CAPÍTULO OITO


Dedicado a:

juju_2518

AmandaVanessa9

KeelKaroline


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Hoje é o aniversário de Rosa.

Cortei todas as uvas e retirei as sementes. Vovó disse que, quando eu terminasse, poderia ir para a casa da minha amiga. Havíamos almoçado há pouco tempo, então o trabalho já estava bem adiantado.

Pego o potinho de doce que havia deixado guardado e vou em direção à casa dela. Minha saia de chita balança ao ritmo das minhas passadas, em quanto as sandálias levantam poeira e sujam as minhas canelas.

Vejo uma das vizinhas de Rosa saindo da casa desta com um saco vazio. A Senhora, cujo nome eu não recordo, acena para mim e sorrio em resposta. Ela sabe que vim desejar Feliz Aniversário à Rosa e já deixa a cerquinha aberta. Aparentemente, alguém consertou. A casa tem vários furos na parede onde Rosa e Dona Neci colocam as barras de ferro para enrolar os novelos. Têm duas grandes máquinas de fiar na sala que dividem espaço com um único banco de dois lugares. Há pequenos vasos com folhas murchas colados na parede que divide a sala da cozinha, da qual está saindo um cheiro forte de corante vindo dos caldeirões, cada um com vários rolos de tinta dentro. Rosa sai de lá e abre os braços quando me vê.

– Sabia que você não ia esquecer! – Ela diz, puxando-me para um abraço forte que chega a deixar os meus pés suspensos.

– Como eu poderia esquecer? Feliz aniversário! – Grito, depois encho suas bochechas de beijos. – É para você. Não adianta dizer que não precisava. – Entrego o pote.

– Ah, Margarida! Não precisava. – Ela dá sua risadinha característica. Rosa olha para o pote mais um pouco, sem acreditar. – É... Só para mim?

Faço que sim com a cabeça.

Minha amiga tenta segurar o choro, porém é em vão. – Ah, Margarida!

– Não, Rosa... Não comece a chorar, é só um pó de doce. – Limpo seus olhos e dou um leve beijo na pálpebra.

O lábio inferior de Rosa treme e ela enxuga a água com a manga da camisa. – Doce... Eu posso dar um pouco para a minha mãe?

– Claro que pode, o doce é seu! – Sorrio e nos abraçamos novamente.

– Venha, vamos dividir.

Rosa me puxa pelo braço até a cozinha apertada. Lá eu puxo um tamborete que está debaixo da mesa e me sento, pondo os cotovelos sobre a bonita toalha branca que foi posta recentemente. Rosa pega duas colherinhas de alumínio e me entrega uma. Enchemos nossas colheres e lambemos, tomando cuidado para não deixar cair. Tiramos pedra, papel ou tesoura para ver quem ia lamber a tampa. Rosa ganhou e o pote ficou repleto das marcas dos seus dedos, onde ela passou um paninho e guardou na prateleira.

Depois de me agradecer ao menos outras três vezes, Rosa abre a porta para mim. Sua Rosa está bonita, digo, e ela cora.

Já estava há quase meio caminho de casa quando me lembro que deixei a tesoura, a machadinha e o bornal embaixo de uma pedra ao lado do toco do cajueiro. Não precisava ter voltado, era só ter ido direto para a floresta. Hoje tenho que podar e plantar umas árvores novas.

Antes de entrar na floresta, vejo um pequeno círculo de crianças. Elas estão todas sentadas de pernas cruzadas, quietas, cabeças erguidas cujos olhos arregalados se fixam em seu locutor. Era seu Benedito quem estava no meio da roda, eu logo percebi. O velho Benedito faz careta e gargalha com seu sorriso banguela. Ele conta aquelas coisas boas de ouvir que tira de sua cabeça esclerosada, contudo conta como se fossem causos, de um jeito que dá até vontade de acreditar.

Seu Benedito é a pessoa mais velha de todo o mundo: 102 anos nas costas, muito difícil de crer. Ao menos nós achamos que ele tem essa idade, pois ele já não sabe mais. De qualquer forma, é sobrenatural, pois ele e Vovó desafiam o tempo.

