CAPÍTULO SEIS


Dedicado a:

eliza26bc

TaisNogueiraSantos

AnaVitoria236

AntonelleAlves



-----------




Hoje é dia um, dia de voltar a trabalhar.

Vovó fez café com a borra e duas colheres de açúcar, que eu bebo acompanhado de uma broa e uma colher de goiabada. Com as mesmas roupas de ontem e um cesto nas costas, saio de casa em direção ao lado esquerdo da floresta. Agora tenho que colher goiabas e cajus para fazer os doces da próxima oferenda.

Mas antes de ir, eu passo na grande árvore, como todo mundo faz no dia um. Já tem muita gente lá, a maioria com roupas limpas cheirando a babaçu. As pessoas conversam baixinho entre si, ansiosas, esperando as notícias. Faço uma busca rápida e avisto alguns dos meus amigos: Elis, Núbia e Jacó estão sentados no chão, já Bastião chupa uma manga encostado em um toco de árvore. Rosa me avista antes que eu a veja e começa a acenar freneticamente, tanto que sua rosa chega a cair da cabeça. Me aproximo dela, que está usando um macacão preto e tem o cabelo curto apontado para várias direções.

– Ei, Flor!

– Sua Rosa está bonita. – Sorrio.

– Obrigada!

– Ele já chegou?

– Já. Está lá na frente com a família toda. Você acha que deu tudo certo?

– Sempre dá tudo certo.

Rosa concorda comigo. A esta altura parece que todo mundo chegou. Senhor Gaspar sobe num banquinho de madeira e pede a nossa atenção. Todo mundo fica em total silêncio, então ele começa:

– Meus queridos amigos, mais uma vez eu venho aqui muito feliz em dizer que deu tudo certo. Todo mundo se esforçou e levou as oferendas a tempo e do jeito que o Tirano mandou. Por isso que ontem a gente teve uma chuva tão boa!

Todos aplaudem e dão vivas. O Senhor Gaspar é um homem muito bondoso e corajoso. É ele quem passa o dia seis inteiro levando as oferendas da grande árvore até a margem do riacho proibido, para que o Tirano recolha no meio da madrugada. Quando alguém o chama de corajoso, ele diz que não. "Só deixo as coisas lá e volto correndo antes que o monstro me veja, morro de medo".

– Acho uma pena que ninguém tenha conseguido um sobrenome desta vez, mas quem sabe na próxima.

Às vezes eu tenho pena do Senhor Gaspar. Ele acha que um dia vai conseguir um sobrenome. Todos já desistiram, menos ele. E ele continua lá, falando, nos agradecendo e dizendo que um dia vamos conseguir. O homem entoa o discurso com aquela voz forte, meio que cuspindo.

Gaspar tem o cabelo cinzento e bem cortado, e os olhos com quase a mesma cor de seus fios, além de serem fundos e com olheiras. A pele é de um moreno claro que se torna escuro quando comparada a minha. E têm umas manchas, umas poucas manchas. Ele é bastante alto também, entretanto não magro como nós, porque o coitado é doente e acaba engordando sem comer quase nada – dizem que é um problema na saliva da barriga! Sem dúvida, sua maior marca é o bigode enorme, tão grande que mal dá para ver seu lábio superior.

Me entristece saber que não teremos o Senhor Gaspar por muito tempo. Ele já tem 45 anos, está muito velho, quase ninguém vive mais do que isso.

– Aquela cobra nojenta veio com ele dessa vez. – Resmunga Rosa, referindo-se à esposa do senhor Gaspar, Dorothy.

Dorothy é uma mulher de 40 anos de idade que aparenta ter bem menos. Apesar do fato, diferentemente do Senhor Gaspar, ela não vai bater as botas nem tão cedo. Quando as pessoas estão para morrer, elas não aguentam levar nem uma brisa. Ela tem o cabelo loiro e liso, cortado no pescoço em camadas perfeitas como as pequenas ondas do riacho. Ninguém tem o cabelo tão bem cortado como o dela. Seus olhos são castanhos e a pele é branca e rosada, com sardas nos braços e finas rugas no canto dos olhos. Dona de um nariz empinado, alta como o marido e de corpo bem feito, caso não fosse tão arrogante e indiferente ao sofrimento alheio, seria uma mulher bonita. Ela se acha melhor que nós... Por quê? Por que seu marido é venerado? Conhecido? Como se por causa disso devêssemos gratidão a ela também. Se ela soubesse que é só por causa dele que lhe dirigimos a palavra... Talvez até saiba, mas não está nem aí.

