Capitulo 22 - IKAL

Respiro vagarosamente, escondido por entre os arbustos da floresta tento não chamar a atenção. Observo pacientemente um grupo de soldado, seis ou sete talvez, montados em cavalos e usando algum tipo de máscara prateada. Eles caminham com olhares atentos, armas empunhadas, parecem procurar por alguma coisa.

Sinto meu corpo congelar, algo não está certo, a floresta está calma de mais, eles não deveriam estar perambulando tão perto da tribo. Penso que devo atacá-los, estou em menor número, eu sei, mas não levaria muito tempo para acabar com eles.

Dou um passo em direção aos soldados, o arbusto se mexe com o meu movimento. Um dos soldados olha na direção onde estou, ele me viu, olhou diretamente em meus olhos. O silêncio que se instalou é quebrado por um aviso vindo de um dos homens" vamos embora, parece que acharam os garotos". Os cavalos saem em disparada para dentro da floresta sumindo por entre as árvores. A tensão do meu corpo se dissipa lentamente me fazendo notar o cheiro que inunda minhas narinas, não consigo identificá-lo, mas já o senti antes. Não apenas o cheiro me é familiar, o olhar daquele soldado, os olhos dele, ele tem o oceano nos olhos, assim como eu.

Olho para o lado, por um segundo esqueci que Kloe também está aqui, não usa mais sua forma de lobo, está como uma garota normal, ajoelhada atrás de um arbusto me olhando com aquele olhar de que me mataria em instantes. Seus cabelos longos e negros cobrem parte do seu rosto, escondendo por um momento seus olhos cores de cristais, levemente acinzentados. Sua pele branca realça os símbolos escuros que ela mesmo desenhou.

- Você não estava pensando em atacá-los, estava? - Kloe pergunta

- Você também sentiu...? O cheiro? - pergunto

- Do que você está falando, eles disseram "acharam os garotos"! Quem eles estão procurando? - Kloe pergunta.

- Precisamos descobrir, e rápido - digo

Voltamos para Tukrawk, um pequeno vilarejo bem no coração da grande floresta. Dizem as lendas que descendemos de um povo indígena que a muito tempo atrás sofreu um sangrento massacre levando nosso povo a um extermínio quase total. Nos reerguemos graças a proteção da deusa Felalia, que rege toda a magia da floresta, nos fornece os frutos e alimentos vindo da própria terra.

- Temos que informar Tayuã sobre a presença dos soldados. - diz Kloe.

- Vai indo na frente, tenho que... Que, resolver umas coisas. - digo.

Kloe me olha, mas permanece em silêncio, saio o mais rápido que consigo. "Ikal, vem jogar com a gente" diz um garoto correndo atrás de algumas crianças pelo pequeno vilarejo. "Não Ryan, minha mãe disse para não me misturar com Ikal, ele tem o sangue dos inimigos nas veias", diz uma outra criança, meu corpo congela, mas não paro, afinal ele não está dizendo mentiras.

Me sento em uma pedra de frente para o rio Kiogy, foi aqui onde vi minha mãe pela primeira e última vez. Já fazem alguns anos, me lembro de ainda criança correndo pelo vilarejo... quando tudo começou, guerreiros que protegiam Tukrawk avançavam com lanças e flechas em direção ao rio. Como um típico garoto curioso corri logo atrás.

O cheiro, claro! O cheiro que senti a pouco na floresta é o mesmo cheiro que senti ao ver o soldado com os olhos do oceano deixando minha mãe, já sem vida, em cima dessa pedra. Antes que os protetores atacassem o soldado ele montou em seu cavalo e partiu como um raio para longe do vilarejo. Soube que era minha mãe quando meu avô se ajoelhou e chorou diante do corpo da mulher.

Dizem por aí que minha mãe saiu em uma missão e se apaixonou por um dos soldados inimigos, dizem também que tenho em meu sangue a traição. Claro, o fato do meu avô ser o líder dos Tukrawk é principal motivo de me aceitarem no vilarejo. Mas os olhares tortos e os comentários em reprovações me seguem desde o dia em que nasci.

