Vagalumes Apagados
A manhã estava fria quando acordei, começara um dia nublado lá fora.
Guilherme estava dormindo ainda, estava com o braço fora da cama e de boca aberta, eu analisei ele durante alguns minutos. Parecia que não dormia há tempos, oque fizera ele ficar tranquilo e dormir aqui?
A bandagem em sua cabeça estava torta, eu teria que ajeita-lá assim que ele acordar, oque seria só quando voltasse. Estava terminando de me arrumar e não queria me atrasar no trabalho, fora esses vacilos que tenho dado, eu ainda sou competente. Eu acho.
Pego um papel e uma caneta, coloco o bilhete em cima da cômoda perto da cama, ele estava babando, e por incrível que isso possa parecer, ainda continuava bonito.
"Fui trabalhar, tem comida na geladeira, tome um banho que hoje iremos decidir oque fazer"
Pego meu jaleco e minha bolsa.
Se no meu apartamento estava frio, do lado de fora era um verdadeiro gelo.
Quando atravessei o saguão falando com Mário, pude perceber que não era só comigo o frio, ele estava até de luvas (oque pensando bem seria uma boa ideia vir com algumas). Tirei o cachecol cinza da bolsa e vesti, estava começando o inverno.
As pessoas na rua passavam bebendo café e coberta até o pescoço, eu podia ver suas respirações embaçarem o vento. O hospital não ficava muito longe então nunca precisei pegar um transporte, mesmo que ás vezes minha preguiça queira muito.
-Aonde você estava? - pergunta Magie virando o corredor e eu tentando alcançar seus passos. - Sério, Alexia, eu já te falei para deixar esse garoto de lado, vai acabar te trazendo problemas...
-Um garoto trazendo problemas nunca é bom.
Nós duas viramos para trás, era o médico, gato, que ela tinha pegado ontem.
-É... Você pode...
-Claro - ele diz sorrindo para Magie e dando um beijo na sua bochecha, e logo em seguida saindo.
Ela estava sorrindo, nunca vi Magie apaixonada.
-Curte carecas agora?
-Cala a boca Alexia.
Entramos em uma sala em que tinha um senhor gritando, eu quase gritei junto ao ver sua perna quase destroçada. Magie chegou perto dele segurando sua prancheta e me pediu que pegasse curativos. Passo para ela e ela coloca no braço do senhor.
-Minha filha, meu problema é a perna e não esse arranhão!
-Eu sei senhor...
-Eu tenho trinta anos!
Segura o riso Alexia. Segura.
-Tudo bem, você vai precisar esperar os médicos mesmo...
-Oque vocês duas são?
-Internas.
-Meu Deus! Chamem cirurgiões, eu vou perder minha perna - ele gritava segurando a perna esquerda que estava boa.
-Presumindo de como está sua perna, acho que você...
-Alexia!
-Oque?! Eu vou perder?! - seus olhos quase saltam das órbitas.
Meu rádio começa a bipar e abro a porta da sala, Magie me olha furiosa e volta a consolar o senhor.
Era Michelle, oque ela queria?
Sala doze. Oh céus, era pra ir naquele lugar onde tudo começou. Será que ela descobriu? Oque eu iria dizer para ela? "Bom eu fiquei interessada na história de uma pessoa qualquer e levei ela pra minha casa, inclusive, ele está lá". Respira. Não deve ser isso.
Subo as escadas correndo, eu quase flutuava, subido de dois em dois degraus. E quando subo mais um lance, me espremendo para não bater nas pessoas, lá estava a sala doze.
Gira logo essa maçaneta.
-Alexia! - grita um homem atrás de mim. Era o chefe do hospital, como ele sabe meu nome? - Soube do maquinista do trem?
Merda.
Merda.
Merda.
Calma.
Respira e diz calmamente que não sabe.
-Soube...
Merda.
