CAPÍTULO DOIS
Dedicado aos leitores que já viraram amigos:
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Rosa está faminta, é perceptível. Ela e a mãe devem ter deixado de comer para trazer isso aqui para o Roberto. Dou uma das minhas bolachas para ela, que sente fome demais para recusar, desejo melhoras para o Roberto e sigo o meu caminho.
Eu adoro observar as coisas, e vou olhando para as casinhas enquanto passo pela estradinha de barro. Algumas parecem que despencarão com um simples olhar enraivecido, quem dirá quando der uma chuva grossa. Sempre que dá uma tempestade, nós fazemos mutirões para reconstruir as casas caídas.
Às vezes, me pego pensando, por que nossas vidas estão organizadas dessa forma? É sempre um dia após o outro. Podemos até pensar no amanhã, mas pensar no depois de amanhã já é tempo demais. Muita coisa pode acontecer até depois de amanhã. Não dá para fazer muitos planos e nem ter muita perspectiva. Obviamente, eu não divido esse tipo de pensamento com ninguém.
Penso no mundo, esse círculo pequeno com quase 2000 pessoas. Ainda bem que não existe mais gente do que isso. Eu não consigo imaginar onde caberíamos se houvessem mais de nós. Esse círculo é todo cercado por uma floresta, e sua organização fica mais fácil de entender se o imaginarmos dividido em duas partes: o lado direito, onde a floresta é toda aproveitada, onde ficam os seringais, a lenha, as minas e as árvores frutíferas; e o lado esquerdo, onde nós criamos os animais e plantamos as coisas que ficam em nossos quintais. Cada pessoa mora do lado onde suas matérias primas ficam mais próximas. Se você cultiva e faz produtos à partir das bananeiras, você mora do lado direito. Se sua fonte de trabalho são os porcos, você mora do lado esquerdo. Quem mora nesse último, por uma questão de necessidade, tem um quintal bem maior.
Em qualquer lugar, as casas são muito afastadas umas das outras, pois é preciso que sobre espaço para trabalhar. Quanto à floresta, ninguém vai do lado esquerdo, porque é desse lado que fica o riacho proibido, o que acaba tornando a floresta em volta dele proibida também. Por uma questão de precaução, ninguém pisa do lado esquerdo da floresta se não for por uma necessidade extrema – como uma morte ou um desaparecimento. Só os caçadores que frequentam esta parte da floresta, tendo em vista que no lado direito mal existem animais selvagens. Os caçadores e eu, já que eu também preciso desse lado da floresta para poder sobreviver.
Eu, finalmente, chego até a casa de açúcar. A plantação de cana é tão extensa que vem quase até a lateral da casa e adentra pela floresta. Seu Silvano está colocando o açúcar peneirado dentro dos saquinhos brancos. O melhor açúcar é para as oferendas, já o que nós podemos usar fica em sacos cinza, lá atrás. É pouco e tem que ser dividido para todo mundo.
Seu Silvano está cansado, as pestanas pesam. O rosto foi castigado pelo sol ao longo dos anos. Vou adentrando no terreno dele, timidamente. Os filhos dele, que estão cortando cana lá atrás, não dão pela minha presença. Seu Silvano dá um sorriso exausto e pergunta quantos sacos eu vou querer. Jogo o cesto no chão.
– Quantos couberem aqui. – Falo.
– Como está a Dona Consuelo? – Ele pergunta, referindo-se à Vovó.
– Provavelmente, mexendo um tacho.
Seu Silvano assente com a cabeça e põe os sacos de açúcar dentro do cesto. Vovó e eu temos direito ao açúcar dos sacos brancos, já que isso faz parte da oferenda, porém o açúcar que nós comemos é o do saco cinza, como todos os outros.
Ele termina e passa as mãos na calça remendada. – Pronto! Ficou um pouco pesado.
– Não tem problema. – Digo. – Quatro potes de doce de leite no dia sete, sem falta.
– Eu sei. Vocês nunca faltaram. – Ele olha para o cesto e depois para mim. – É uma pena que você e a sua Avó ainda não tenham conseguido uma carroça. – Ele coça a cabeça.
Dou um sorriso triste. – Acho que a gente não vai conseguir. – Enfio a minha mão no bolso e pego minha última bolacha. – É para o seu menino mais novo – entrego a ele.
Seu Silvano fica feliz e me agradece, depois eu pego o caminho de volta para casa.
