Distopia Pós-Humana

Acabou a era digital. É a vez da era dos humanos-máquina. Ou talvez das máquinas humanas. Há muito tempo pensava-se na hipótese de que os robôs iriam nos substituir e que carros voadores tomariam as ruas. Ou que hologramas dos nossos chefes e amigos seriam a nova forma de contatar alguém. Isso, se não pensarmos na telepatia de mente para mente, conservação corporal em formol...

Para cada nova invenção, há um indivíduo para se aliar. Então vai se formando uma rede de códigos neurais e comunicações que são quase como os cabos os quais alimentam a cidade ou o emaranhado de fios nos postes cuja forma imitam nossas veias.

Pegamos esses objetos estranhos — porque pareciam estranhos há algumas décadas —, e nos fundimos a eles como organismos indissociáveis.

Mas há algo de errado sobre essas engenhocas: elas não têm cadeias carbônicas, não produzem sentido, nem operam em psicologias complexas. Inteligência? Ah, elas são inteligentes. Nós as criamos para isso.

Nasceu com os dentes tortos? Um aparelho ortodôntico vai movimentar sua gengiva até eles se acertarem. já alguns precisam de outras estruturas mais complexas. Arreganham tanto os lábios e modificam tanto a mandíbula... Não gosto. Há uma agressividade nisso tudo.

Ao final do tratamento, o dentista provavelmente vai colocar um pedaço de fio prateado atrás dos incisivos. E aí sabe-se lá quanto tempo terá de conviver com essa coisa na boca. Não mencionei o tal do aparelho "móvel", que de mobilidade não tem nada. Mas se pode tirar a hora que quiser, pelo menos. Não queira saber do Expansor Palatino.

Mas, se seu problema for um braço quebrado, a coisa já é diferente. Enfia-se 2 pinos na sua carne e dentro do seu osso como dois parafusos enormes, aí o indivíduo é obrigado a sair de lá para cá como se tivesse se fundido com alguma coisa esquisita, metálica. O corpo rejeita em alguns casos, em outros, eles se ligam completamente. Ao fraturar uma perna, veste-se uma gaiola no membro lesionado.

E quanto às mazelas do coração? Um marcapasso resolverá. O transplante capilar pode te dar alguns fios a mais. Faz-se reparações estéticas com Botox, anabolizantes e lipoaspiração. Usa-se óculos a fim de enxergar.

Portanto somos corpos orgânicos fundidos a metais e eletricidade. Mais que humanos, pós-humanos. Algo que não é mais gente e sim outra coisa. Uma coisa estranha que se separa do resto. Das pessoas que viveram há menos de um século, quando carroças nas ruas não eram inesperadas.

Somos computadores com hardwares prontos à espera da inserção de novos softwares.

Vamos falar da Internet então, aí a coisa fica ainda mais cyberpunk. Acorda-se com o alarme. Regula-se o tempo e as ações pelo relógio na tela de bloqueio do celular. A rotina é delimitada pelos Stories; a constituição do ser, pelas fotos e os vídeos.

Quem disse que aquela pessoa cuja câmera, com todos os seus ângulos, orientações de posição, regulações de filtro, iluminação, contraste e todos os outros zilhões de possibilidades da imagem digital não sou eu?

A notícia é para agora. Escrever? Não, digitar. Ler? Não, baixar no Kindle. Estudar? Não, ver um vídeo no YouTube. Antes, tinha a televisão e agora é difícil caminhar por aí sem GPS. O Twitter é a Ágora ateniense com um pouco da perseguição totalitarista.

Somos então dois eus indistinguíveis e inseparáveis. Não se vive sem estar no ciberespaço. Existe-se. Viver é para quem se mostra ao mundo. Para quem posta um status no Whatsapp. Não é simulação, é simulacro. O falso torna-se mais real do que o verdadeiro. Só há totalidade em nossa existência pela mixagem paralela das realidades imanentes: huamano-gadget, humano-animal.

A princípio, essas coisas são como parasitas. Instalam-se sutis através da contaminação por um vetor. Mas então a gente se acostuma. Vive bem com algo fora de nossos circuitos e artérias.

Pois as máquinas são assustadoramente vivas. Nós é quem somos inertes.

Internados com alguma doença infortunada em um hospital, nos fundimos a um aparato fios que mais se parecem com os tentáculos de um monstro das profundezas do oceano. Maquinaria para respirar, para urinar, para comer. Para manter o coração batendo. Pacientes terminais perdem o conceito de si. Acabou. Pode sair por aí carregando todos os mecanismos ligados a seu corpo, o poste de soro que hidrata seu sangue, pingando lentamente. É um ser único.

Parece que somos um pouco Ciborgues nesse rumo, não é mesmo? Melhoramos nossa performance ao acoplarmos em nós instrumentos tecnológicos variados. Retornamos ao mito da criatura que o doutor Frankenstein montou no século XIX, como um prelúdio do que a ciência poderia virar. Somos pequenos monstros surgidos da união de diversas peças diferentes e interligadas.

Finalizando agora, da vida onipresente e virtual ao próximo coração postiço. É o fim da descontinuidade do humano e da máquina. Viramos algo só. Justapomos domínios antes longe um do outro. Ameaçou-se o cosmo.

A distopia oitentista sobre o futuro, ao som de sintetizadores vibrando, já está viva há bastante tempo. E todos nós dançamos ao som da música dela.

Como ciborgues simbióticos.

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