– Bom, não vou mais atrapalhar o serviço de vocês. Eu também tenho que trabalhar para viver. Até o próximo dia um!

Todos se despedem dele, dão uma salva de palmas e vão se retirando aos poucos. Senhor Gaspar seguiu em direção a sua casa com uma esposa mal-humorada à direita e seus dois filhos, Ana Sophia e João, à esquerda.

Ana Sophia é a caçula, tem 17 anos. Tem o cabelo igual ao da mãe, sendo que maior, nos ombros e com o acréscimo de uma franjinha singela. Mas não foi só o cabelo que ela herdou, foram os olhos também: castanhos e apertados. A pele é igualmente rosada com sardas perto do nariz. Ela é alta e dona de feições delicadas e femininas. Com um nariz fino, mãos pequeninas e suaves, ela tem de quebra um corpo de dar inveja. Eu não deveria sentir inveja, pois faz mal para nós duas. Ela não fez nenhum mal para mim e nem para ninguém, mas algo dentro de mim não gosta dela, enquanto o outro lado tenta lutar contra. Ainda assim, olho para as minhas mãos com calos nas pontas dos dedos e unhas roídas e escondo-as imediatamente em meus bolsos devido à vergonha.

É assim que funciona. Perto de Ana Sophia eu me sinto nada. Ela é bonita e todos os meninos olham para ela. Não com os olhos de quem quer pregar uma peça, e sim com olhos de desejo e admiração. Acontece que ela não liga para eles, simplesmente não faz amizade com ninguém. Trata-se de uma garota muito tímida, um tanto medrosa e que só aparece de vez em quando – sempre acompanhada da família. Ela fica o dia inteiro trancada dentro de casa com medo do Tirano. Sabe-se lá se trabalha. Mas se tem uma coisa que eu não suporto é a falta de consciência dela e de Dorothy: elas estão sempre limpas demais. É compreensível que todos estejam limpos hoje, contudo elas estão assim mesmo em crise d'água, gastando à toa enquanto nós nos matamos de economizar.

E lá se vai ela, com seu andar lento, sem olhar para ninguém. Ana Sophia não presta atenção nem quando seu pai puxa sua mãe para mais perto e diz, sério: – Você devia parar de ser tão arrogante, Dorothy!

A mulher faz cara de raiva, empina o nariz e se solta, sem dizer palavra. Senhor Gaspar percebe que presenciei a briga. Ele me olha e dá um sorriso, que eu retribuo com um gesto de cabeça. Ele deve estar pensando, com razão, no quanto eu sou curiosa e no quanto eu devia parar com isso.

Tomo meu caminho em direção ao nosso pomar. Percebo que João parou de seguir a família e olha fixamente para o lado esquerdo da floresta, com as mãos nos bolsos. Olho para trás, quando restam apenas alguns passos para adentrar na floresta, e João ainda está lá. Dessa vez, seu foco de observação não é só a floresta, sou eu. Encaro-o também, de forma questionadora. O que ele quer? Nunca ao menos nos falamos. Sua expressão não traduz muita coisa, todavia usando de toda a minha capacidade perceptiva, consigo encontrar um pouco de tristeza. Por que ele estaria triste se ontem foi dia de chuva? O garoto, que emana o caráter de mistério dos seus, retira as mãos dos bolsos, abaixa a cabeça e vai embora.



**********



Estou fazendo uma das coisas em que eu sou melhor: subir em árvores. Escalo com agilidade, apesar de os galhos ainda estarem um pouco úmidos. Colho os cajus e as goiabas, tendo o cuidado de não machucá-los, e deixo as frutas não maduras em seu lugar. Enquanto o faço, vou podando e arrancando folhas secas.

Gosto especialmente do silêncio desse lugar. Apesar de existirem outras árvores frutíferas e um solo bastante fértil, ninguém vem aqui. Não entendo porque ter medo: o riacho é proibido, a floresta não. Em minha opinião, se o Tirano saísse do lugar em algum momento, ele iria para onde estão as pessoas, no intuito de atacá-las. Ir para o lado esquerdo da floresta não faz o menor sentido. Além disso, ele nunca saiu de lá, ao menos não existem comprovações. Por que ele iria sair? Ele sabe de tudo o que estamos fazendo, tem o controle até sobre a chuva e as colheitas. Fico imaginando o que todo mundo diria se soubesse que já fui até o riacho proibido... Certamente me chamariam de louca, assim como se fizeram com Vovó. Não. Melhor não.