- Aí está você - diz Kloe.

- Eu sempre estou aqui - digo.

- Me diz, o que você está escondendo? - ela pergunta.

Olho direto em seus olhos, nós crescemos juntos, somos a melhor dupla de patrulha da aldeia. Não há nada que eu posso esconder dela. Não sei se é o melhor, mas preciso contar. Me deito sobre a pedra e apoio a cabeça sobre as mãos. Respiro fundo e começo a contar.

- Os soldados, eles disseram "os garotos foram encontrados", acho que sei quem são os garotos - digo

- Como você pode saber? Do que você está falando? - ela diz

- Já faz alguns dias, eu estava na floresta durante a noite, escutei um barulho estranho, nunca ouvi nada igual antes. Decidi investigar. Então vi o garoto sendo atacado por algumas criaturas da noite, ele parecia assustado, cansado devido a lutava contra as criaturas, parecia tentar proteger uma garota. Eu decidi ajudá-los. Os guiei até que pudessem sair da floresta com segurança. Eles estavam em veículos de metais, iguais aos que os protetores nos contavam que viam em suas missões. - digo

- Como você não contou isso para ninguém? Eles podem representar uma ameaça para nosso povo! - diz Kloe.

- Não eram uma ameaça - digo.

- Como você tem pode certeza - ela pergunta.

- Eles cheiravam a medo. - digo.

Não conto tudo o que sei, mas sinto que ela já percebeu isso. Talvez eu tenha falado de mais. Não posso contar a ela sobre Claryce, sobre as bruxas presas na fortaleza. Talvez me proibissem de encontrá-la, não posso correr o risco. Saio todas as noites para levar os alimentos que colho na floresta pela manhã. Pelo que Claryce me conta, as bruxas estão muito mal, fracas e com fome.

Permanecemos em silêncio por alguns instantes, um pequeno pássaro pousa na borda do rio, seu canto é engraçado, esboço um pequeno sorriso. Não preciso olhar para o lado para perceber que Kloe já partiu, talvez tenha ficado chateada, mas fiz o que achava melhor.

Me levanto com um pulo, meu coração acelera. Como eu pude ser tão distraído. Esse é o pássaro mensageiro! Claryce disse que usaria para me encontrar caso estivesse em perigo. Tenho que trazê-la comigo, mas meu avô não permitirá que ela fique o vilarejo, tenho que achar um bom lugar para deixá-las. Sei quem pode me ajudar!

Volto para o vilarejo, Ryan ainda está chutando um cocô com alguns outros garotos. Tento me aproximar sem ser notando, não posso correr o risco de ser encontrado pelo me avó ou pela Kloe, com certeza arrancaram toda verdade de mim.

- Soube que você é o lobo mais rápido do vilarejo, é que dizem Ryan, por esse motivo tenho uma missão para você! - digo

O garoto me encara, sua expressão é quase indecifrável, um misto de confusão e empolgação. Não demora muito para que um breve sorriso se forme em seu rosto.

- Você está certo, sou o lobo mais rápido de toda Aland - diz Ryan.

- Lembra quando me disse sobre uma casa abandonada na floresta? - digo.

- Lembro sim, hã... Ikal, não acho uma boa ideia. A casa cheira a magia... Magia de bruxa. - ele diz.

- Também não acho uma boa ideia, mas é a única que tenho. Só preciso que me mostre o caminho e mantenha essa nossa conversa e segredo. - digo

Ryan acena em positivo com a cabeça. Corremos floresta adentro. Temo por não saber quanto tempo ainda tenho, ainda nem pensei em um plano para tirar Claryce e as bruxas da Fortaleza. O lugar é mais longe da tribo do que eu imaginava, protegido por enormes árvores que escondem uma casa velha rodeada por gramas baixas, verdes, com brilho diferente. O garoto está certo, esse brilho, a casa, as árvores. O cheiro de magia exala em meu nariz.

Volto a forma de homem, dou alguns passos para frente e estendo minhas mãos, elas atravessam uma parede fina quase transparente.

