CAPÍTULO CINCO


Dedicado a:

veruskacavaocante

ElisabethDuarte1

marcianadejupiter

AnneCFreitas



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Ninguém lembra muita coisa do passado, a não ser o fato de que a geração do meu bisavô sabia ler. Antigamente, existiam livros, eu lembro vagamente. Da última vez em que eu tive contato com um, eu estava com uns cinco anos. Depois, eles deixaram de existir de vez e meus filhos jamais verão um. Se a geração anterior à da minha Avó sabia ler, então é porque eles tinham um sobrenome. Certamente, um sobrenome era muito barato naquele tempo, porque não tem cabimento de todos eles terem conseguido um e nós não. Como é possível que, três gerações depois, ninguém tenha um sobrenome?

Vovó não se lembra do pai dela, nem ao menos sabe o seu nome. Assim como toda a geração dele, ele sumiu misteriosamente deixando seus descendentes sem história para contar. O pior é que, a medida em que o tempo vai passando, as lembranças vão ficando cada vez mais distantes. Depois do sumiço de toda aquela geração letrada, os livros passaram a ter uma única função: servir de lenha para nos aquecer. O tempo foi passando e eles foram ficando cada vez mais escassos e extintos de vez há 10 anos. Quando eu os folheava, não entendia nada do que havia lá. Invariavelmente, alguém arrancava da minha mão e jogava no fogo. Não se pode estar desperdiçando uma coisa assim tão boa de queimar, mas se eu achasse um hoje, não jogaria na fogueira.

Minhas pestanas ardem e estão se fechando, involuntariamente. Me arrasto até a cama e cubro todo o meu corpo com o lençol, lembrando-me tarde demais que não coloquei a camisola. Dane-se. Ela está imunda mesmo.

Desperto, repentinamente, durante a madrugada. Ao meu lado, Vovó geme com a mão no joelho, não sei se por dor ou por estar delirando num pesadelo. Dou uma leve sacudida e ela também acorda, tateando um pouco até os olhos se adaptarem à escuridão.

– Já é de manhã? – Ela pergunta, num sussurro.

– Não, ainda podemos dormir. – Ela visivelmente relaxa. – Trouxe mais camomila.

– Bom. – Ela adormece novamente antes que eu retire o pano de sua pele.

Me deito mais uma vez, sendo que agora eu demoro a pegar no sono. Sinto-me frustrada pelo tempo de descanso que estou perdendo e só adormeço depois de muito girar de um lado para o outro. Acordo, como sempre, antes do sol nascer. A sensação de não ter dormido nada é o que me impede, momentaneamente, de perceber que o som que vem lá de fora é chuva. Chuva. Som de chuva. O barulho mais lindo do mundo. Significa que o Tirano gostou das oferendas.

Levanto feito uma ventania e corro lá para fora. A chuva castiga o telhado simplório com força e as paredes já adquiriram umidade. Nem ouço o ranger da porta quando a arreganho e salto para a rua. Dou um grito agudo de felicidade e ergo as mãos aos céus, como se eu pudesse segurar a água e não soltar nunca mais, mas a água não pode ficar nas nossas mãos, porque a água é como as pessoas.

Meus dedos dos pés afundam na lama enquanto minha roupa e meus cachos encharcados grudam em mim. Pulo e rio à toa igual a uma criança. Todos a minha volta estão assim: encharcados, correndo, pulando, dançando e gritando embaixo da chuva. Os pais colocam os filhos nos ombros e eles gritam: – Chuva! Chuva! – A esta altura não tem mais ninguém dentro de casa, exceto Vovó.

Contorno a casa e vou para a lateral. Esmurro a janela até que ela abre. – Vovó, chuva! Acorde!

Ela se vira em minha direção e, quando vê o cenário atrás de mim, seus lábios fazem uma curva de orelha à orelha. Dona Consuelo levanta-se o mais rápido que pode e vem se juntar a nós. Ela usa as mãos em forma de bacia para aparar a água e jogar no rosto. Vovó olha para mim sorrindo e, por um instante, penso que ela vai me dar um abraço ou um beijo. Podia ser só um carinho no rosto, qualquer coisa, mas ela não o faz.

– As vasilhas, Margarida. – Vovó lembra.

– É mesmo! Digo, já correndo para o quintal.

Conseguimos encher todos os baldes e bacias, até mesmo as vasilhas pequenas. Só o Tacho de doce que escapou. Em dia de chuva é assim: surge vasilha de todo lugar. Acho bonito todas essas vasilhas juntas. As pessoas de quintal pequeno chegam a pôr vasilhas na beira da estradinha por falta de espaço. Felizmente, a chuva além de durar muito, não deixa nenhum estrago grande, só algumas goteiras que ficaram ainda maiores. E também entrou um pouco de água para a sala e um pedaço da cerca velha caiu.

