Capítulo Único

— O dia está lindo! O que acha da gente ir passear um pouco?

Rose olhou pela janela da cozinha, para a manhã ensolarada e fria daquele trinta e um de outubro, e fez uma careta. Suas definições de dia lindo eram completamente outras, mas não era culpa de Boris se tudo o que ela via quando olhava para aquele sol no céu sem nuvens era uma lâmpada de geladeira.

Boris e Rose haviam nascido e crescido em lugares completamente diferentes. Ele era dali, do norte do mundo, e ela era mais ou menos do meio, onde o sol costumava esquentar tanto que dava pra fritar um ovo na calçada. Para Rose dias lindos eram dias quentes.

— Precisamos mesmo sair? – a garota choramingou para o namorado, deixando de lado o pão na qual passava manteiga para o mirar com olhos tristes esperando convencê-lo de que ficar em casa era a melhor coisa a se fazer – Tô cheia de coisa pendente e ainda nem terminei a minha fantasia.

Não era de todo mentira. Ela tinha mesmo que responder alguns e-mails do trabalho e também precisava terminar o danado do chapéu da fantasia de bruxa que usaria na festa de Halloween à noite, coisa que não havia feito no dia anterior por pura preguiça. Boris bem sabia daquilo e não estava com cara de que iria deixar pra lá.

— Lindinha, pegar um pouco de ar fresco vai ser bom pra você. – ele garantiu antes de tomar um gole de seu suco de laranja. Bolas!, Rose pensou consigo mesma. Seu drama não tinha surtido efeito algum. – Você fica muito tempo fechada, seja aqui ou no trabalho. – ele continuou – Tem que aproveitar quando faz sol pra andar um pouco na luz e ajudar seu corpo a produzir vitamina D. Além do mais um pouco de ar fresco nunca é demais e blá blá blá.

Rose parou de ouvir o que classificava como ladainha. Ainda estava emburrada embaixo de toda aquela roupa quando, quinze minutos depois, os dois saíram do apartamento para sequer notar que as meias que havia vestido eram de cores diferentes. Enquanto caminhavam na direção do parque, Boris tomou a mão de Rose na dele e a olhou com um sorriso de satisfação no rosto. A respiração dela se condensava no ar frio e ela se perguntava como, em sã consciência, pode se permitir apaixonar por uma criatura tão estranha.

Sem se intimidar e já acostumado com as caretas de insatisfação da namorada, Boris iniciou uma conversa que, ele sabia, ela não seria capaz de resistir: o planejamento das próximas férias dos dois, que eles passariam na praia. O assunto foi tão eficaz que Rose só se deu conta de que haviam circuncidado o parque quase completamente quando chegaram à rua que dava acesso aos jardins.

Era o costume ali. Pessoas que moravam em apartamentos alugavam pequenos lotes da prefeitura e os faziam de seus quintais onde podiam plantar abóboras e tomates no verão, além fazer churrasco sem que a fumaça se impregnasse na roupa recém lavada do apartamento vizinho. Para Boris não havia nada de novo no mundo, e Rose também já tinha visto conglomerados de jardins antes, porém ela nunca tinha estado naquele.

Fazia dois anos que morava naquele bairro e ela ainda não tinha tido a curiosidade de ir para aqueles lados. O que Rose estava fazendo com sua vida?

— Vamos pegar uma rota diferente. – sugeriu – Se entramos pelos jardins e dermos a volta, sairemos atrás do nosso prédio e podemos ir na padaria comprar croissants.

— De chocolate? – Boris implicou, girando o corpo para seguir na direção que ela havia indicado.

— Óbvio! – Rose respondeu com um sorrisinho de triunfo. Finalmente algo naquele dia estava saindo como queria. Compraria um croissant recheado de creme e outro de Nutella. Só precisava cortar caminho até a padaria.