O brilho de um raio partindo o céu chama nossa atenção, não há nuvens nos céus, não sinto cheiro de chuva. Pela distância do brilho, o raio deve ter caído além dos limites da floresta, e nós da tribo somos proibidos de atravessar esses limites.

- Ei Ikal, você não tem curiosidade para saber o que tem além da floresta - diz Ryan

Eu não o respondo, apenas nos olhamos e não contenho um breve sorriso.

- Há não me diga que você já saiu da floresta! Vai me conte, o quem lá? É verdade o que dizem sobre as bruxas, as criaturas!?

- Ei, vai com calma, eu te conto, mas com uma condição, você não vai contar para ninguém que me trouxe aqui. - digo.

- Certo! Não contarei.

- Agora volte para a tribo, eu tenho que visitar uma amiga. - digo.

Sigo em direção ao local onde avistamos os raios. Por sorte chegarei antes do dia anoitecer. Consigo ver fumaças subindo pelo ar, elas vão aumentando conforme me aproximo. Já consigo ver as estradas, cheguei ao final da floresta. Os muros da fortaleza já estão visíveis, os sons de batalhas são intensos, para repentinamente, o chão treme e diante dos meus olhos uma enorme estrutura de ferro atravessa os muros.

Mulheres e crianças atravessam os murros atrás das estruturas, se aglomerado do lado de fora da Fortaleza, Claryce surge logo depois, corro em direção a ela ao ver que carregam um dos soldados que vi dias atrás na floresta.

- Claryce! Se afaste, esse homem é perigoso! - digo

- Lobo, você veio. Temos que sair daqui. - diz Claryce.

- Eu conheço um lugar, mas temos que sair daqui agora! - digo.

- Essas mulheres estão fracas, algumas feridas. - ela diz.

- Eu... Eu posso ajudar - diz o soldado.

Claryce fixa os olhos em mim, ela parece confiar no soldado. Afinal, qual o motivo de trazê-lo até aqui.

- Me diga aonde devo ir, e eu abrirei um portal até lá - continua o soldado.

- Floresta. - digo.

O soldado golpeia o ar com sua espada, uma fenda brilhante se abre vagarosamente. Aos poucos as mulheres entram através da fenda. Eu vou logo atrás para mostrar o caminho.

Já se passaram alguns dias desde o resgate das bruxas. Ainda estou pensando em um jeito de dizer ao meu avô que tem bruxas escondidas em nossas terras. Temo pela sua reação, desde a morte da minha mãe, carrego o fardo de trazer o mal para o vilarejo, e sei que me aliar as bruxas não condenará só a mim, mas traria a fúria do rei para todo meu povo. Tenho que ir embora daqui.

Coloco algumas coisas em uma pequena bolsa improvisada. Moramos apenas eu e meu avô em uma pequena cabana de madeira. Não tenho como sair despercebido. Deixo meu quarto, na porta da cabana está meu avô, um velho de cabelo e barba branca, em seu rosto ele carrega as marcas na sabedoria, abaixo de seus olhos estão desenhadas as três esferas, símbolo dos Tukrawk, símbolo esses que todos nós guerreiros carregamos.

Paro em frente à entrada da cabana, meu avô eleva o rosto até que seus olhos recaiam sobre os meus. Abro minha boca, mas as palavras não saem. O velho apenas acena com a cabeça, leva uma de suas mãos até meu rosto.

Já é noite, deixo o vilarejo a caminho para floresta, sei que não é seguro, mas o cheiro, esse mesmo cheiro que senti ao ver minha mãe, senti na floresta quando encontrei os soldados, esse cheiro vem ficando cada vez mais próximo.

Uma mão agarra meu pescoço, fazendo com que minhas costas se choquem com o tronco de uma árvore. Meus pés não tocam e chão e sem minha forma de lobo não enxergo bem na escuridão da noite.

- Você não achou que iria ir embora sem me dizer o que está acontecendo, achou? - diz Kloe.

- Na verdade sim, achei que tinha conseguido. - digo.

- A floresta não é mais segura. Tina me disse que atacaram um inimigo a poucos dias trás, disseram ser um bruxo a serviço do rei, mas ele escapou. - diz Kloe.

