Oque Nos Define
Quando cheguei no hospital, andei calmamente até o andar três, ainda fui pelas escadas. Meu dia estava tão bom naquela manhã.
Maggie estava sentada em cima de uma maca no corredor e lia uma ficha de algo.
-Toma, Michelle me entregou a sua - ela me passa minha ficha.
Teríamos que atender os internos novos do hospital.
-Hoje pela primeira vez seremos os residentes impacientes - ela diz.
-Não vejo a hora - digo forçando entusiasmo.
Maggie me analisa como se sentisse algo.
-Como foi a noite? - ela já pergunta rindo.
-Estamos namorando, eu e Guilherme.
-Parabéns!
-Já era o esperado não é?
-Sim - ela afirma. - Espero que durem muito, ele parece ser legal, fora todos os problemas.
-Ele é sim - digo.
Acompanho os olhos de Maggie no final do corredor, era Marcos, com aquele rosto de arrependimento habitual, segurava três fichas nas mãos e agora estava vidrado em Maggie. Depois de longos minutos de uma observação, os dois quase sem respirar, ele volta no corredor sem passar pela gente.
-Precisam conversar - digo para Maggie que volta a ler sua ficha.
-Já fizemos isso.
-Oque?
-Vamos nos arrumar, Alexia...
Ela levanta sem me dar qualquer explicação e vira o corredor rapidamente. Levanto e vou atrás de Maggie, a vejo entrando na sala onde os internos trocam de roupa.
Quando abro a porta já era possível escutar seu choro, eu pensava se terminava de entrar ou a deixava sozinha ali. Mas nessa situação eu gostaria de ter minha melhor amiga comigo. Então entro.
-Oque houve? - pergunto.
Ela chorava no chão encostada no armário cinza. A sala oval estava vazia pois não tinha mais internos no hospital por hora. De primeira, eu a deixei desabar sozinha, seu soluço ecoava pela sala.
-Conversamos Alexia, quase todo dia. Eu e Marcos. Ele me pede desculpas sempre e eu nunca respondo - ela diz fungando. - Mas quero voltar pra ele.
-Você tem certeza do que quer?
-Eu o amo, Alexia. E ele também. Foi um erro horrível oque aconteceu, para os dois lados - ela diz olhando para cima. - Mas irão me julgar se voltar com ele.
-Sério que está preocupada com isso?
Ela me olha e me abraça.
-Você é a melhor pessoa do mundo sabia?
-Sabia - respondo e rimos.
Maggie levanta e continua olhando nos meus olhos.
-Você acha certo tentar dar uma segunda chance para ele?
-Maggie, escute, se o seu coração não se machucar, você pode dar trinta chances para a mesma pessoa. Se você quer o Marcos, vá - respondo.
Ela seca as lágrimas e sai da sala decidida, vou atrás. Paramos as duas na recepção do andar três, ele falava com um médico e parecia pra baixo.
-Vai logo - digo a empurrando.
Ela começa a caminhar até ele, e ele percebe sua movimentação. Maggie corre e puxa a cabeça de Marcos o beijando, e depois do susto, ele retribui a puxando pela cintura.
-ATENÇÃO! - grita Michelle aparecendo atrás de mim.
Maggie solta Marcos e se junta comigo de novo.
-Como ele beija bem, senhor! - ela diz entusiasmada e rimos baixinho.
-Prestem atenção, todos - chama Michelle novamente. - Hoje iremos receber os novos residentes e na ficha de todos vocês tem oque irão apresentar, ensinar e tudo mais para eles. Somos um hospital escola! Ou seja, ensinem direito. Eles estão subindo, então... Quem quer falar com eles por mim?
Olho em volta e todos os residentes estavam de mãos abaixadas. Ameaço levantar e Maggie me puxa.
-Nem inventa - ela diz.
-Anda logo, terei que escolher? Isso só mostra a incompetência de vocês - resmunga Michelle nervosa.
-Eu vou!
Todos viramos.
-Oi meninas - diz Christian passando pela gente.
-Exibido - sussurra Maggie no ouvido dele.
Alguns outros amigos dele o empurram enquanto passa pela multidão.
-Ótimo que você se ofereceu, senhor Vargas.
-Obrigado, Michelle - ele responde subindo em um degrau da escada para ficar junto dela.
Esperamos por uns dez minutos virados de costas pra escada, quando os novos internos iam chegando. Entendi ali, naqueles olhos amedrontados com a gente, que não tem nada demais em ser residente a não ser colocar medo nos internos. Não existia uma diferença, possivelmente a maioria ali sabia oque eu sabia como residente.