Os pequenos o chamam de contador de histórias. O velhinho já não anda, é magro, negro e dono de olhos azuis-claro que hipnotizam os ouvintes – provavelmente, logo, logo não vão mais enxergar, já que tem um pedaço de carne em seus olhos que se alastra a cada lua. Seu Benedito é calvo e os poucos cabelos da lateral da cabeça são completamente brancos. Sei que não tenho tempo, mas me junto ao grupo, que só agora posso perceber que conta com a presença de alguns adultos também.

– Juro que vi com esses olhos que a terra há de comer. Cof, cof. Eles chamavam aquilo de festa! Tinha um monte de gente limpa, usando roupas bonitas... Acham que é mentira minha? – Todos negavam, fingindo que era verdade. – Pois bem, a festa acontecia numa casa muito grande...

– Como a grande árvore? – Um menininho questionou.

– Muito maior do que a grande árvore!

"A casa era feita de tijolos... Sabem o que é? Um bloco meio cinza, cheio de furos, que você coloca um sobre o outro e faz uma grande parede respira fundo. Não é qualquer chuva que derruba uma casa de tijolos, muito menos qualquer vento, mas voltando... Sabem o que tinha de mais bonito lá? Crianças! Sim, Senhor! Assim como vocês, só que eram bem gordinhas. Elas brincavam de ciranda: davam as mãos e ficavam rodando e cantando e rodando e cantando cada vez mais rápido. Para lá e para cá, de um lado para o outro. Mas logo as mães delas vinham chamar, com aqueles vestidos enormes e cabelos bonitos. Elas diziam assim: 'Venham comer! O banquete está servido!'".

– Banquete? – Dessa vez foi uma garotinha de tranças loiras quem perguntou. – Em que pé de árvore dá isso? – Ela coça a cabeça.

– Outro dia eu conto a história do banquete para vocês. – Seu Benedito ergueu a mão, que só tinha três dedos. Ninguém nunca soube como foi que ele perdeu os outros dois. – É uma coisa que tem em toda festa.

"Tinha outra brincadeira muito boa também: pipa. Era um passarinho de papel que voava de verdade. Era só segurar a cordinha que ela ficava lá no céu. – E apontava para o alto, rindo.".

– O que o Tirano fez com eles? – É tarde demais quando percebo que as palavras saíram da minha boca. Todos olham em minha direção, inclusive seu Benedito. Me encolhi. O arrependimento chega tão rápido quanto a pergunta.

– O que disse? – Alguém fala.

– O monstro... Mataria qualquer um que fizesse isso... Não pode ser verdade, não é? – A simples menção ao nome deixou a tensão no ar.

– Claro que não! – Um rapaz diz, mascando folhas de coca. – Seu Benedito está é caducando, mas tem umas histórias até legais. Não é, seu Benedito?

– Eu o quê?

– A história da pipa é legal. Não sei de onde o Senhor tira ideia para inventar essas coisas.

– Pipa? O que é uma pipa? – Seu Benedito coça a cabeça, confuso.

– Esquece. – O rapaz dá de ombros e sai. Os outros levantam e o seguem.

– É tudo mentira, Margarida! Não tem monstro nessa história não, porque é invenção dele. – Minha vizinha diz próximo ao meu ouvido e vai embora. Fico sozinha com o velho.

– Margarida! Você por aqui! Tenho umas histórias muito bonitas de umas flores para te contar. Tem tanta flor no meio do mundo, Margarida!

– Me desculpe, Seu Benedito, mas eu preciso trabalhar agora. Fica para outro dia.

– Como você quiser, minha filha. Como é o seu nome mesmo?

**********

Já podei três goiabeiras e o suor começa a descer. Seu Benedito deve estar falando sozinho até agora. Ele geralmente não percebe quando as pessoas não estão mais lá.

Para mim, a história mais bonita que ele contou foi no último fim de ano, na lua cheia número 12. Várias pessoas se reuniram ao redor da grande árvore apenas para ouvir.