Meu coração acelera, Claryce, ela está em perigo. Tenho que sair daqui, mas não consigo pensar em nada rápido para fugir da Kloe.

- Tudo bem eu conto, eu escondi algu...

Sou interrompido por um barulho vindo por entre as árvores. O som de galhos sendo quebrados, arbustos levemente se movimentando. Parece que tem alguém se aproxima do, me acharam. Kloe me solta e se vira para os arbustos.

Ryan, e outros garotos saltam por entra as árvores e levam Kloe ao chão.

- Corre Ikal - diz Ryan

Me transformo em lobo e corro em direção a casa das bruxas. Não contenho o sorriso em meu rosto em pensar que esses garotos estão muito encrencados.

Os ventos fortes balançam as copas das árvores, os arbustos dançam em um ritmo acelerado o a mistura de cheiros faz minha cabeça rodar. O dia já está nascendo, assim que os primeiros raios de sol atravessam as árvores eles revelam a presença de inúmeros inimigos escondidos na densidade da floresta

A casa está toda cercada, o soldado que veste um uniforme preto recua o que seria o início do ataque. Um garoto está posiciona em pé, de frente para a porta que logo depois se abre, uma garota desce e caminha até a fina grama, os dois discutem algo que não consigo compreender.

Tenho a vantagem de estar posicionado nas costas do Inimigo, um ataque surpresa me daria uma boa vantagem. Ataco o soldado líder e depois vou improvisando pelo caminho.

Me preparo para o ataque, novamente mão em meu pescoço me pega de surpresa. Dessa vez estou no chão.

- Você me subestima Ikal - diz Kloe.

- Então eles te contaram sobre a casa? Pequenos traidores - digo.

- Não os julguem, afinal qual a dificuldade em arrancar informações de garotinhos assustados? - ela diz.

Kloe passa os dedos desenhando sobre minha pele, símbolos escuros surgem através de seus de desenhos. Cada marca tem um significado, agilidade, força, velocidade, cura.

Escuto um disparo, uma parede de gelo se forma na estrada da casa, eles estão sob ataque. O céu escurece, uma enorme lua surge em meio ao céu já escuro.

- Anoiteceu, a lua... Só uma alcateia numerosa é capaz de invocar a lua. - digo.

Dezenas de olhos surgem em meio a escuridão. Lobos saltam sobre os telhados e surgem por todos os lados.

- Eu não te trai Ikal, você só se mete em confusão, então precisava de reforços para te resgatar - diz Ryan.

Me junto aos lobos, os soldados avançam para o ataque, um a um eles caem, Claryce parte para dentro da floresta com as bruxas, protejo a sua fuga atacando os soldados que as perseguem.

No final da batalha não tivemos percas, os soldados em menor número agora se agrupam e correm para trás das árvores. Os garotos que conversavam a pouco na entrada da casa conseguiram derrotar o soldado de uniforme preto.

- Vão embora agora, Claryce está esperando vocês na floresta, irei mandar reforços para que lhe protejam no caminho! - digo.

- Você sabe que não podemos ajudá-las, não sabe Ikal? - diz Kloe.

- Sei, por isso estou partindo. Não quero mais causar problemas para a tribo, ora, você sabe que nunca fui aceito pelos Tukrawk, eu perdi minha família. - digo

- Eu pensei... Na verdade você é minha família - ela diz.

- Me desculpe. Mas meu lugar não é mais com vocês. - digo.

- Ei, não esquece que você tem que me contar o que tem depois da floresta. - diz Ryan.

Os lobos me encaram com expressão de reprovação, Kloe se vira para mim, olha por alguns instantes antes de abaixar a cabeça.

- Não irei te contar nada pequeno traidor, e aliás, isso também era segredo. - digo.

Sigo as bruxas que já estão a caminho da floresta. Dessa vez ninguém tenta me impedir. Eles seguem as regras, temem pelo seu povo, sua tribo. Mas essa não é mais minha missão. Minha mãe lutou por algo maior, morreu em uma missão que ainda não sei qual é, mas que eu vou terminá-la.

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