Baby Boy - Amostra 2



Por Emanuel (Mell)

Antes de entrar em meu presente, por favor entrem no meu passado, tenho várias chaves perdidas nele que resolveriam problemas ou pelo menos explicariam minhas escolhas para o futuro.

Quando adolescente naquela fase de descobertas e curiosidades, quando eu era um menino extremamente envergonhado, espinhento e estranho, cresci com a dúvida de ser ou não ser, eis que não me entendo! Meninos não me atraíam, meninas também, beijar era motivo de pânico, masturbação, algo vergonhoso, eu muito religioso, a família jamais me aceitaria se cometesse um "deslize" como meu primo que se mudara para Florianópolis cansado da rejeição dos seus. Meu medo me impulsionava a imitá-lo quando no final do ensino médio, comecei a me aceitar ao descobrir que não era assexuado, mas um menino gay tímido e medroso que fingia ser hétero.

— Deixa aquele viadinho de fora, só presta pra queimar o filme.

— Tadinho, Rodrigo. — corrigi meu colega.

— Credo, hahaha.

Lá pelos dezessete anos, conheci o João Mateus, o primeiro menino gay que não disfarçava os seus trejeitos. Eu sabia pela boca dos outros que em casa sua vida era um inferno, que ele era culpado pela separação dos pais e irmãos, todos muito religiosos e preconceituosos, soube também que ele já fora molestado pelo padrasto e que no fim, morava de favor com umas meninas que estudavam com a gente no segundo ano do segundo grau.

A gente cansava de ouvir coisas depreciativas e de ver situações que nos enojam nos dias de hoje, quando olhamos o passado. João Mateus, ou somente Mateus era um menino afeminado, era também tímido e receoso, desconfiado e facilmente ficava magoado, pudera, com o que engolia de sapos.

Suas amigas, Tati e Marcela eram lindas, cobiçadas e fáceis, pois aos dezesseis, dezessete anos, moravam sozinhas, trabalhavam como secretárias em imobiliárias, saíam com caras ricos afim de sustentar seus luxos que começaram pequenos como perfumes, roupas melhores, calçados, mochilas e posteriormente passaram para bens maiores, gravidez, pensão, apartamento, divórcio, emigração para a Europa, que sucedeu mais tarde, pois até onde eu sabia, elas ainda estavam na fase das calças jeans de grife.

Eu, tal como a maioria dos rapazes da sala, me afastei do Mateus por razões que não eram racionais, de preconceito puro, simples e incrustado em nós como parte do código genético. Já trazíamos de casa, da criação, da educação e aperfeiçoávamos a medida que crescíamos. A homossexualidade era tão nojenta de ser abordada no passado, como o termo homossexualismo no presente. Sujo, degradante, profano, pecaminoso, feio, incorreto, engraçado, visto como luxúria mesclada com uma falha da qual queríamos distância.

Ficar mais próximo de Mateus era sempre motivo de farra. Não o olhávamos como o rapaz gay que tinha uma maneira diferente de se comportar e sim, como o menino puto que em algum momento, um dos rapazes do grupo, bêbado pegaria para pagar uma aposta ou por curiosidade e assim espalhar o novo motivo de piada, gozação e o escárnio destrutivo.

Mateus nos parecia afim de topar alguma coisa, pois era comum pegar suas olhadas para o Rodrigo, o grandão que mais lembrava o garoto popular de escolas americanas em filmes batidos, porém ele nem de longe era louro e rico, era um cara mestiço, bonito de rosto e com físico formado pela atividade física mais vigorosa e dois anos de auxiliar de pedreiro. Era aquele quem mais "pegava" meninas, era o cobiçado pelo físico, porém não somente babaca, ele era carismático. Gostava muito do seu jeito irônico, das respostas sempre na ponta da língua, inteligência para se sair bem de situações e se isso não funcionasse, ele tinha culhões para arcar com as consequências das próprias encrencas. Eles não estão no mesmo parágrafo só por mera coincidência. Porém nós três estamos ligados de alguma maneira.

Eu previa que alguma coisa ia rolar se o Mateus pintasse naquela festinha de aniversário dos dezenove anos de Rodrigo, o mais velho filho de um cara separado que ajudou a organizar o evento em sua própria casa, uma casa simples de alvenaria, onde receberia os amigos do filho e especialmente as meninas.

De todos nós na faixa de dezesseis a dezoito anos, da turma ficariam de fora Mateus e uma evangélica. Dos amigos da escola que jogavam bola conosco, todos confirmaram e de repente Marcela deu pra trás quando soube que o amigo não ia.

