CAPÍTULO SETE
Dedicado a:
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Me sento no chão novamente e volto minha concentração para as goiabas, pondo as descascadas no cesto e jogando as cascas na raiz da árvore, para servir de adulto.
Penso em Robbin. Acho que ele já deve ter feito 18 anos. E sei que ele gosta de assobiar. Nós quase nunca nos falamos, não temos lá oportunidades para isso, visto que trabalhamos com coisas bem distintas. Robbin é corajoso como todo caçador, mas não deixa de ser pacífico e sereno. Às vezes tenho dó. Ele já é sozinho há muito tempo, entretanto não reclama de nada. Não que eu ache que ele seja infeliz, e não que eu saiba porque estou me importando com ele.
O pensamento vai embora da mesma forma que veio. Retiro todas as castanhas dos cajus e coloco-as em outra pilha. As frutas mais feias, que são as nossas, eu não descasco, para que estejam inteiras no dia da troca. Coloco o cesto cheio de goiabas nas costas e sigo andando, tomando o cuidado de não fazer muito barulho que é para não espantar os bichos.
Chego em casa rápido. Optar pelo lado esquerdo foi a melhor coisa que já fiz. As vacas mugem quando eu abro a porta. Deixo as chinelas na entrada e vou para a cozinha. Vovó lava os morangos que acabou de colher. O sabão de ontem já está cortado e empilhado no canto da parede.
– Eu já estava me preocupando. – Vovó me olha e diz.
– Os caçadores estavam lá. – Digo, e ela visivelmente relaxa.
– Você ainda vai voltar?
– Só para buscar os cajus, vai ser rápido.
Ela suspira. – Não sei porque concordei com isso.
– A gente não ia dar conta se eu tivesse que ir para o lado direito. Não vai acontecer nada.
– Bom.
– Guardo as goiabas e volto para buscar os cajus logo em seguida. Chego mais rápido ainda. Vovó não está em casa, o que é de se estranhar. As goiabas já estão picadas dentro do tacho com o açúcar por cima. Guardo os cajus e coloco mais lenha. É o tempo de Vovó voltar. Eu já estava para ordenhar as vacas quando ela chega.
– Fui levar um pouco de camomila para a casa daquele mineiro, Heronildes. Pensei que fosse chegar antes de você.
– O que aconteceu? – Pergunto, indo pegar um copo d'água.
– Tempo quente e chuvoso: as cobras chegaram e ele foi picado por uma na canela.
Não é a primeira vez que um mineiro é atacado por cobras ou aranhas. – Ele está sentindo muita dor?
– Dor de cabeça, na barriga, enjoo, vômito, e uma queimação muito grande na perna.
Vovó deve estar pensando a mesma coisa que eu: já não basta termos acabado de perder o Roberto? É por isso que as pessoas têm muitos filhos, para substituir tantos mortos em suas funções.
Termino de ordenhar as vacas e as coloco para pastar. Vou buscar água para elas, o pouco de água do lago limpo que resta, o que me traz a triste lembrança de que tenho de buscar mais amanhã. A água é tão transparente que consigo ver minha silhueta: meus olhos redondos, verde-escuro como os da minha mãe, cuja tumba está ao meu lado. Meus cílios e sobrancelhas finas são da cor do meu cabelo castanho. A minha pele branca tem estado levemente bronzeada nos últimos dias. Vovó fala que eu pareço muito com mamãe, e fico pensando se tem algo em mim que seja do meu pai.
A chuva regou a plantação e Vovó pois um pouco de adubo, dois trabalhos à menos para mim. Levo o leite para dentro de casa e a goiabada já está estalando. Ponho cajus numa bacia, lavo e enxugo potes de doce. Quando o primeiro tacho fica pronto, nós despejamos tudo e Vovó lava. Agora é a vez do caju, que eu vou mexendo enquanto Vovó faz o almoço.
