Vagalumes

Sabe quando suas esperanças somem e você não pode fazer nada, pois tudo dependeu de você, que colocou demais. 

Foi isso que senti ao ver a porta escancarada na minha frente e o olhar de pena de Magie. 

Guilherme havia fugido?

Eu passei pela porta e saí no corredor frio e vazio, meus passos ecoavam por todo ele. Não sei oque faço, eu só queria voltar para dentro e dormir e fingir que ele morreu. Mas algo me dizia que ele iria se entregar para a polícia. 

-Alexia... - diz Magie segurando a porta. 

Olho para o teto do corredor em busca de respostas. As câmeras. ISSO!

-Eu vou ver com o porteiro - digo para ela. - Fique aí, daqui a pouco volto.

Magie concorda e fecha a porta, entro no elevador e desço até o último andar.

Se eu descobrir que Guilherme fugiu, e nem ao menos se passou um dia que o conheço, eu iria surtar. Toda minha esperança em concordar que ele não era o vilão iria para o ralo. A não ser que ele tenha ido para a polícia. Me irrita pensar nos dois casos.

O elevador se abre e vejo Mário na sua mesa, o porteiro.

-Mário, preciso que veja na câmera se aquele garoto com que entrei aqui saiu - digo.

-O estranho ensanguentado? - ele pergunta e só vejo seu bigode grisalho se mexer.

-Esse - dou um sorriso sem graça.

Ele me olha de cima a baixo. Mário é aquele porteiro ranzinza, mas ele não era grosseiro, só tinha preguiça de dialogar com todos que moravam ali. 

Mário olha as filmagens e clica no meu corredor, voltando a fita um pouco e... Lá estava Guilherme, mancava para a porta do elevador e deixava a porta aberta, estava indo calmamente.

-Pronto?

-Calma - digo, ele revira os olhos e continua a voltar a câmera.

Ele entra no elevador.

-Para onde ele foi?

-E eu sei?

-Ele não passou por você? 

-Alexia, se passasse eu não me daria o trabalho de procurar e diria que foi embora - ele diz fechando a filmagem do meu corredor.

-Então ele está no prédio?! - um sorriso invade meu rosto e uma dúvida também, aonde no prédio? - Você pode...

-Se acha que vou procurar corredor por corredor onde aquela coisa foi, você está muito enganada - ele diz ligando sua pequena televisão para ver o jogo de futebol.

Volto para o elevador e aperto meu andar quando entro.

Para onde ele iria no prédio? Teria que procurar por todos os corredores? 

Não, pera... COMO EU SOU IDIOTA!

"Sua vista daqui é horrível" foi oque ele disse uma vez. Na cobertura... Ele foi pra cobertura!

Aperto o número quinze quando o elevador se abre no meu andar, ele fecha novamente.

Guilherme talvez tenha ido espairecer, por causa de toda a briga lá debaixo. Ou... Ou tenha ido... Meu Deus. Não é possível. Ele não estaria pensando em se jogar, estaria? Acho que é coisa de minha cabeça, olho para os números passando no pequeno quadrado acima dos botões, ainda faltava seis. Anda logo! Aperto o botão novamente.

Sei que muita coisa aconteceu com ele hoje, o acidente, a ida para o hospital, a fuga dele, a discussão com Magie agora o chamando de culpado e além de tudo isso ainda tinha a morte de sua mãe, que foi ontem mesmo. Dois dias intensos para ele, então seria normal ele cometer suicídio, eu só consigo rezar enquanto o elevador vai subindo.

E finalmente, se abre.

Estava frio, o vento  invadiu por meu nariz e vez meu casaco quase voar. Isso quando abri a porta desesperada por ele. Estava bem escuro, eu só conseguia ter a vista dos prédios iluminados, e mesmo com os prédios e cidades cheios de luzes, eram poucas. Não o via por nenhum lugar, nem mesmo enxergava meus pés na escuridão da cobertura.

-Guilherme... - sussurro. 

Olho para trás, eu só tinha dado três passos da porta. Cruzo meus braços na tentativa de sentir menos frio, o vento bagunçando meu cabelo e me fazendo ficar vermelha.