A água deixou um rastro de lama e de pequenas gotas de orvalho nas folhas das plantas. O céu está cinza e pesado, parece até que já é noite. O clima é úmido e agradável, misturando-se ao cheiro de madeira e palha molhada. Vovó e eu levamos as duas maiores vasilhas de água para dentro do banheiro; as menores estão lotando a cozinha e as restantes ficam próximas à plantação, com algumas folhas de bananeira em cima para que não caiam insetos.

Eu já havia aproveitado a chuva caindo para passar sabão em meu corpo e no meu cabelo. Não tenho outra roupa para vestir, então ela seca por conta própria em minha pele. Hoje é dia de troca e de chuva: estamos tão felizes que não conseguimos parar de sorrir – e nem temos um porquê. Um pouco de água e comida foram o suficiente para nos fazer esquecer a morte do Roberto. As coisas da troca já estão separadas e a goiabada da Rosa está escondida no fundo do meu baú. Rosinha ficará tão feliz... Acho que ela vai chorar. Ela sempre chora.

Deixo alguns cajus e umas goiabas para nós. Os potes e as outras frutas eu ponho dentro dos cestos. Guardo com zelo o leite que sobrou para nós: uma garrafinha que equivale à exatamente duas canetas e tem que render sete dias. Tem que dá, mas não dá. Procuro Vovó para irmos fazer as compras e a encontro no quintal lavando roupa sentada no banquinho.

– Você vai ter que ir sozinha, Margarida, do contrário não vou conseguir terminar essa roupa hoje.

– Tá bom. O que eu trago? – Espero que dê para comprar galinha.

– Traga as coisas de sempre, mas diminua a quantidade de milho e traga mais verduras, pois vou fazer sopa. Não esqueça os ossos e leve o doce do Seu Silvano. Precisamos de linha e também vamos ter que fazer sabão. – Ela fala. – Não vai dar para ter galinha dessa vez. Talvez na próxima troca. – Ela me dá o olhar de sinto muito.

– Tudo bem. – Dou de ombros, tentando disfarçar. – A gente precisa mesmo de sabão e linha, e teve o presente da Rosa também.

– Desculpe. – Suspira.

– Não tem que se desculpar, não é culpa sua.

– Infelizmente, as coisas não são do jeito que a gente quer que seja.

Eu sei disso. É a primeira coisa que penso quando acordo. Só assinto com a cabeça e concordo.

– Já vou.

– Cuidado.

– Vou ter.

Passo a manhã inteira andando pelo mundo. Levo uma cesta de coisas, troco por produtos, volto para casa, pego outra cesta... Não deu para conseguir uma galinha, mas em compensação temos um pedacinho de queijo agora. Trouxe algumas espigas de milho que Vovó usou para fazer broa. Ela sova a massa na mesa coberta de farinha enquanto eu vou arrumando as outras coisas: uma penca de bananas, seis maçãs, feijão para quatro dias, um punhado de arroz, um saquinho de goma, duas trouxas de farinha de mandioca, oito ovos mais a manteiga de fritá-los, borra de café, alho, cebola, coentro e pimentão. Consegui de último tempo trocar duas goiabas por uma cenoura. Temos uma quantidade boa de batata doce e até um jerimum e umas mangas. Ficamos apenas com um pote de doce de leite, porém possuímos um peixe pequeno, duas fatias de melancia e três tomates.

A banha e aquele pouco babaçu levaram boa parte do que eu tinha. O novelo pequeno também foi caro, espero não precisar de um nem tão cedo. É o que todo mundo espera, por isso que Rosa e Dona Neci passam tanta fome. Quando eu chego com a primeira leva de coisas, Vovó e eu comemos uma banana cada uma. Durante o tempo em que ela ia dando formato às broas, eu ia fazendo a massa das bolachas.

– Meia concha de leite, Margarida. Meia concha. – Vovó diz com os olhos virados em minha direção, sem praticamente movimentar a cabeça.

Obedeço, tampando e guardando com cuidado a garrafinha de leite de volta no armário.

Vovó faz as bolachas enquanto eu ponho mais lenha no fornilho. Demora um pouco para pegar, pois ele está muito molhado. Olho o feijão que está na panela de barro, tão duro que parece que não vai cozinhar. Nele, Vovó colocou coentro, cebola, alho e um pouco de banha. Consegui um grande pedaço de osso bovino com um pouco de carne e gordura em volta. A carne está amarrada numa cordinha cuja outra extremidade encontra-se presa num dos caibros do teto. O osso cozinha junto ao feijão, entretanto quando o cozimento acabar temos que subir a corda para que o osso fique suspenso. Não é para comer, é só para dar gosto. Quando for à noite, abaixaremos a corda para que o osso dê gosto à sopa. De tanto cozinhar, ele vai perder o gosto, e só aí que poderemos comer.

No almoço, nós duas fazemos pratos grandes, com uma generosa colher de farinha por cima do feijão. Um pedacinho de carne se soltou da corda e Vovó deixou que eu ficasse com ele. Ela disse que amanhã ia fazer farofa d'água para a gente comer com ovo. Mal posso esperar.