Mas eu tenho quase certeza que João já foi para o riacho, ou já fez algo tão errado quanto. Ele é esquisito, esquisito demais. Por detrás dos olhos cinza que herdou do pai, com certeza há muitos segredos. E o cabelo dele também é bem cortado e loiro como o da mãe e o da irmã. Ele deve ser mais um que está gastando mais recursos do que devia. Se Ana Sophia não fala com ninguém, seu irmão consegue ser ainda pior. Eu juro que não existe nada mais estranho, não só com relação ao comportamento, mas também pela expressão. João tem 20 anos sem praticamente barba na pele rosada. Ele consegue ser ainda mais alto que os outros, além de um pouco forte, sem ser intimidador. Isolado de tudo e de todos, é de se espantar que tenha passado tanto tempo a me encarar. Não pode ter sido mera impressão. João deixa transparecer que existe algo incomodando-o, contudo não consigo entender o que é.

Fiz duas pilhas de frutas e terei de levar uma de cada vez. Ao invés de fazê-lo, me encosto a uma árvore e começo a riscar o papel de embrulho com o carvão. Imito a silhueta da floresta: solo orgânico, árvores de raízes grossas e profundas e folhas dos mais variados formatos e cores. As folhas se enroscam umas nas outras formando uma cobertura que filtra a passagem do sol, por isso o clima é sempre ameno, cheiroso e ventilado. Já estou finalizando quando ouço passos batendo nas folhas e galhos secos. Abaixo o papel e tem um caçador na minha frente. Temos três caçadores: Frederico, Malaquias e Robbin, o que está olhando para mim.

– Margarida. – Ele diz, sua voz grave, mas de forma serena. O cabelo preto, bem liso e mal cortado está caído nos olhos negros, que são redondos e levemente repuxados, como azeitonas.

– O-oi. – Falo, desesperada para escapar. Fui pega fazendo o que não devia. Jogo o papel na cesta. – Por favor, não saia dizendo por aí que eu não estou trabalhando. Vão pensar que fico desperdiçando tempo e eu juro que só parei um pouquinho...

– Margarida... – Ele repete, dessa vez mais sorridente, calmo como sempre. – Não se preocupe. Se tem uma coisa que nenhuma pessoa faz é perder tempo de trabalhar, eu sei o quanto você trabalha. – Ele sorri novamente e me oferece a mão de dedos grandes para que eu levante. Robbin é magro e sua pele é muito branca. Ele é meio ossudo, mas é forte. Olhando mais de perto, percebo umas poucas olheiras em evidência. Ao ficarmos no mesmo nível, é perceptível que ele é bastante alto.

– Obrigada. – Digo, arrochando o laço de fita do meu cabelo. Não sei ao certo se o agradeço por me dar a mão, por guardar segredo ou se pelos dois.

– Posso ver o que você estava fazendo?

Pego o papel de embrulho de volta da cesta e entrego-o. – É só uma coisa tosca. – Digo, alisando os meus fios.

– Não acho tosco. É bem bonito, se você quer saber. – Ele fala, aparentemente maravilhado. – Tem as árvores, o cervo... Isso é muito bom para se guardar de lembrança, já que a gente esquece das coisas com o tempo. – Robbin analisa atentamente e comenta sobre os detalhes que ele acha interessante. – Nunca vi ninguém fazer isso antes. – Ele ergue a cabeça para me encarar. – Como se chama?

– Não sei. – Dou de ombros. – Imitar as coisas, talvez?

– Você tem uma senhora imaginação. – E me devolve o papel.

– Minha avó diz que eu vivo no mundo da lua.

Ele sorri. – Está mais para sonhadora.

Fico abismada com a declaração. Será que ele anda me observando?

– Eu já havia te visto aqui. É muita coragem sua vir para o lado esquerdo.

– É mais próximo da minha casa, além do mais você também está aqui.

Ele fica sem jeito, mas também não demonstra muito. Algum tipo de modéstia, talvez.

– Sim, a propósito, como está a sua avó?

– Bem. Obrigada por perguntar. E... bom... Tenho que descascar essas goiabas.

– Ah, sim! Claro... Não vou mais atrapalhar você, tenho que trabalhar também. – Ele passa o peso de um pé para o outro, a calça de couro roça nos sapatos gastos. Robbin ajusta seu bornal com facas e lanças, que praticamente já deixou uma marca em sua camisa de mangas longas, suja e precisando de remendos. Robbin não tem ninguém para remendar as camisas dele, e nem outro alguém que ensine a fazê-lo. Ele não tem família, vive com os caçadores numa casa menor do que a minha.

Ele assente, sorri e vai embora.




----------




A música está no início do capítulo!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top