Aonde estava esse garoto?

-Aqui - diz uma voz distante.

Não conseguia enxergar nada além de uma silhueta debruçada no parapeito, ligo a lanterna do celular e se revela ele. As muletas estavam no chão e seus olhos fundos observavam a rua com carros movimentados. 

-Achei que tivesse...

-Fugido? - ele se vira para mim. - Eu tentei, mas não consegui.

-Porquê?

-Simples, não quero criar confusões.

-Pra onde fugiria?

-Lá - ele aponta para o chão lá de baixo. Seus olhos estavam marejados e sua boca tremia, um pouco do frio e outra metade da vontade que queria chorar, mas ele prendia. - Não consegui subir aqui.

-Você ia...

Ele assenti e vejo uma lágrima escorrer. Eu estava certa, ele queria se matar. Viro o rosto de Guilherme para mim, ele não consegue nem olhar nos meus olhos, mesmo que minhas mãos estejam em volta de seu rosto focado no meu. Eu via a manta se encher de sangue, então soltei, e o abracei.

-Não foge de mim.

-Eu não consegui... Alexia... - ele começa a chorar de soluçar no meu ombro. - Eu não consegui ir embora.

Aquilo me doía, o soluço dele tremendo no meu peito, suas mãos que nem ao menos me abraçavam, ele só estava com a cabeça jogada no meu ombro. Quando se afasta, arruma o cabelo e seca as lágrimas.

-Foge você - ele diz para mim. - Vai embora, Alexia!

-Não, idiota! - grito para ele e pego as muletas do chão. - Toma.

-Não quero voltar...

Ele volta a olhar a cidade, estava quase tudo vazio, os bares e lojas fechadas, alguns casais bêbados sorrindo e tropeçando neles mesmos. O dia ia acabando, finalmente, o dia mais tumultuado da minha vida ia acabando. Faltava poucos minutos para meia-noite.

-Aconteceu tão rápido não é? - tento cortar o silêncio. - Ia ser mais um dia comum, mais um desastre, e olha onde estamos agora...

Ele me olha de relance e volta a prestar atenção na rua. Metade do seu cabelo que não foi tampado pela bandagem se remexia com o vento, deixando-o mais bagunçado. 

-Tem cadeiras lá atrás da porta. Vou pegar - digo.

Guilherme não se move até eu voltar segurando duas cadeiras de ferro, ele ainda olhava para o chão e se mantinha na muleta, mesmo que eu via que suas pernas já estavam curvadas de cansaço.

-Vem sentar - o chamo, ele me olha e manca até a cadeira, jogando as muletas com raiva no chão. 

Ele se senta do meu lado e olha para suas mãos. Pego meu celular e mando mensagem para Magie dizendo que o achei e que ela podia dormir lá se quisesse. Ela diz que vai embora, oque me tranquilizava em ficar aqui o tempo que quisesse.

-Foi horrível, Alexia - ele diz. - Os trilhos mudaram, eu não escutei pelo rádio. Era pra mim virá-lo, e quando fui me dar conta, eu acordei com o trem atravessando um muro de concreto, caindo na estrada e depois atravessando mais um muro de concreto - ele respira e fecha as mãos. - Quando levantei do chão, tinha uma marca de sangue escorrendo por todo meu corpo, estava com a perna presa nas engrenagens e... Achei que tivesse morrido.

-Está tudo bem...

-E quando eu me soltei,  saí pelo vidro quebrado. A rua estava só fumaça, não conseguia ver nada, eu olhei em volta e me dei conta de que estava em um hall de um prédio. Estava tudo quebrado e pessoas ensaguentadas correndo - ele diz negando algo com a cabeça. - Foi quando virei de onde tinha saído e vi a parte de frente do trem, aquilo foi como um tiro para mim, pois... Eu não sabia oque tinha acontecido até olhar o trem gigantesco na minha frente, as fumaças saindo e tudo mais. Era minha culpa.

Guilherme olha para o céu e vejo mais uma lágrima saindo. Era pesado ouvir aquilo, doía meu coração imaginar todos nessa cena horrível. 