— Rodrigo, que ridículo isso.

— Ele nem quer ir.

— Ele queria.

— Eu convidei todo mundo, aí a Adriana (crente) disse que não pode e o Mateus não falou nada.

— Ele ouviu quando tu disse que ele queima o filme de vocês. Tu nem sabe o que ele já passou com a família. Sabe do que eu tô falando?

Eu não... — Rodrigo sabia, pois ele mesmo me contou.

— Não vai dar pra eu eu ir então.

— Tu que sabe.

Ele na verdade se importava muito com isso, mas ela estava em outra e querendo esquecer que já tivera algo com ele. O motivo é que Marcela, tanto quanto o motivo dele quanto o seu, eram parecidos. Ele se incomodava com a homossexualidade de um colega que o amava platonicamente. Ela se incomodava com a realidade humilde de Rodrigo, já que a jovem experimentava coisas que só provamos quando adequados a um novo padrão de vida, um alto padrão.

Ali, éramos todos medianos, famílias nas mesmas condições, algumas ainda no aluguel, outras com um carro na garagem, mas ninguém era mais que ninguém do que se refere ao quesito financeiro. Eu, aos quatorze anos comecei como boy num escritório, buscava malotes de documentos de bicicleta nas empresas, Rodrigo estava iniciando na construção civil, Mateus era atendente de loja, Marcela era telefonista, vários ainda não tinham emprego, mas todos sem exceção eram sonhadores, tinham planos, grandes ambições.

Marcela não foi à festa, Tati se condoeu pelos amigos, eu fiquei perdido me sentindo deslocado, vários se sentiram assim. A menina que eu levei ficou com pai do Rodrigo (soube que até transaram). Eu bebi e acabei na praia com amigos e amigas, dormimos sob o telhado de um quiosque, mais tarde minha mãe quase me bateu por chegar em casa ao amanhecer.

Na semana a seguir os grupinhos voltavam a se dividir, um pra cada lado, Mateus geralmente ficava sozinho, pois suas colegas eram do terceirão e nós do segundo, então geralmente ele estava na sua, isolado.

Vai sozinho de novo? — perguntei colocando a mochila nas costas. — Pra casa?

Ele fechou o livro que lia, "Perfume, a história de um assassino", e me olhou tímido.

— Ué?

— Hoje só ia ter aula até no recreio lembra? Pra nossa turma né.

Ah, é mesmo. Nem lembrava. — ele olha em volta e percebe que as carteiras estão desocupadas das mochilas e materiais que em geral ficam ali no intervalo. — Acho que vou ter que esperar as meninas, moro muito longe e tenho medo de ser atacado...

Foi a primeira vez que me senti dividido. De um lado, eu não queria ser visto com ele por medo de ser caçoado, pelo outro lado, eu fiquei com dó. E como se fosse possível, me dividi em três, pois eu nunca tinha olhado tão de perto dentro de seus olhos. Eram apenas castanhos escuros, de cílios normais, sobrancelhas normais, nariz, boca, orelhas... ele era muito normal e muito bonito. Gostei dos olhos, seus escuros contrastando com meus verdes, sua pele dourada contra a minha, muito branca, minha barba que despontava e que já me obrigava fazer uso de gilete e a pele lisa do seu rosto, seu cabelo ondulado, meus lisos, meu corpo grande um tanto magro e seu corpo menor, mais curvilíneo, Mateus era lindo, eu tomei um choque sem perceber. Outro veio a seguir quando os rapazes que eu nem sabia que me esperavam, apontaram na porta da sala.

— Vamo, seu feio. Larga de namoro, Emanuel.

— Uiiii, tá namorando? — perguntou um deles enfiando o dedo na garganta.

Cada um com uma "brincadeira" diferente não foram mais nojentas que minha covardia de fugir do que recentemente me despertara. Eu saí calado e pior, não os fiz se calarem quando falavam suas frases no som mais alto de suas vozes, com intuito de atingir o colega que ficou lendo seu livro até o final da aula para ir para casa com suas amigas.

Mateus não veio à aula no dia seguinte. Eu remoí por não saber o motivo, mas fui forte em me manter ignorante ao fato. Por nada no mundo que eu quebraria a muralha à minha volta, a muralha que me protegia de pessoas e não passar pelo que o Mateus passava. Marcela não estava na escola, Tati também. Não tínhamos meios de saber, somente esperaríamos por elas e ele...