As costas começam a doer do meio para o fim da estrada. Pego o sol da manhã bem no rosto, mas ao menos ele não está escaldante. Alguns amigos meus se juntam a mim. Todos nós estamos carregando algum peso, mas a impressão que dá é que, conversando, o caminho fica mais curto. Rosa, à essa altura, já foi ajudar a mãe. Minha amiga Elis está ao meu lado com um carrinho de mão cheio de maçãs, e as mãos dela já estão ficando cortadas pelo esforço. Ela cuida das macieiras ao passo que seus pais, Seu Antônio e Dona Sônia, cuidam das uvas. Hoje é dia de fazer polpa, para que elas não estraguem até a hora da oferenda.
De repente, Bastião dá um susto em nós duas. Quase deixo meu açúcar cair por causa dele, que volta para casa depois que Elis e eu xingamos ele.
– Sua mãe te mata se te ouve dizendo isso. – Comento.
– Sua Avó também. E você não faz ideia da quantidade de nomes que a minha mãe diz quando meu pai está por perto. – Fala Elis.
Bastião, agora, foi obrigado a ajudar o pai – Seu Sebastião, que original – com as abóboras e as melancias. Depois que passamos da casa dele, Cássia também se junta à nós. Ela e os irmãos, Ezequiel, Lourdes e Tasso, têm uma plantação de verduras e hortaliças. Ela traz nas costas um pote de água limpa, para regar. Até as plantas bebem uma água melhor do que nós nos dias de hoje. Cássia ainda tem sorte, porque ela é a caçula e acaba ficando com o trabalho mais simples.
Miguel aparece logo em seguida com suas folhas de bananeira. Quem esse idiota pensa que é para carregar tão pouco peso? Ele e a mãe, Otaciana, cuidam da plantação de arroz. As folhas são usadas para separar o arroz: descascado num canto, lavado no outro. Nós também passamos rapidamente por algumas crianças que estão indo para a plantação de cacau. Geralmente, esse trabalho é delas. Reconheço algumas: Luís, Jacó, Davi, Bianca... Nenhum deles têm mais do que 12 anos.
Há muitos outros trabalhos difíceis por aqui. A casa de farinha, por exemplo, ainda está fechada porque hoje deve ser dia de descascar mandioca. As quebradeiras de coco, Núbia e Luna, estão retornando da plantação de babaçu, mas logo, logo terão que voltar para quebrar e descascar coco de babaçu até as mãos ficarem dormentes. Dalila, Cleide, Eliseu e Kôda trabalham nas seringueiras. Quando as árvores não estão no ponto, não sai gosma branca o suficiente, e a oferenda deles pode ficar comprometida por algo que eles não têm o controle.
Cada um toma o seu rumo e eu fico sozinha novamente. O açúcar parece estar pesando o dobro do que realmente pesa, mas eu já consigo ver a minha casa, para o meu alívio. Aceno para Besouro, meu vizinho mais próximo, que está ordenhando vacas. Vejo a imagem de sua mulher, Cândida, na cozinha, fazendo queijo e manteiga. A mulher está a personificação da fome. Dá para ver que os ossos dos ombros e as bochechas estão chupados. Os lábios finos também estão por demais ressecados. Na frente dela tem um monte de queijo, mas ela não pode comer, porque é só para as oferendas.
Dou um chute na porta da minha cerca e ela abre. Ponho os chinelos em cima do tapete poeirento – não usamos os chinelos dentro de casa, ou eles ficarão gastos mais rápido. A porta tem dois buracos em baixo e solta um pó estranho quando pomos a mão, deve ser do cupim. O chão e as paredes são de barro, mas tanto o pequeno alpendre da frente quanto o teto são de madeira. As colunas estão trincadas e as portas fazem barulho quando a gente chega, como se para anunciar que tem gente.
O banheiro fica fora da casa e é todo de palha. A sala é espaçosa, com bancos de madeira cobertos por mantas feitas de retalho. Tem lenha próximo à lareira, que por sinal já está acabando. Por todo canto têm velas e lampiões para iluminar quando chegar à noite. Só temos um quarto. Vovó e eu, geralmente, dormimos de rede, mas no canto do quarto tem uma cama. Assim como todas as camas do mundo ela é feita de um caixote forrado com um pano. As roupas e os lençóis ficam em baús empilhados na outra parede. De frente para o quarto fica o depósito onde Vovó e eu guardamos todo o material. Nós fazemos doces.