Muito deles olhavam para Michelle que estava em degraus mais alto da escada, outros nos estudavam e alguns só observavam o tamanho do hospital. Era possível sentir o nervosismo e a euforia de finalmente estar aqui.
Quando entrei há um ano atrás, foi assim mesmo. O medo do novo, mas a alegria de mudança.
Não imaginei que minha vida tomaria esse rumo nos meses finais para ser residente. Mas tomou, imprevistos acontecem não é mesmo? E que bom que acontecem.
Depois do discurso de trinta minutos de Christian, todos nós pegamos um grupo de três internos novos e caminhamos pelo hospital com eles. Fui atender alguns pacientes com eles me observando e tudo mais.
-E aqui é a área da pediatria. Não venho muito aqui, pois não é minha especialização, mas... É bom para se distrair, depois de um dia cheio, crianças são fontes de felicidades e...
-Desculpa lhe interromper - diz uma interna. - Mas...
-Pode falar - peço quando vejo que ela parecia desistir.
-Você é a Alexia do homem que virou aquele trem?
Aquela pergunta me faz perder as falas, observo a menina, seus cabelos pretos iguais os meus eram amarrados num coque. Seus olhos curiosos queriam devorar a fofoca, e os dois internos ao seu lado pareciam abismados que ela fez tal pergunta, mas ao mesmo tempo esperavam resposta.
-Bom... Eu não sou de ninguém, sou apenas minha. E se você está falando do envolvimento que tive com o maquinista, sim, eu tive. Na verdade, tenho. Oque isso vem ao caso agora? - indago.
-Não vem ao caso, mas...
-Mas?
-Mas eu queria saber...
-Vai adquirir algum tipo de conhecimento no hospital saber disso? - pergunto.
-Bom, até vai... Desculpa, mas é oque todos falam no momento. Até em outros hospitais - ela volta a dizer.
Me viro totalmente e chego mais perto de seu rosto.
-Fofocas você deveria ter deixado na sua faculdade que demorou uns cinco anos não é? Aqui você aprende oque realmente importa. E não meu passado com alguém. Homem nenhum rotula quem eu sou. Oque ele fez, diz respeito a ele somente - digo. - Podemos prosseguir, senhorita, ou quer saber mais alguma coisa minha?
-Podemos, desculpa.
-Não, eu não desculpo - afirmo e volto a andar pela ala de pediatras.
***
-Ela fez isso?
-Fez Christian - digo.
-Eu estou chocada - esboça Maggie.
Estávamos os três comendo, era quase de noite depois desse período que ficamos ensinando para os internos. Michelle avisara que iríamos embora quase de manhã, reservou três pacientes para cada novo residente. Eu já tinha cuidado de um e os outros dois ainda aguardavam lá embaixo.
-Parece que temos uma famosa - volta a dizer Maggie enquanto comia o purê.
-Não quero ser famosa por isso. Quero que reconheçam que sou ótima no trabalho. Qual é gente, eu estive em mais ou menos três cirurgias como interna no último mês. Eles tem noção de como isso é difícil? - fico ainda mais indignada quando termino de falar e percebo os dois rindo.
-"Oh meu Deus, eu sou tão maravilhosa e só lembram do maquinista dos olhos de duas cores que só fala de ampulheta" - brinca Christian.
-Idiotas - digo levantando da mesa quando termino o almoço. - Adeus, tenho pacientes que realmente precisam da minha atenção.
-Tchau, Alexia! Ou quer dizer, "tchau médica, tchau maquinista" - continua brincando Maggie.
Saio do refeitório e aperto o elevador ao lado, desço até a enfermaria.
Um dos pacientes tinham engolido três peças do Monopoly, e não, não é uma criança. Um homem de trinta e três anos apostou com seus amigos se conseguia engolir as peças e depois colocá-las para fora um dia. Não precisamos ser nenhum vidente para a grande surpresa que tive ao entrar na enfermaria, estava os outros dois amigos, e todos bêbados.
-O senhor sente dor aonde? - pergunto.
-Agora no coração - ele diz.
-Como?
Os amigos começam a rir ao lado dele.
-Você é linda, então meu coração está batendo tão forte que...
-Pode ficar em silêncio? - digo e os amigos riem mais alto. - Me responde onde sente a for.
-Sinto dor no estômago, e um pouco na garganta...
-Na garganta?
-Sim.
