Outros Mundos Além Do Meu

Sei que parece loucura arriscar muitas coisas por uma pessoa que acabei de conhecer. Eu sei, ok? Penso o mesmo. 

Mas ao mesmo tempo, a faculdade, a rotina, familiares, contas e problemas pessoais, todo mundo tem. Eu quero dizer, quando algo aparece de repente na sua vida, mesmo que for algo inusitado, você desiste assim tão rápido? Sabe quando o pequeno príncipe  apareceu para o piloto do avião? Ele achou que estivesse ficando louco por estar em um deserto com uma figura que lhe contava histórias inusitadas, mas ao mesmo tempo, reflexivas.

Não que Guilherme fosse um pequeno príncipe, mas eu via que ele não era o ser humano mais errado daquele hospital. O acidente provocou a morte de alguns? Talvez, nem sei ainda, mas eu sabia que ele estava nitidamente depressivo, e se fosse ainda mais julgado, o acidente ia trazer a morte de mais um.

-Não precisa ficar aí me olhando com pena - ele diz de costas colocando a ampulheta de volta na estante. - Eu volto pra lá sozinho, e cada um segue com sua vida.

-Guilherme...

Parece que as palavras se perdem com alguns pensamentos que me dizem para não deixá-lo ficar comigo.

-Pode ficar - concluo.

Ele não demostra reação. Levanto do sofá e sigo até meu quarto, eu tinha um casaco de basquete  dos Golden State e uma calça de moletom antiga. Volto para a sala com as peças na mão e Guilherme ainda admirava minha estante.

-Aqui - chamo o entregando as roupas, ele segura e volta a me olhar. - Vamos curar esse machucado depois que tomar banho, e... Decidir oque vamos fazer.

-Porque está fazendo isso por mim? - ele pergunta, seu olho ainda estava cheio d'água e o sangue já tinha secado.

-Porque faria o mesmo por mim.

Ele assenti e segue pelo corredor até o banheiro com a cadeira de rodas. 

Quando Guilherme fecha a porta eu pego o celular. Tinha exatamente TRINTA ligações de Magie, não podia atender, não sei nem por onde começo a explicar oque fiz para ela. Estou sendo tão egoísta de deixar meu cargo, ou estou apenas salvando uma vida em um local diferente? Eu não sei oque pensar e meu estomago embrulha ao pensar em explicar pra alguém.

Volto para a cozinha e bebo mais um copo d'água.

*****

Tinha anoitecido e Guilherme me contava algumas piadas super empolgado, eu trouxe gases para a sala e o coloquei deitado no divã. Ele ria sobre uma história que teve com a mãe dele, bem antes dela morrer, sempre parava de falar e engolia em seco, eu perguntava qualquer coisa sobre o assunto para ele se distrair e não focar que ela se foi. 

-Você tinha que vê a cara do garçom quando trocamos todo o pedido - ele dizia.

-Preciso tirar essa faixa e, dependendo de como esteja, vai doer um pouco - interrompo.

-Tudo bem.

Levanto sua cabeça e tiro as linhas costuradas atrás, aos poucos vou desenfaixando. E para meu espanto, revela o outro olho de Guilherme, era de outra cor, um azul esverdeado diferente do outro que era mel. 

-Buh! - ele brinca dando risada com minha cara de espanto.  

-Meu Deus...

-Ah vai, não é tão feio.

-Não, idiota! É lindo - ele fica sério apenas me olhando, no fundo dos meus olhos. - Parece, não sei dizer, planetas...

-Meus olhos parecem planetas?

-Não exatamente, pois nunca vi dessa cor. Parece mais, o universo - abro mais o olho dele com os dedos e ele reclama de dor, recuo e dou uma risada. - Desculpa.

-Ta tudo bem, sabe... É a primeira que fala isso - ele diz.

-Teve muitas outras?

-Alexia, você entendeu.

Pego o álcool em cima da mesa e molho em um pano, ligo a lanterna do celular e analiso o machucado, ele grita de dor quando aplico o álcool. Estava cortando o rosto dele todo, em forma de uma linha inclinada. Do olho esquerdo, onde era o azul esverdeado, passando por cima do nariz até o canto direito da boca e queixo. Ele conseguia abrir a boca, não era nada grave, oque me surpreende, por ele ser o maquinista.

-Você vai precisar tomar esse remédio de seis em seis horas, ou vai sentir muita dor - pego um frasco e coloco no bolso do casaco de basquete que agora ele vestia. - E esse aqui, caso precise dormir - pego uma cartela de comprimido e coloco novamente em seu casaco. - Só se precisar muito.

Ele não parava de me olhar com atenção, o corte em seu rosto agora estava vermelho vivo, mas não escorria mais, dou voltas no machucado com uma faixa e por cima uma bandagem elástica azul.

-É pra combinar? - ele pergunta sorrindo.

-Vou ficar sem ver seus olhos muito tempo - retribuo. Ele sorri, com aquele sorriso lindo.

Guilherme tinha aqueles cabelos bagunçados moreno, barba por fazer e um sorriso branco. Era bem no estilo de galã rebelde. Enquanto eu era um pouco mais certa, mas não aquela do cabelo sempre arrumado e tudo mais. Eu tinha cabelos morenos, mas liso, andava sempre com maquiagem e fazia mais a linha da garota normal que não tinha nada a acrescentar.