Comemos em silêncio, só os talheres batendo nos pratos e o som das moscas acerando a carne, que está marrom e com gotas de caldo de feijão pingando na boca do fogão. Engulo rápido e me lambuzo toda, lembrando-me de passar a língua no prato depois, e Vovó me imita. Como até uma colher de doce de leite depois. Meu dia já está ganho.

– Venha, menina! As roupas já secaram. Venha vestir algo limpo.

Ponho uma calcinha branca e uma calça de flanela cinza. Depois, coloco uma blusa clara, sem mangas, que tem duas tiras na frente para dar um laço. Dá para ver minha pele por baixo da blusa.

Vovó desaprova. – O pano dessa blusa está ficando muito fino. Melhor colocar algo por baixo.

Me enrolo em um pedaço de pano e Vovó dá um nó em minhas costas. É pequeno o pano, só cobre os meus seios mal desenvolvidos. Pareço uma menina de 11 anos. Ponho minha blusa por cima novamente. Vovó também usa roupas limpas: um vestido que arrasta no chão e um lenço na cabeça. Voltamos ao trabalho depois.

Vovó limpa a mesa e lava a louça com o pedacinho de sabão que resta, ao mesmo tempo em que eu apanho as roupas do varal, dobrando e separando as boas daquelas que precisam ser remendadas. Guardo o que está pronto no baú e troco os lençóis da cama. Minha Avó pôs uma rede no pequeno alpendre e usa a linha recém-adquirida para consertar as roupas. Ela também costura novos panos higiênicos para quando minhas regras chegarem, tomando a cautela de deixar alguns um pouco maiores para usar à noite. E assim ela fica durante um bom pedaço da tarde, fazendo o que mais gosta de fazer: costurar e balançar.

Varro a sala para retirar a água e troco as mantas por outras limpas. Também dou de beber às vacas e observo que a água que está próxima às plantas já acabou. Vou à cozinha e pego os ossinhos pequenos que não foram para o fogo, retiro o tutano e ponho num pote de doce de leite vazio, para em seguida adicionar essência de babaçu e misturar bem. Depois esfrego a graxa em minhas mãos e passo nos cabelos, que ganham um aspecto melhor.

Vovó levanta-se da rede para fazer sabão quando termina seu trabalho. Primeiramente, colocamos a banha na bacia, depois os outros ingredientes, incluindo o que restou do babaçu. Mexo até engrossar, para depois colocar a pasta na forma e cortar as barras assim que elas endurecem.

– Sabe, Margarida, você é uma menina boa. – Vovó fala em dado momento, contudo sem olhar para mim. Talvez eu não seja uma menina má, não é? Não posso ser uma pessoa ruim, então não tenho porque parar de rabiscar.

Ajudei Vovó a fazer a sopa: verdura, água de chuva e a cordinha que foi abaixada até alcançar a panela. Ponho o arroz por último e assim que ele fica bom eu ergo a corda – dessa vez não caiu carne nenhuma. E foi com pratos de sopa ainda mais cheios que os de feijão e dois grandes pedaços de broa que Vovó e eu jantamos.

– Vó?!

– Fale.

– Eu não vi a Rosa hoje.

– Amanhã você vê, o sol já se pôs.

– Mas o Tirano mora do outro lado do riacho proibido. – Reviro os olhos.

– Não quero saber! Ninguém sai depois do pôr do sol e você não é diferente de ninguém! – Ela fala, sem tirar a concentração de sua broa. – E não revire os olhos para mim! – Mas como ela sabe?

E a conversa está encerrada.

Nós nos deitamos um pouco depois. O melhor de estar de barriga cheia e camisola limpa é que a gente adormece rápido. 



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"Quem controla a água, controla tudo". 

Essa frase de efeito é uma das premissas do filme "Rango". O filme é uma ironia por si só, desde o seu título até o seu protagonista anti-herói. Ele mais me lembrou uma fábula feita para adultos, com um camaleão frouxo e malandro de protagonista. Nosso grande "Rango", um caçador de autoconhecimento, foi parar numa cidadezinha do velho oeste chamada "Poeira". Nessa cidade, os excêntricos moradores - desprovidos de inteligência e metidos a valentões - estão enfrentando uma severa crise d'água. A única torneira da cidade pifou e no banco, lugar  onde se guarda água ao invés de dinheiro, só há suprimento para poucos dias. As pessoas estão desesperadas e imploram pela ajuda de Rango, aparentemente abençoado pelo que eles chamam de "espírito do oeste". Mas, para além desses infortunórios, o que chama muita atenção na história é o papel do prefeito, uma velha tartaruga sábia que nunca aparenta estar com sede, ao contrário dos outros. "Quem controla a água, controla tudo", ele disse, nos dando um spoiler do que ia acontecer. 

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