Nós fazemos doce de leite, de caju, de goiaba e também geleias de frutas vermelhas. Moramos do lado esquerdo, por isso temos um quintal grande. Atrás da nossa casa tem uma plantação de amora, morango, framboesa e uva. O curral fica na lateral, onde estão guardadas as nossas cinco vacas, e perto dele fica uma pequena plantação de capim. O caju, as goiabas e as cerejas, por só crescerem em árvores, têm que ficar no pomar. O problema é que o pomar fica muito longe daqui, então há alguns anos eu dei a Vovó a ideia de fazermos a plantação e a colheita no lado esquerdo mesmo. Ela disse que não tinha coragem de pisar num lugar tão próximo assim do riacho proibido, e eu a prometi que cuidaria dessa parte. Os cultivos e as colheitas ficariam por minha conta e ela não precisaria chegar nem perto. Depois de dois dias de insistência minha, ela deixou.
Levo o cesto de açúcar para dentro do depósito. Tiro dois sacos do cesto e empilho o restante na prateleira de madeira. Já estamos cheias de compota de geleia aqui e nos livramos dessa etapa. O doce de caju também está pronto. Ainda sobraram dois baldes de caju e um de goiaba, que serão para o dia da troca. Se Vovó já tiver terminado o último tacho de goiabada, então só nos resta o doce de leite. Levo os sacos de açúcar até a cozinha e ponho-os no canto da mesa. Vovó acabou de terminar a goiabada, que ainda está fumegando. Ela está tirando a lenha do fogão e, quando eu solto o açúcar, vira o rosto com o barulho.
Vovó tem a pele branca, meio rosada. O rosto é repleto de rugas e pés de galinha. Seus olhos miúdos tem uma tonalidade cor-de-mel, semelhantes aos de Rosa. O cabelo é pouco, pois tem caído muito nos últimos anos, além de ser cinzento e estar sempre amarrado num coque. Ela limpa as mãos nodosas no avental rasgado preso ao seu corpo miúdo. Vovó é magra, mas não tanto quanto eu. E ela também é baixinha e um pouco corcunda. Vovó assente com a cabeça, seu jeito de me dar bom dia. Dona Consuelo não gosta muito de sorrir e eu só faço retribuir o gesto dela. Ambas somos mulheres de poucas palavras.
– Já guardou o açúcar no depósito? O restante? – Ela pergunta, com sua voz de sempre: arrastada e cansada.
– Guardei sim, Vovó. – Digo.
– Por que não comeu a maçã? – Ela questiona, erguendo uma sobrancelha rala.
– Não estou com fome. – Minto.
– Os dias cinco e seis são os que temos menos comida e você vem me dizer que não está com fome? – Ela pega a colher de pau e vai lavá-la na bacia.
Diante do meu silêncio, ela fala novamente. – O vento vai carregar você de tão magra que está.
– Todo mundo é magro, Vó. – Reviro os olhos.
– Eu tenho o direito de querer que você não seja.
A dor no fundo da voz dela está explícita. Engulo em seco por não saber o que fazer. Eu passo por essas situações o tempo todo, já virou rotina. As pessoas gostariam de um pouco mais de comida, água e quem sabe conforto. Esse é o conceito de vida boa, todo mundo sabe. É tão certo quanto os números, que começam no um e terminam no um milhão. Da mesma forma, quando morremos, temos a certeza de que vamos para um lugar bem longe e, quando contarmos tudo o que fizemos de errado, podemos ser mandados para morar em cima de uma nuvem ou nas profundezas do riacho proibido. Um dos motivos de não ser bom encostar nas águas do riacho é que podemos nos contaminar com o sague dos defuntos ruins. E todo mundo também sabe que uma mulher pode sangrar até a morte quando um homem sobe em cima dela. E ela sangra porque isso é uma coisa muito feia.
Vovó está pondo a goiabada nos potes e eu estou rasgando o saco de açúcar. Pego os baldes de colocar o leite que estão em cima da bancada e vou em direção ao curral. Depois de ordenhar a primeira vaca, já vou logo levando o leite para a cozinha. Vovó está enxugando o tacho recém-lavado. Em seguida, ela põe o açúcar e nós despejamos o leite. Vovó fica mexendo o tacho enquanto eu saio para ordenhar as outras vacas. O leite dos outros dias já foi todo transformado em doce. Cada vaca dá um balde, cada balde é um tacho. Quando levo o último balde, o primeiro tacho ainda não está pronto. Pego a água limpa que trouxe do lago ontem e vou regar o capim das vacas. O que sobra dessa água só dá para regar as frutinhas lá de trás. Isso quer dizer que terei de buscar mais água manhã.