-Pronto - digo quando termino de prender. - Agora essa perna.

Empurro ele pra deitar novamente e ele coloca a perna pra cima, subo a calça do moletom e revela mais um corte, dessa vez profundo.

-Parece que vai ficar manco por um tempo - digo rindo e ele revila os olhos. - Mas, terá que treinar andar aqui.

Ele concorda, quando pego o álcool o mesmo leva uma almofada a boca.

A campainha toca assim que termino de passar o álcool, Guilherme estava vermelho de tanto que prendia os gritos abafados na almofada. 

Pego a chave na mesa e vou até a porta, e só lembro de quem possa ser com a chave na maçaneta. Quando abro sou surpreendida por um empurrão que quase me faz cair no corredor. Era Maggie e adentrando meu apartamento como se fosse um animal caçando a presa.

A presa.... Meu Deus!

Guilherme.

-Cadê ele?! - ela grita entrando na cozinha e olhando para sala. - Olha só...

Fecho a porta e corro para a sala, Maggie já estava se sentando no sofá e Guilherme ficará sentado no divã.

-Quando vai aprender a obedecer as normas Alexia...

-Por favor, não conta Maggie.

-Está me pedindo pra cooperar com isso? Já não basta naquela sala?

-E quantas coisas fiz para você? - revido.

-Se iguala a prender um criminoso?

-Ele não é um!

Ela desdenha e volta a olhar para ele.

-Que isso no seu rosto... Quer saber? Nem fala. Eu não quero olhar para a cara desse garoto - ela diz se levantando e indo para a cozinha.

Vou atrás de Magie e ela pede um copo d'água ou suco, tiro as duas jarras e ela se serve, dos dois.

-Te procurei pelo hospital todo, inventei mil desculpas para a Michelle, fugi de uma cirurgia Alexia! Sabe o quanto é difícil conseguir uma? - ela nem respirava, quando terminou, bebeu um copo de suco de maracujá. 

-Quantas baixas tivemos?

-Graças aos céus, nenhuma.

Aquilo me alivia e ela percebe que tirei um peso da consciência.

-Você acha que isso então dá uma certa... Como posso dizer? Felicidade?

-Não, Maggie! É que, seria ainda mais complicado trazer um criminoso se matasse alguém...

-Uau! Que grande avanço que demos - ela diz agora virando o copo de água. - E o fato do trem ter saído dos trilhos fazendo com que crianças fossem jogadas uma contra as outras, como se fosse a merda de um liquidificador, ta tudo bem?

Ela parecia não querer entender, é tão difícil para as pessoas entenderem que quando acidentes acontecem tem algo mais por trás disso? Maggie nem ao menos aguentava ouvir o nome de Guilherme, sei que ela quer meu bem, somos amigas e seis anos, mas ela precisa perder essa mania de teimosa.

-Olha, Maggie. Ele ser preso vai aliviar isso tudo pra você? - pergunto, ela revira os olhos novamente e coloca os copos na pia. - Vai deixar com que aquelas crianças sonhem todos os dias com o trem chacoalhando? Vai fazer o país um lugar melhor? Existe justiça e existe vingança. Você não anda de trem, e só me contou isso hoje naquele hospital, depois de anos de amizade...

Ela olha para o chão se encostando na bancada.

-Oque quer que eu faça? Entregue ele e todo mundo sairá feliz, é isso? Adivinha, todo mundo vai continuar a mesma coisa, pois foi um acidente, e acidente não tem onde colocar a  culpa em ninguém, então, o ser humano em seu espírito de vingança, quer ver a pessoa queimar, mesmo que no fundo saiba que ela não teve culpa!

Esta tudo me estressando, estou no meu limite. Pessoas me mandando fazer tal coisa, outra não. Não seja cirurgiã, seja advogada. Não burle as leis, só nós que podemos. Não pegue um idiota que diz ter virando dois vagões de trem em cima de um prédio na cidade. Minha resposta para isso tudo é: Vou ser. Vou burlar e vou levar o maquinista idiota.

-Lhe entendo Alexia, eu já fiz algumas burradas como essa e... No fim, tudo tem uma experiência sabe? Você tem que priorizar oque vem mesmo, o resto, é o resto - ela diz sorrindo e vem ao meu encontro me abraçar. - Desculpa.

-Ta tudo bem - digo, eu queria só chorar e chorar até acabar minhas lágrimas. Não por Guilherme, e sim porque simplesmente eu não estava dando conta de tudo isso.

-Aceita ajuda com ele? - ela pergunta percebendo que queria chorar e secando uma lágrima que ia descer. - Óbvio que quer, sou a melhor interna.

Quando voltamos para a sala, meu coração congela. A cadeira de Guilherme estava sem ninguém ali, assim como o divã, assim como a sala. Meus olhos correm do chão ao teto em desespero dele aparecer em qualquer canto.

Corro pela casa ofegante gritando seu nome, ele não estava em lugar nenhum!

-Alexia... - chama Maggie do corredor. - A porta.

A porta estava escancarada para o corredor do prédio, eu não tinha fechado quando a Maggie entrou, o tapete estava para o lado de fora.

-Ele fugiu? - pergunta Maggie.


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