Ela corta um pequeno peixe em quatro partes iguais e faz a limpeza, em seguida ela guarda duas dessas partes e polvilha o restante com farinha de mandioca para assar. Depois nós trocamos de posição: ela vem para o tacho e eu vou para o almoço. Faço uma farofa d'água com pouca manteiga e ponho na mesa, junto com o peixe e dois copos quase cheios de suco de manga. Almoço usando as mãos, que é para nenhuma espinha passar despercebida. A mesa fica cheia de farofa, mas eu ponho tudo de volta no prato.
A noite cai depressa sem que dê tempo de fazer todo o planejado. Caio dura na rede, meus braços tremendo e tanto mexer a colher.
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– Aquele menino é esquisito... Não é não, Margarida? Aquele tal de João? – Rosa me pergunta. Estamos na estradinha, indo buscar água limpa. Depois de amanhã já é dia de oferenda de novo.
– É acho que é. – Respondo
Rosa me cutuca e fala baixinho: – Às vezes penso que ele tem alguma doença.
– Não. – Balanço a cabeça em negação. – Se tivesse ele já estava morto.
Rosa concorda, balançando a cabeça.
Quando vamos dobrar a próxima curva, Robbin está vindo em nossa direção. Ele está usando uma camisa sem mangas, os braços rijos pelo esforço de carregar aquele galho cheio de camaleões pendurados.
– Olá, Flores. – Ele diz, sorrindo, quando passa por nós. Dou um sorriso casto em retribuição. Rosa se esconde atrás de mim e Robbin se diverte com a situação.
– O que você está fazendo, menina?! – Exclamo e rio um pouco também.
– Ele já passou? – Rosa diz, a voz abafada pelas minhas costas.
– Já, Rosa! Agora largue o meu vestido! – Não consigo controlar a minha risada.
– Dá para parar?! – Ela me empurra e eu me desequilibro, mas sem cair.
– A culpa é sua! O que foi aquilo?
– Ele é menino. – Ela fala, mordendo a unha.
– E? – Ergo a sobrancelha.
– Eu tenho vergonha! – Rosa cora e eu reviro os olhos. Como é que alguém pode ser desse jeito?
Não tardamos muito a chegar ao lago. Ele está repleto de pessoas com burricos, jarros e bacias, enchendo, indo voltando e enchendo novamente. Rosa e eu enchemos nossos recipientes e eu a ajudo a firmar o dela sobre o pano de apoio que está em sua cabeça. Estou prestes a colocar o meu também, quando vejo uma florzinha de margarida tentando crescer num punhado úmido e miúdo de grama. Chego mais perto da flor para vê-la melhor.
– Margarida, está pesado. Vamos logo!
– Pode ir andando, Rosa. Eu gostei dessa florzinha.
– Você quem sabe. – Ela sai.
A florzinha acabou de desabrochar. O galho fino é meio torto e tem pequenas gotas de orvalho escorrendo pelas pétalas. Quando o vento bate, alguns grãozinhos de pólen se soltam. A margarida tem um cheiro que eu gosto.
– Olha a outra! Fica cheirando flor no lugar de ir trabalhar! Eu sempre soube que essa daí ia ser uma desocupada igual a mãe!
As palavras cortantes vêm de uma mulher atrás de mim. Estamos a uma boa distância, mas quando viro, percebo seus cabelos grisalhos. Ela deve estar com uns 30 anos. Ficamos nos encarando até que ela recolhe seu balde e vai se juntar a um grupo de pessoas. Já vi cada uma delas ao menos uma vez na vida.
– É uma louca igual a Avó! Onde já se viu ficar perdendo tempo cheirando flor? – Dessa vez é outra mulher quem diz. Ela fala como se eu não pudesse ouvi-la.
– Eu não duvido que daqui a alguns dias ela atravesse o riacho proibido e morra igual ao restante da família dela. – É um homem quem diz isso, sua voz é mais ríspida do que todas as outras.
Pego uma pedra e taco na direção deles, quase acertando o homem. – Quem vai morrer daqui a uns dias são vocês, que estão velhos demais!