Dentro dos jardins tudo estava silencioso como era de se esperar de uma manhã de feriado em que as pessoas estivessem dormindo até tarde para farrear até de madrugada quando a noite chegasse. Alguns dos lotes estavam decorados para a ocasião, com esqueletos vestidos em farrapos, morcegos pendurados das árvores, lápides em meio aos repolhos e teias de aranha por todo lugar. Um dos jardins tinha até sensores de movimento no portão e tocava Ghostbusters sempre que alguém passava em frente a ele. Boris e Rose quase morreram do coração por causa da brincadeira.

— Não tenho certeza se vai ter uma saída se formos em linha reta. – Boris disse depois de um tempo, pegando o celular do bolso e parando numa encruzilhada. O lugar era muito maior do que ambos poderiam ter imaginado antes de entrar lá. – Acho que se a gente virar a esquerda aqui tem mais chances de achar uma saída.

— É impossível que não tenha saída lá no final. – Rose rebateu parando ao lado dele – Se não todo mundo que mora desse lado precisaria dar uma volta enorme pra chegar nos comércios da rua principal.

Era óbvio, não? Quem iria querer dar a volta?

— O meu Maps travou. – Boris comentou – Olha aí no seu celular se tem mesmo uma saída lá no final.

Mas Rose balançou a cabeça negativamente.

— Esqueci meu celular em casa. Acho que é melhor a gente continuar andando do que entrar pra lá. – disse, indicando a encruzilhada – Ou então tenta ver no Maps de novo.

— Não tá funcionando. – Boris respondeu frustrado, mais uma vez tentando acessar o app – Não sei o que está acontecendo.

Lá no fundo da mente de Rose a matemática estava sendo feita. Lugar deserto mais celular que para de funcionar do nada mais dia das bruxas é igual não pode ser coisa boa. Mas ela era adulta e adultos não tem medo dessas baboseiras.

— Vamos em frente mesmo. – Rose concluiu – O máximo que vai acontecer é a gente ter que voltar por onde veio.

Isso se não nos perdermos nesse labirinto, pensou. Se Boris achava alguma coisa naquela situação estranha, ele nada falou, apenas deu de ombros e os dois seguiram em frente.

Só que então as coisas começaram a ficar realmente assustadoras. Já não havia decorações de Halloween nem hortas nos lotes pelas quais passavam. Aquele lado do conglomerado de jardins estava abandonado, com casas em ruínas, portões enferrujados e mato alto para todo lado. Corvos gritavam de uma árvore próxima e aquele era basicamente o único som que eles podiam ouvir a não ser o da própria respiração.

— Ninguém anda aqui, Rose. – Boris disse por fim, parecendo tão assustado quanto ela – E tenho certeza de que não vai ter saída pro outro lado. Vamos voltar.

Foi um alívio poder concordar. Rose e Boris deram meia volta para sair dali o mais rápido possível mas foi nesse momento que um barulho chamou sua atenção.

— O que é isso? – Rose parou atenta, tentando entender o que estava acontecendo.

— É um passarinho. – Boris prontamente respondeu, parando a dois passos de distância mais a frente.

O piado, como Rose o nomeou pela falta de descrição melhor, parecia sim o tipo de som que um passarinho faria, só que alguma coisa que ela não sabia explicar não se encaixava.

— É outra coisa. – respondeu ao namorado e se aproximando um pouco mais do portão do lote de onde vinha o som. Lá dentro, no fundo, havia uma casinha abandonada e sem janelas e, mais próximo do portão, havia uma estufa pequena feita de telhas quebradas de fibra transparente. E era desses escombros que o som vinha. – É um bebê gato. – a ideia lhe veio e Rose soube que estava certa.

— Será? – Boris ecoou atrás dela, se aproximando do portão para olhar melhor o terreno baldio – O que a gente vai fazer?

— Não sei. – ela respondeu.

Sabia que se fosse embora sem checar se estava certa ou errada nunca mais iria esquecer aquele som, mas também sabia que não conseguiria entrar facilmente no local. O portão era alto e estava fechado com um enorme cadeado e a cerca de arbustos era densa demais. Havia uma pequena falha nela porém, um buraco por onde uma criança magrinha poderia passar sem muitos problemas, mas Boris tinha quase dois metros de altura e ela estava bastante acima do peso.