-O senhor consegue respirar direito? - pergunto chegando mais perto e colocando um dedo no pescoço dele. - Céus! Eu consigo sentir.
-Eu posso morrer?
E assim todos param de rir, consegui.
-Pode.
Um dos amigos leva a mão a boca.
-Mas vai ficar tudo bem - digo sem nenhuma intenção de tranquilizá-los. - Enfermeira, traz a pinça, luz e anestesia.
-Anestesia? - ele pergunta com os olhos arregalados.
-Você está bêbado, vamos colocar um tubo, avaliar e vê se precisa de cirurgia. Para não termos nenhuma reação, vamos anestesiá-lo - explico.
Os quatro me olhavam como se agora eu fosse um tipo de Deus que pudesse salvá-lo.
-Oque foi? O coração não dói mais por mim?
Ele engole em seco e nenhum dos amigos ri.
***
O senhor do Monopoly não tinha nada demais, sim, ele foi levado para cirurgia pois as peças não sairiam por onde eles esperavam. Possivelmente ia se dissolver ali, com saliva, e criar um ferimento bem grande no estômago por ser tóxica.
Andei por corredores extensos, meu último paciente de hoje estava na recepção de ambulância. Eu não sei qual seria, só sei que tenho que pegar um caso lá, segundo essa ficha.
O pronto-socorro estava um pouco vazio naquela segunda a noite, adentrei e um cheiro de álcool e analgésico preencheu meu nariz. Tinha alguns homens e mulheres deitados nas macas, mas nenhum deles estavam gritando e sim sorrindo para as enfermeiras. Creio eu que hoje era um dia calmo.
Vou para fora do hospital na esperança de uma ambulância chegar logo e meu celular vibra.
"Oi amor" diz Guilherme quando atendo. "To com saudades"
"Também, vou terminar aqui e você me encontra na minha casa, pode ser?"
"Pode sim" ele responde. "Ou então, podíamos fazer um programinha de casal"
"Meu programa de casal é fazer amor"
"Alexia! Para de ser assim" ele diz rindo. "Vamos para um barzinho?"
"Pode ser" digo sem paciência quando vejo um médico mais rápido correndo para a ambulância e desisto no meio do caminho de pegar aquele caso quando um homem sai com um ferro na barriga.
"Chama seus amigos também" ele diz.
"Vou chamar sim..."
"Tenho um presente muito fofo pra você. Pelo menos eu acho que é fofo" ele diz todo feliz
Mas logo uma sombra aparece diante de mim, enquanto eu olhava pro chão, a luz do poste some. Levanto a cabeça para ver quem é e minha mão treme.
"Bom, é bem baratinho, mas é de coração haha" continuava Guilherme no celular. "Eu acho que isso vale mais, não é?"
Perco meu folego enquanto olhava para aqueles olhos fundos e tristes. Meu coração disparava.
"Alexia?"
"Sim, é" respondo sem me virar do homem.
"Você está ocupada né? Depois te ligo então, um beijo meu amor" ele diz.
"B-beijo" respondo.
Continuo segurando o celular em minhas mãos, não tinha ninguém ali, só eu e ele. Eu morreria?
-Preciso da sua ajuda, Alexia - diz Anthony, o mesmo que quase me matou, o mesmo que quase matou Guilherme.
Continuo imóvel.
Ele tira sua jaqueta preta mostrando um ferimento na barriga, saía muito sangue e ele parecia fraco.
-Por favor, estou morrendo...
Sabe quando uma pessoa te fez mal e depois pede ajuda? Óbvio que você recusa. Mas e quando ela está morrendo?
-Alexia, eu não posso ir pra outro hospital. Te esperei a tarde toda...
Ele ajoelha na minha frente, totalmente fraco.
-Por favor, eu vou morrer...
Penso em Guilherme, a raiva que estaria ao ver essa cena. Penso em Maggie, mesma raiva por quase matar sua amiga. Penso em Christian que também compartilhou isso, e até mesmo Pedro que alimentava uma raiva que nem ele sabia se era o certo.
Mas penso em minha mãe, a mesma que também odiava Anthony, mas era misericordiosa. Aquela que ficou comigo durante o tiro, que alugou um hotel perto e voltou para sua cidade assim que melhorei, mesmo brigadas, ela veio.
Eu deveria pesar os erros desse homem e crucificá-lo? Ou lhe dava a dádiva do perdão?
-Alexia... Por favor... - ele agonizava.
-Tudo bem, vamos lá pra dentro.
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