Rodrigo e os demais geralmente não falavam sobre Mateus, apenas quando surgia um assunto que combinasse com as piadinhas preconceituosas do tipo, "tomou uma bolada nas costas?" "tá louco, não sou o Mateus" e daí em diante.

Luiz Antônio, senta aqui — Luiz chegou mais tarde e alguns colegas lhe providenciaram uma cadeira desocupada por um professor que foi embora mais cedo.

Hummm, ele senta. — quem assistia aos Trapalhões, deve lembrar que o Didi tinha esse bordão e que era uma maneira debochada de associar o assunto homossexualidade à depreciação do macho hétero. O "senta" era maliciado, não há como me convencer do contrário. Então o macho hétero que senta é caçoado. — Essa cara de "vem cá meu macho?"

Sai fora. — Luiz era convicto de sua sexualidade e no início tentou ser respeitoso.

— Se ele pagasse um boquete?

As meninas mais próximas riam escandalosamente. Imagino que os proprietários do restaurante devessem estar irritados com as várias turmas de adolescentes comendo iguais a "gervões", falando alto, falando um monte de água e merda.

Tu não deixava, Guigo? Eu deixava. — Ismael faz piada. — Dizem que viadinho chupa bem pra caramba.

Que nojo — Fernanda, a nojo, só falava isso.

— Muito nojento, gente, eu tô comendo.

Eu não queria olhar para o Mateus, pensava que se ele me olhasse também, eu também seria tão humilhado quanto ele. Sim, humilhação, porque eu estava tendo essa noção. Mateus não estava mais à mesa e eu novamente senti aquela divisão aqui dentro, queria checar e dar uma palavra bacana com ele e ao mesmo tempo precisava me manter longe com vergonha e receio de ser outra vítima do deboche sem limites e sem o menor respeito.

Ele poderia estar no banheiro, se eu fosse, alguém poderia ver, comentar que fui lá, estando ele nos mesmos metros quadrados e isso ia "queimar meu filme". Eu resisti a isso outra vez.

Percebi que Luiz tinha sumido também. Fiquei preocupado nem sei porque, pois logo ele retornou e na rodinha onde ele estava, as gargalhadas divertidas estavam além do exagero. Senti a curiosidade quase doentia, junto com raiva ao imaginar que o Mateus fora submetido a algum ato repugnante para divertir tanto assim meus colegas e aliviado constatei que não fora tão grave.

Eu cheguei pra ele... — Luiz tentava parar de rir para repetir a narrativa — eu disse... cara, tô meio afim... aí ele disse: "desculpa, mas eu tenho namorado", hahahaha.

— Namorado?

Como vocês são infantis. — O professor de Matemática, um homem casado, já na casa dos cinquenta anos finalmente poda os alunos quando cansa da brincadeira.

É, perdeu a graça, faz mais de uma hora. — uma colega comenta — A gente só quer comer e conversar, vocês só falam besteira e dão essas risadas.

— Ah, ela tá ofendidinha pelo Mateus.

— Tô mesmo. Ele é muito querido. Agora quer ir pra casa porque tão só falando de gay e tirando sarro. Gente, ele é gay, todo mundo sabe.

— Onde ele foi?

— Ele deixou o dinheiro comigo e foi embora.

Eu me senti um babaca impotente, não menos culpado por não ter feito nada. Não fiz nada. O assunto perdeu completamente a graça. Mateus poderia estar em algum canto, algo de ruim poderia estar acontecendo ou o seu namorado o viera buscar.

Quando 2007 iniciou, logo após, o ano letivo, o terceirão, uns colegas daquela turma zoeira foram para colégios particulares para desfrutar de bolsa de estudos, dois deles pararam de estudar para trabalhar, teve gente que mudou de cidade que foi embora, que veio pra ficar, teve reprovados que ficaram pra trás mudando de grupinhos, novos professores, fomos do térreo para o segundo piso da escola, tudo empolgante de início. Eu já já estava sendo cobrado sobre o que faria no ano seguinte, qual caminho a seguir, o que fazer com meu futuro.

Não haviam condições para ser bancado pela família e meu salário era baixo, um ano servindo o exército e outro sem saber qual especialidade seria a minha. Sem namoradas, sem namorados, eu percebi que não me apegava em relacionamentos, admiti que odiava ser pobre, queria ter minhas coisas, queria ser um universitário e só querer não era poder. Resolvi ir atrás dos boatos sobre Marcela e Tati, quem sabe eu também conseguisse pagar minhas contas e finalmente tivesse a sorte de me integrar ao ensino superior.


***

mais uns beijos aqui =)

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top