Rego as frutas e amarro as mudas de morango que estão meio caídas em pauzinhos enfincados no chão. Depois eu varro a sala que está cheia de açúcar no chão. Lembro que tenho que tirar as teias de aranha, mas hoje não é dia de troca, então não dá. Já tem doce pronto. Na leva seguinte, revezo com Vovó no tacho. Ela vai lavando mais potes e depois retorna para o fogão. Eu ponho os doces nesses potes e levo para esfriar lá fora. Empilho as goiabadas no depósito. Chega um momento em que não aguento e acabo comendo uma das bolachas. Vovó e eu bebemos um copo de água, cada uma. Passamos o dia assim: fazendo e guardando doce de leite. Eu não gosto disso. Detesto isso. Eu gosto dos dias em que eu tenho que trabalhar na floresta, mas nós não podemos ter tudo o que queremos.
Mal posso esperar para que chegue a hora da janta. Vovó disse que ia pegar uma goiaba pequena e fazer meio copo de suco para cada, com um pouco de açúcar. Ontem, ela me disse que só tínhamos dois ovos. Se comêssemos de manhã, não sobraria para a noite; se quiséssemos comer à noite, não poderíamos comer de manhã. Eu disse a ela que era melhor deixar os ovos para o jantar, pois é melhor sentir fome de manhã do que dormir com ela. Vovó concordou.
A noite cai. Acendo velas na sala e na cozinha e ponho um lampião no corredor. Vovó senta na cadeira, exausta e com frio. Já tenho colocado fogo na lareira quando ela volta usando um casaco sujo. Já fazem oito dias que não podemos lavar roupa e há uma pilha enorme juntando moscas lá fora. Amanhã precisa chover ou essa pilha ficará aí por mais dias.
O dia da troca é o único em que não nos dedicamos às oferendas, e sim a coisas como lavar a roupa, fazer pão, guardar a comida e organizar tudo para iniciar uma nova semana. Se no dia da troca não houver água para lavar a roupa, só poderemos fazer isso sete dias depois, na próxima troca. Não importa se não tivemos água no dia da troca, não importa se der um temporal no meio da semana. Nós só temos um dia para nos dedicar às nossas casas.
Nós duas vamos para a mesa. Meio copo de suco para cada uma – como prometido –, dois ovos, duas bolachas e, por fim, uma colher de doce de caju. A bolacha é um pouco menor do que a palma da minha mão. Passo o doce nela e como rápido dessa vez, depois devoro o restante da janta. Vovó tem muita fome, mas come devagar porque em sua boca não resta nenhum dente. Alguém já devia ter inventado dentes de mentira, se houvesse tempo para isso.
Depois de nos certificarmos que não havia mais nenhuma migalha de pão, Vovó e eu nos levantamos e vamos apagar as velas e o lampião. Olho pela janela e não vejo ninguém no meio da rua, pois todos morrem de medo de sair à noite. Vamos as duas para o quarto, com Vovó sempre a passos curtos. Eu ainda fico impressionada com o fato de ela ter alcançado os 70 anos. Ela é, simplesmente, a segunda pessoa mais velha do mundo, tendo em vista que a expectativa de vida são 40 anos. Tiro a minha roupa suada e ponho a camisola, tão fina que chega a ser transparente. Quando termino, olho para o lado e Vovó já está dormindo sem nem ao menos trocar de roupa. Decerto estava cansada demais.
Minha rede fica ao lado da janela. Deito-me nela e acendo o lampião para que ele me ilumine na hora de pegar o papel de embrulho e o carvão e começar a rabiscar. Eu gosto disso: ficar imitando, no papel, a silhueta das coisas que estão ao meu redor. Isso toma um tempo do meu precioso sono, mas é impossível rabiscar de dia.
Essa noite, eu faço o riacho proibido, com toda a beleza que ninguém pode desfrutar, pois as pessoas têm medo até de chegar perto. Mas o riacho não é proibido porque ele em si vai nos fazer algum mal, não. Não é porque ele tenha peixes com sede de carne humana ou porque ele explode algum tipo de veneno mortal, não é isso. Ele é proibido porque é o guardião de todo o mal. O mal está além dele. Não podemos atravessá-lo, nunca, jamais, em hipótese alguma, pois é do outro lado que ele vive.
Ele, que é a fonte de todos os nossos medos. É para ele que as oferendas vão, caso contrário, nós seremos mortos. É para ele que trabalhamos todos os dias, sem folga, e temos que dar quase tudo o que é produzido. É por causa dele que as pessoas não saem no escuro e nem se aproximam do riacho. Acredita-se que, se ele não ficar satisfeito com as oferendas, não tem chuva. É com ele que está guardado o sobrenome que tanto desejamos e jamais conseguimos. Nunca o vi, mas já o imaginei de várias formas.
Além do riacho proibido tem um monstro.
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Ainda falta um para terminar a maratona.
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