-Oque? Você o viu? Aonde? - ele já pegava seu celular, eu analisava seu cabelo grisalho e seu jeito galanteador, aqueles velhos que todas amam.
-Não, quer dizer, eu vi nos jornais né? Não fiquei sabendo tanto assim...
As palavras misturam na minha boca e nem sei mais oque estou dizendo. Ele me olha de cima a baixo e volta a guardar o celular, passando a mão na cabeça. Parecia estar esgotado, mas não por horas excessivas de trabalho... Com oque então?
-É... Aconteceu algo? - indago, ele me olha de canto de olho. - Digo, com o maquinista.
-Ele desapareceu, não vê os jornais Alexia?
-Está nos jornais?! - todos em volta nos olham, saiu mais alto que eu imaginava. - Nossa, não vi.
Ele me olha de cima a baixo novamente e se vira. Charles era bem mais alto que eu, na verdade, bem mais alto que quase todos que conheço. Se destacava pela altura e por seu jeito de galã, eu diria safado.
Foca. Sala doze.
Viro e giro finalmente a maçaneta.
-Que merda você fez? - dizia Michele.
Perco a respiração, ela sabia de tudo, já era...
-Oque pensou saindo daqui ontem?
Ah...
-Minha mãe - finjo querer chorar, olho para a cama, era ali que estava o maquinista, era ali que eu arrisquei minha vida, atoa? - Minha mãe está quase morrendo.
-Mentira! Eu liguei para sua mãe ontem mesmo - ela leva as mãos a cintura e desce o óculos para o nariz. - Está escondendo...
-Claro que não, ele desapareceu.
-Oque?
-Oque?
-Alexia! - quando vejo a expressão de Michelle mudar de séria para surpresa meu mundo parece desabar, eu deixei escapar. - Oh meu Deus.
-Não, Michelle, eu....
-Você! Foi você! Porque? - ela ia saindo da sala e então segurei seu braço. - Me solta, irei agora contar para o chefe.
-Você não pode! Não fiz isso.
Deus, se estiver me ouvindo, faça essa mulher me escutar.
-Seu apartamento... - o sorriso de Michelle se intensifica. - Ele está lá, não é?
Faz cara de desentendida Alexia. Okay, nota para meu eu interior: não sei mentir para ninguém.
-Está lá! - ela sai da sala doze e me deixa ali, desesperada.
Medo, enjoo, dor de cabeça e vontade de vomitar. Se eu não transasse a quase um ano, eu diria que estava grávida, mas essa sensação é o nervosismo. O nervosismo de perdê-lo, de perder o emprego. De tudo.
Abro a porta bruscamente e vejo Michele indo para a sala do chefe.
Pensa, rápido!
Abro o celular, não tenho o número dele, nem celular ele tem. Céus oque faço, porque me meti nisso? Porque sua estúpida.
Meu rádio bipa. Era um médico pedindo uma interna numa sala de cirurgia.
Pensa!
Estou parada no meio do corredor da ala leste, pessoas passando e entrando em quartos. O privilégio da sala doze é que ninguém usava, não tinha recursos para nada disponível, e também, era longe de todas as outras salas, ficando em apenas um canto. Ótimo.
Volto para lá e penso, como eu poderia tirar Guilherme de lá sem sair daqui?
***
Não sou a heroína dessa história, eu sei, me interessei pelo vilão e tudo mais. Tudo bem, é um erro. Tudo bem. Estou com um fugitivo da polícia, posso me tornar cúmplice. Eu sou uma idiota. Vão pegar ele no meu apartamento, vão fazer perguntas e...
-Tesoura - disse o cirurgião, pego a tesoura e passo para ele. - Isso é uma pinça.
Todos na sala de cirurgia me olham, e pego a tesoura e passo para ele, que nem ao menos me olha. Estou suando.
Guilherme está lá, posso receber uma ligação a qualquer momento.
Não pensei em algo que pudesse ajudá-lo, saí da sala doze e vim atender o médico que precisava, eu ignorei tudo.