-Quando você disse lá embaixo que não teve nenhuma morte eu só quis sair dali, e me matar - ele diz. - Eu não sei porquê, mas seria a justiça de todas as crianças que ficarão com trauma, e também, para você não se meter em mais problemas. Se eu fugisse, eles iriam ficar atormentados procurando quem foi, se eu morresse, eles iriam esquecer brevemente.

-Eu não.

Seguro a mão dele. Guilherme me olha de canto de olho novamente e volta a olhar para sua mão que agora tinha a minha.

-Em pouco tempo, você me fez viver intensamente. Não vai.

Ele me olha e assenti, fechando os olhos e ficando em silêncio.

-Olha - digo o chamando. - Olha isso.

Ao nosso redor aparecia vagalumes, rodopiando no ar e sumindo. Quando olho pela cobertura, vejo que tinha milhares em uma parte um pouco mais longe.

-Vamos lá - levanto Guilherme da cadeira e entrego suas muletas.

Corro por toda a sacada, era o momento perfeito para se alegrar, o fato do parapeito ser mais alto que a força do Guilherme subir foi um milagre. Eu corri, até os vagalumes e eles voaram para longe.

-Está assustando eles - diz Guilherme sorrindo.

Eles voam até ao redor dele e ele fica iluminado, muitos pousam ao redor de seu corpo, ele ficava imóvel e sorria para mim. Corro até Guilherme e os vagalumes voltam a rodopiar pelo vento.

-Para de assustá-los - ele ri me empurrando. - Fica parada - ele diz segurando meus ombros. - Agora veja a magia acontecer.

Os vagalumes começam a chegar mais perto, havia milhares deles iluminando a escuridão da cobertura, e finalmente, alguns pousam em meu casaco preto.

-Olha! - grito.

Guilherme sorri, quando olho para ele, estava cheio de vagalumes, em sua perna, braços e até na cabeça.

-Eles gostam mais de você - digo.

Guilherme anda até a parte de trás do prédio, onde estava mais escuro, e todos eles o seguem, e eu também.

Quanto mais escuro era, mais lindo ficava a cena. Agora apenas os pequenos insetos iluminavam a parte de trás, eu mal conseguia ver Guilherme se não fosse as luzes em seu rosto, ele estava sorrindo e isso me deixava feliz também. Chego perto dele e os vagalumes se juntam a mim.

-Para que querer rouba-los de mim - ele brinca me puxando para perto dele.

O abraço e os vagalumes ficam ao redor de nós dois. Ele coloca o queixo na minha cabeça e as mãos em volta de minhas costas. Menos uma, que ergue no escuro, eu olho para sua mão balançando no escuro, os vagalumes descem diretamente na palma dela. 

-Você é o queridinho deles - digo.

Eles davam volta em seu pulso e seguia pelo seu braço.

-Eu sou - ele brinca.

Continuamos abraçados vendo eles darem volta na gente.

****

Quando descemos para minha casa, Guilherme comeu torrada com ovo e suco de maracujá. Era uma hora da manhã e ele tinha dormido no sofá, eu estava no quarto ainda de olhos abertos. Não conseguia dormir com um estranho na minha casa ao mesmo tempo pensando que  a qualquer momento ele podia sumir dali.

Levanto da cama e jogo as almofadas do meu lado no chão. Abro a porta e saio pelo corredor escuro, virando na cozinha e entrando na sala. 

Guilherme estava acordado, olhava para a janela e nem me escutou chegar.

-Ei - chamo, ele se assusta e deixa a ampulheta cair no chão, ela se quebra.

-Oh meu Deus, desculpa...

-Vem dormir comigo - digo ajeitando o cabelo, não queria que parecesse outra coisa além de dormir.

Ele me olha boquiaberto e depois engole em seco, se abaixando para juntar os cacos e areia que tinha se espalhado.

-Deixa isso aí - digo chegando mais perto dele e o puxando pela mão.

Guilherme pega as muletas encostadas na parede apressado e me segue pelo corredor.

Entramos no quarto e fecho a porta.





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