por não haver condições financeiras na família para custear o ensino superior, fui trabalhar com meu irmão mais velho como mecânico, quando tinha apenas 17 anos.

Eu estava crescendo com essa frustração, sufocando meus sentimentos por ele, pela figura diferente e fascinante...O meu Picolé. Até quando eu ia aguentar?


Segunda feira, para eu o Ferrugem, é o dia de merda. Não consigo acordar e dar graças a Deus quando abro meus olhos. Xingo mesmo e parece que dá tudo ainda mais errado.

Minha mãe que é toda religiosa vem gritando atrás de mim:

— Tu tinha que morar na Etiópia, seu peste. Tá até gordo de tanto comer e passa o fim de semana trancado naquele quarto, chega tá fedendo... Credo guri, deixa o teu pai chegar no feriadão e sentir cheiro de cigarro só pra ti ver...

Minha mãe era do tipo grossa e meia, baita braba, meu pai era caminhoneiro e aparecia uma vez a cada quinze dias ou menos ainda e não "apitava" muito dentro de casa ultimamente.

Meu irmão mais velho, o Marcelo, com a pequena oficina e borracharia me empregava. Eu não amava aquilo, pois queria muito estar cursando uma faculdade, qualquer uma, talvez só pra fazer um "grau".

Se minha infância tinha sido hilária, minha adolescência começou minha decadência como ser humano. Eu sei que era um exagero, mas querem o que? Eu tinha só dezessete quando terminei o segundo grau e já estava aprendendo a trabalhar de mecânico e ganhando muito menos que um salário mínimo por mês.

Eu sabia manobrar os carros, mas obviamente não tinha "carta" então tinha que pedalar de um lado pro outro da cidade, acompanhando meu outro irmão que era uns três anos mais novo que eu e ainda estava na oitava série. Era final de ano e o "orelhudo" pegou exame numa matéria, justo matemática. Burro.

Isso foi final de 1994 e claro que o Ferrugem aqui passou diretão e... grande coisa. Nada de faculdade. Se eu bem me conhecia ia falar disso até o ano 2000, se o mundo não acabasse como uns "noiados" previam.

— Ei Ferrugem... Oi?

Dei pausa na fita do walkman pra cumprimentar o Luan, colega do Fabinho (Binho) meu irmão. Luan era um guri moreno claro e ajeitadinho, cabelo castanho bem cortado e meio... sei lá, eu não queria fazer comentário, mas o moleque parecia querer chamar minha atenção. Ele tinha só 14, igual ao Binho só que era mais alto, acho que se ele fosse um pouco mais velho, quem sabe...


***

Esse sonha, é só mais um maluco personagem...

Sou velho da época que não chamávamos de bullying esse tipo de coisa e não quero que pareça incentivo, mas anos 80 e 90 quase todo mundo ganhava apelido. Eu sinceramente odiava o meu, então abafa kkkkk

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