Agora ele vai ser preso e minha cara postada em todos os jornais, oque minha mãe diria? Nossa Alexia você é muito burra.
-Bisturi - ele pede e o entrego.
E quando virem te buscar para prestar depoimento, oque você vai fazer? Mentir?
Estou a três horas nessa sala de cirurgia e nem ao menos tenho um sinal sequer lá de fora. A polícia podia estar assim que eu abrir a porta pra ir embora.
-Afaste-se - me empurra o médico.
Tinha uma perna aberta bem na minha frente e eu só pensava em mim, idiota egoísta.
Olho para frente, Magie me encarava com a sobrancelha tênue.
-Pega a maldita tesoura de novo! - ela gritou.
Me coloca na realidade, passo a tesoura para ele.
-A senhora está bem? - ele pergunta.
-Sim... É que... - pigarreio, todos voltam a me olhar. - Preciso sair.
Ele me olha de relance e não diz uma palavra, me afasto da mesa cirúrgica com os olhos de Magie me fuzilando, uma outra interna toma minha posição.
Minha vista esta embaçada, vejo tudo turvo e só queria chorar. Eu não podia estar fazendo isso com a minha vida por uma pessoa que não conheço, que merda eu fiz?
Tiro o avental azul jogando na lixeira e as luvas em seguida. Exito em sair pela porta, medo do que posso encontrar atrás dela. Minha família que não vejo há três meses? Um olhar de pena de minha mãe? Repórteres com suas câmeras ligadas e perguntas que eu mal podia responder?
Gira a maçaneta Alexia.
Giro.
Quando abro, vejo apenas um corredor frio do hospital. Algumas crianças passavam acompanhadas de seus pais, alguns sorriam, outros choravam. Tudo normal.
Começo a andar, fazendo esforço pois minhas pernas pareciam chumbos, meu coração palpitava sempre que quase esbarrava em alguém. Desisti de uma cirurgia, não tenho condições para me mexer. Oque estava acontecendo? Cadê minha mãe?
Desço as escadas para o térreo, eu precisava encontrar Michelle na ala de ambulâncias, eu precisava chorar e dizer que eu estava culpada de tudo.
Dizer que tratei um homem que nem ao menos conheço como primeira opção, sendo que meu trabalho deveria ser. Deixei minha amiga, meu dever com pacientes, minha sanidade, como segundas opções. E isso valia a pena?
Avisto ela, pequena e gritando no meio de homens e mulheres, costurando machucados enquanto acalmavam a família da vítima. O hospital não tinha descansado desde o acidente de ontem, tinha muitas coisas a se fazer, pessoas que foram para casa e depois começaram a sentir dor no estômago, pessoas que de uma hora pra outra pioraram, e outras que o machucado só ficava pior. Eu sou uma interna de vinte e quatro nesse hospital, tinha muita gente ali.
Ela me olha de longe, percebe meu estado arrasado, percebe que eu deva estar querendo chorar. Seu cabelo curto estava bagunçado, suas mãos sujas de sangue, mas mesmo assim, mesmo que longe de mim, ela tirou um momento para me olhar, para se preocupar.
Tento andar novamente, mas uma cena me faz quase desmaiar.
Era ele.
Passando por mim, tirando minha visão de Michele. Era o Guilherme, seguido por polícias, estava algemado como um criminoso. Mas ele era isso.
Seus olhos, azul e cor de mel, olham os meus pretos. A bandagem não estava no seu rosto, seu cabelo, metade ensanguentado e metade seco, descia todo o sangue pelo seu rosto. Ele parecia querer chorar quando me viu, e eu também queria.
A polícia tinha prendido Guilherme.
-Alexia, está tudo bem? - quando viro vejo o rosto de Magie, estava suando e arfando. - Michelle me bipou com urgência e...
-Ele foi preso - o peso em meus pulmões, minha boca seca, tinha caído a ficha. - E eu também serei.
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