Àquela altura o som havia cessado.

— Tá vendo? Parou. – Boris disse, não convencido de que não era uma ave piando lá dentro – Provavelmente não é nada.

Então o piado/miado voltou.

Rose ficou em silêncio, estudando o buraco na cerca viva. Ela não passaria por ele ilesa, tinha certeza, mas também tinha certeza de que não passar por ele não era uma opção. A perna esquerda foi a primeira a ser passada, e depois foi o resto do corpo ao som dos protestos de Boris. Rose forçou o corpo por entre os galhos até emergir do outro lado. Por sorte o monte de roupa que vestia para se proteger do frio também a havia protegido de não ser muito arranhada. Observe o muito.

— Cuidado onde pisa. – Boris aconselhou preocupado do outro lado do portão – Pode ter vidro, prego, vergalhão ou vai saber mais o que escondido embaixo desse mato todo.

Rose não tinha pensado naquilo e sabia que Boris estava certo. Ela estava de tênis e eles não ofereceriam muita proteção caso ela pisasse em algo pontiagudo e afiado. Por isso foi pisando devagar, um passo de cada vez, até chegar ao que restava da estufa.

O som que começara aquilo tudo havia parado mais uma vez, e Rose olhou dentro da estufa à procura de qualquer coisa que confirmasse ou refutasse suas suspeitas. Mas só havia entulho e mato alto lá dentro. Rose pegou um pedaço de madeira no chão e começou a revirar o mato alto. Foi aí que ela o viu.

No fundo dos escombros, um buraco havia sido feito, e lá dentro um gatinho com não mais do que quinze dias estava deitado. Um gatinho preto!

— Boris, tem um gatinho aqui! Ai, meu Deus!

— E agora? – ela ouviu o namorado dizer, mas suas atenção estava toda concentrada naquele filhote que miava alto e se remexia no buraco de terra. Olhou em volta e não havia nenhum sinal da mãe. Com cuidado, Rose se abaixou e o pegou o nas mãos. Não era maior do que sua palma e a primeira coisa que notou foi que seus olhinhos ainda estavam fechados. Aquele bebê não tinham nem duas semanas de vida.

— Você deve estar morrendo de fome, não é? A quanto tempo está aqui sozinho? – ela sussurrou para a bolinha de pelos inquieta em suas mãos antes de se abaixar novamente e procurar por outros filhotes que pudessem estar escondidos entre os escombros, mas não havia mais nada ali.

Rose tirou o xale que protegia seu pescoço do frio e enrolou o gatinho nele antes refazer seu caminho com cuidado e voltar para o portão e para Boris.

— Cadê? – ele logo perguntou quando ela se aproximou, os olhos azuis arregalados de curiosidade.

— Você vai ter que segurar pra eu poder passar para o outro lado. – ela disse e ele anuiu.

Com cuidado, Rose tirou o bebê do meio do xale, o passou por um dos buracos do porão e o entregou a Boris do outro lado. Ele parecia estar segurando uma bomba, todo desajeitado, mas estava fazendo o que podia para manter o bebê seguro e confortável enquanto Rose voltava para o caminho pelo buraco na cerca viva.

— O que fazemos agora? – perguntou quando entregou o gatinho de volta para o meio do xale quentinho que Rose tinha nas mãos.

— Ele está morrendo de fome – ela explicou enquanto ajeitava o bebê gato no meio do tecido – por isso está miando tanto. Precisamos dar leite pra ele mas não pode ser qualquer um. Tem que ser um especial.

De preferência que fosse o leite de uma gata que estivesse amamentando, mas Rose não conhecia ninguém que tivesse uma gata com filhotes naquele momento. Fórmula teria que ser.

— Hoje é feriado. – Boris a lembrou – Não vai ter nada aberto.

— Procura na internet qual clínica veterinária está de plantão. Eles vão saber o que fazer.