Apanho a minha água e tomo o caminho de casa sem olhar para trás. Meus olhos estão queimando, sinto que já ficaram vermelhos. As lágrimas teimam em escorrer, mas eu sufoco-as. Queria poder correr, que é para chegar logo em casa, mas a água não deixa. Minha agonia faz o recipiente balançar muito, de vez em quando cai água em minha cabeça. Minha visão fica turva e chega um ponto no meio da estrada em que desabo. Coloco a água no chão e sento-me ao lado dela com as costas numa parede. Puxo minhas pernas para que meus joelhos fiquem grudados em meu peito. Escondo o rosto e deixo o choro vir, silencioso, o único som é o do vento e dos meus soluços baixinhos.
Estou chorando por tudo: pelo que minha mãe fez da vida dela, pela minha Avó ser taxada de louca, pelo meu Avô que se foi e deixou Vovó inacessível em sua solidão, mas principalmente choro por um mundo em que eu possa cheirar flores sem ser condenada.
Ouço uma porta rangendo e passos em minha direção, mas não ergo o rosto.
– Margarida, você está chorando? – É a voz de Robbin. Só então me dei conta de que estou chorando na lateral da casa dele.
Ergo a cabeça e abro os olhos. Ele está ajoelhado na minha frente, com o olhar benevolente e o sorriso incerto. – Desculpe, Robbin. – Digo, enquanto enxugo os olhos e o nariz. Minha voz está embargada.
– Ei, não tem que se desculpar. Você está bem? – Ele coloca um cacho atrás da minha orelha e sinto seus dedos roçando-me a nuca. Estamos tão próximos que consigo ver até os pequenos cravos de seu nariz.
–:Eu... Só estou com um pouco de dor. – Minto, e ele aparentemente acredita.
Robbin aproxima-se ainda mais e limpa uma lágrima solitária que cai. Em seguida, planta um beijo na minha bochecha: quente, suave e reconfortante. Sinto sua respiração. A sensação é boa, já que ninguém nunca me beija. Ando carente demais. Quando se está carente, você tende a fazer besteiras.
– Você quer ajuda? Posso levar sua água.
– Não! Quer dizer... Não, eu já estou melhor, pode deixar... Já te atrapalhei demais.
– Tem certeza? – Ele ergue uma sobrancelha.
– Sim, sim, tenho. – Me levanto depressa, tiro o barro do vestido e pego o vaso. – Obrigada, por tudo.
– Não foi nada. – Ele dá de ombros.
Dou um último aceno e pego a estradinha novamente. Estou sentindo tanta vergonha que penso que vou explodir. Ainda sinto a respiração quente dele e seus dedos em meu rosto. Céus, o que está acontecendo comigo?
Chego e casa e encontro Vovó tampando os potes dos doces que já estão frios. Ela ergue a cabeça para me ver.
– Trouxe a água. – Falo.
– Seus olhos estão vermelhos. – Ela me olha de modo questionador.
– Foi a poeira. – Ela claramente não acredita, mas sabe que é melhor não dizer nada.
– Tem um ovo, meia maçã e um pedaço de batata doce em cima da mesa. Vá comer! Você não tomou café hoje.
– Sim, Senhora. – Me retiro.
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Quando vamos escrever períodos oracionais, podemos construir períodos simples ou compostos. O período composto é classificado pela presença de duas ou mais orações, comumente. Sendo que a maior característica do ponto de vista semântico é a articulação e o encadeamento de ideias. Já os períodos simples são conhecidos por serem mais curtos e simplórios, o que não os impede de exercer um papel no campo da significação. Um texto com a presença de períodos curtos, cheio de pontos finais, como esse, passa ao leitor a ideia de que este está lendo uma lista de tarefas. A presença dos verbos de ação muito usados nas descrições feitas por Margarida (pôr, colocar, levar, trazer) também corroboram com esse intento. Isso nos leva a concluir que o determinante da vida de Margarida são uma série de ações consecutivas, realização de tarefas e descrição. O fluxo do pensamento quase sempre é interrompido pelo ato de trabalhar.
Salete de Baragoudar,
Escritora e professora.
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