"Tinha água, minha gente! Água que não acabava mais! Era meio azul, meio verde e tinha uma espuma branca que batia na areia e nas pedras e depois voltava. Fazia um som bonito, mas o gosto não era muito bom. Era tanta água e ia tão para longe que chegava um momento em que a água encostava no céu. Então, quando o sol descia, a água engolia ele, e fazia barulho quando acontecia. Vocês acham que tem muito peixe nesse laguinho mixuruca? Pois que achem! Havia mais peixe do que gente. E tem mais... À noite a água batia tanto no céu que balançava todo o firmamento e fazia com que as estrelas caíssem. Elas iam parar no fundo da água e nunca mais voltavam. Então, as pessoas começavam a chamá-las de estrelas do mar.".

Oceano. Esse era o nome do monte de água que chegava a encostar no céu. Seria tão bonito se fosse verdade!

Me lembro de ter perguntado à Vovó, depois, o que ela achava. – Ia ser tão bonito, não é, Vó? Um monte de água... E eu ia ver as estrelas bem de pertinho. – Falei sonolenta, já puxando o meu lençol.

– Aquele velho está é caducando! E o pior é que ele enche a sua cabeça de coisas. Você não pode ficar acreditando nessas besteiras, menina Margarida. De onde é que já se viu? O mundo é pequeno demais para essa água toda! E é bom que as estrelas fiquem lá no canto delas, bem longe de mim.

Virei para o outro lado e comecei a rabiscar. Fiz a areia, a vastidão de água, as nuvens e pequenas estrelas por toda parte. Tinha uma linha escura onde a água encostava no céu.

**********

– Deixe esse bornal aí, Margarida, e venha comer. – Vovó vinha trazendo uma panela de arroz com batata, cenoura e beterraba. Senti o cheiro logo que coloquei o pé na porta. É de se impressionar como ela consegue fazer essas coisas com quase nada de ingredientes.

Enchemos nossos pratos e damos uma colherada atrás da outra, parecendo mais uma disputa para ver quem termina primeiro. Bebo um gole d'água para ajudar a comida a descer e limpo a boca na manga da camisa.

– Seu Benedito estava contando histórias de novo. – Falo.

Vovó revira os olhos. – Sobre o que era desta vez?

– Uma tal de festa. Tinham pessoas limpas, crianças gordas e uma coisa chamada pipa.

– Se esse velho tivesse para trabalhar a mesma disposição que tem para inventar mentiras...

– Mas é que...

– Não me interrompa, Margarida. – Ela fala, calmamente, me olhando, mas ao mesmo tempo sem tirar a concentração do prato.

– Desculpe. – Digo, sem jeito.

Ela põe outra colherada na boca. – Continue.

– É que ele tem mais de 100 anos e não tem mais idade para trabalhar.

– Eu também não tenho. – Retruca.

– E eu não acho justo em nenhum dos casos. – Como foi que a gente entrou nessa conversa mesmo?

– Mas é assim que as coisas são.

– Eu sei... Ele está caducando, só isso. Ele não faz por mal.

– Fazer os outros perderem tempo de trabalhar é um mal grande. Ele estava até importunando o Senhor Gaspar com uma história de instrumentos musicais ou sei-lá-o-quê. Ele escutava com paciência, ficava tentando se esquivar, mas o velho não deixava. Aquele Benedito sabe mentir tão bem que o homem já estava começando a se interessar... – Ela balança a cabeça em desaprovação.

– Por que a Senhora não gosta das histórias dele? – Pergunto, talvez um pouco ousada demais.

Vovó respira fundo. – Por que criar gente é tão difícil?! – Ela aproxima seu rosto do meu e reduz o tom de voz. – Ouça, Margarida Flor: são histórias boas de ouvir, cheias de coisas bonitas... Só que nada daquilo existe. Além disso, o Tirano não gosta de quem perde tempo. Ele está ouvindo e vendo tudo o que fazemos e anda por aí à noite para nos vigiar... Não mandar chuva é o mínimo que pode acontecer. Já faz muito tempo que não se tem uma desgraça grande pelo mundo, e você não quer ver uma, vá por mim.

Ela falou aquilo de um jeito tão sério que eu engoli em seco. Eu sabia de que desgraça ela estava falando.

Naquela noite, fui dormir pensando no que Vovó disse. Só havia uma coisa que eu estava com dúvida: como é que ele pode saber o que eu penso?

Eu mal imaginava que brevemente saberia da resposta. 





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