— Boa! – ele disse, já concentrado na tela do celular. Porém nenhuma das três clínicas para o qual ligara haviam atendido o telefone. Boris ligou para o abrigo de animais da cidade e teve o mesmo resultado. Por fim, decidiu mudar de estratégia e ligou para um amigo cujo a esposa era veterinária, mas ele também não atendeu. – Vou ligar para a polícia. – decidiu por fim – Se eles não conseguirem nos ajudar, vamos ter que dar leite normal mesmo.

Rose ficou escutando em silêncio enquanto ele conversava com os policiais e era transferido de um departamento para o outro até que finalmente alguém que podia ajudá-los foi colocado na linha. O policial em questão disse que entraria em contato com uma voluntária que ajudava a polícia a resgatar animais abandonados e bingo! A mulher disse que podia ajudar.

Foi o policial quem marcou o local de encontro. No estacionamento do mercadinho, dali a quinze minutos. A voluntária viria buscar o filhotinho para o levar até alguém da rede de voluntários que tinha uma gata amamentando. E assim, tão rápido quanto entrou em suas vidas, o gatinho saiu delas. Rose e Boris voltaram para casa e passaram o resto do dia meio meio confusos, felizes por terem salvo aquela vida e tristes porque o filhote estava em algum lugar que não era com eles.

+++


.
..
Seis
meses
depois
..
.

Estava quase na hora dela chegar e Boris ainda não tinha arrumado a mesa. Era o aniversário de Rose e ele, como o bom namorado que esquecera o aniversário de namoro semanas antes, havia feito um jantar especial para compensar.

Boris olhou uma última vez o assado no forno e correu para a sala de jantar. Estava arrumando os pratos e talheres quando Sam subiu na mesa.

— Não posso te dar atenção agora. – ele disse para a gata a colocando no chão, mas Sam queria o que queria e queria naquele instante. Assim ela subiu novamente na mesa e miou demandando um cafuné. – Mandona. – Boris reclamou enquanto coçava o pescoço e o queixo de Sam e ela fechava os olhos amarelados, esfregando o rosto nos dedos dele.

Não houve nenhuma dúvida quando, meses antes, a voluntária que os ajudou a resgatar o filhote que Sam fora disse a eles que se quisessem adotá-la teriam prioridade. Eles a trouxeram para o apartamento dois meses depois e a nomearam Samhain em homenagem ao Halloween e a pequena bruxa malvada que ela era.

Boris colocou Sam no chão mais uma vez e voltou até a cozinha para abrir a garrafa de vinho que iria servir no jantar. Sam o seguiu e subiu no parapeito da janela para ver melhor o que o seu humano estava fazendo. Ela adorava estar por dentro dos assuntos. A gata notou a rolha do vinho que Boris havia deixado ali e mais do que depressa a empurrou com a sua pata.

— Sam, não! – Boris tentou repreendê-la mas a rolha já estava no chão. – Dá pra não fazer bagunça hoje, por favor? – comentou se abaixando para pegar o objeto e o jogar no lixo.

Então, o tilintar de chaves se chocando umas contra as outras foi ouvido do lado de fora da porta e ambos, Boris e Sam, sabiam o que significava: Rose havia chegado.

Sam pulou de onde estava e correu na frente de Boris a tempo de ver a porta se abrindo. Ela miou para a dona como se dissesse aonde você estava, sua louca? te procurei o dia inteiro e não te achei.

— Hey Sam! – Rose se abaixou antes mesmo de tirar os sapatos e pegou a gata no colo. Fez um carinho nela e depois a deixou pular para o chão. – Que cheiro é esse? – perguntou a Boris, parado a poucos passos de distância na porta da cozinha enquanto tirava os sapatos no tapete de entrada

— Sam fez o jantar pra você. – ele brincou se aproximando dela.

— Ah, é? – Rose comentou antes de dar um selinho em Boris – Não sabia desse lado chef dela.

— Pois é! Cheia de surpresas essa dona Sam.

Assim como a vida, ambos pensaram. E exatamente como Sam, algumas dessas surpresas ficavam para sempre.


FIM

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