Round 7: Jab


Miguel trabalha no turno da noite, então durante a manhã é seu horário para dormir e descansar, todos da casa sempre respeitaram isso e por isso a casa sempre é a mais silenciosa possível. Não hoje, pelo menos. Maria o acorda com uma expressão facial de pura raiva, ela o sacode e o homem desperta assustado, colocando a guarda e olhando ao redor compulsivamente.

--- Miguel, acorda agora! --- Ela o sacode mais uma vez e ele respira pesado tentando se acalmar.

--- Ahn??? Onde tá o incêndio?

--- Na nossa casa!

--- O QUE????? --- Miguel levanta assustado e começa a procurar ao redor, fazendo seu olhar viajar por todo o local --- Onde?

Maria continua olhando brava para ele, ela coloca as mãos na cintura e cerra os olhos. A mulher faz um olhar que ele já conhece e sabe identificar há muito tempo, é o olhar de "Você está ferrado". Ela segue respondendo com a voz exalando raiva.

--- Metaforicamente falando.

--- Ah, foi uma expressão. --- Miguel suspira aliviado e relaxa os ombros que estavam tesos --- Me acorda assim não, sério mesmo. E nem tá na hora do trabalho, me acordou porquê?

--- Por causa do Davi.

Miguel deita novamente e coloca as duas mãos na nuca, ficando totalmente confortável e com uma expressão de preguiça. Ele olha para o teto e boceja.

--- O que tem o Davi?

--- Meu filho chegou todo machucado ontem! Como pode apoiar isso?

--- Ah, o boxe? --- Ele diz despreocupado --- Às vezes acontece de machucar um pouco.

--- É, Miguel, o boxe. --- Ela diz sinalizando como se fosse óbvio --- Como apoia seu filho nessa barbaridade?

O homem sorri rapidamente, ele senta na cama e puxa Maria para que ela sente do seu lado. Miguel segura a mão dela e a encara nos olhos, logo depois dá um pequeno sorriso para tentar contornar a situação e dobrar a esposa.

--- Ele está andando com as próprias pernas finalmente, não posso podar ele. Sei que se preocupa, mas é o que ele gosta.

--- Eu cansei de remendar sua cara depois das suas lutas e o que eu ganhei com isso? --- O olhar dela muda para um olhar de pesar, ela olha para baixo e suspira --- Ainda somos pobres e meu marido agora não escuta bem e tem o ombro machucado. Nosso filho tem que estudar.

Miguel fica pensativo, ele mantém o silêncio por uns instantes, mas segue mantendo um contato visual fixo na esposa. O marido passa a mão no queixo e depois balança a cabeça concordando, logo em seguida diz com um largo sorriso.

--- Pode até ser, mas eu posso dizer orgulhoso que vivi como quis e não tenho arrependimentos. Isso não tem preço. Não peça pro rapaz viver nas sombras.

Maria fica sem palavras, ela apenas olha para o chão pensativa, imaginando o que poderia dizer que não soasse ofensivo com os ideais do marido. A mulher pensa em dizer algo, mas logo entende que a conversa deve ser feita com o Davi, ele já tem idade para decidir e já é velho para ser tratado que nem criança. Miguel não é a pessoa que ela deve conscientizar, Davi é. Ela então levanta e joga o travesseiro na cara de Miguel.

--- O café tá pronto --- Maria diz saindo do quarto, decidida a resolver com o filho sem intermediadores --- Vá antes que esfrie.

--- Isso que dá casar com a bravinha da sala --- Miguel sussurra rindo e levantando para comer  --- Já tô indo, meu amor.

🥊

--- E então, dá pro gasto? --- Helena pergunta presunçosa, com um certo ar de orgulho.

--- Se dá pro gasto?? --- Davi responde incrédulo, totalmente surpreso. De modo que se reflete em sua voz --- Isso aqui tá perfeito.

O rapaz fica longos segundos olhando para o papel de suspensão que havia recebido. A assinatura dos seus pais está perfeita. Helena havia feito um serviço digno de um falsário do mais alto calibre. Até os pequenos detalhes da assinatura pareciam idênticos para olhares leigos. Só resta para Davi elogiar.

--- Onde aprendeu a imitar assinatura assim?

--- O Gustavo levava muita suspensão e tal --- Helena dá de ombros --- então eu meio que tive que aprender a falsificar assinatura pra ajudar ele.

--- Que prima atenciosa --- Davi diz para irritar ela, com uma voz de deboche.

--- Uma amiga atenciosa também --- Ela faz uma pequena pausa --- Já que tive que falsificar pra você também, projeto de delinquente.

Ela acabara de tocar na ferida, isso o lembrou da detenção e todo o ocorrido, isso é uma mancha no seu histórico escolar. Não que realmente vá mudar algo ou ser uma consequência séria, mas Davi é metódico, certinho e chato quando o assunto é a escola, então isso o deixou extremamente incomodado.

--- Pegou pesado. --- Davi diz desanimado --- Uma suspensão não me faz delinquente.

Helena então sorri e coloca a mão no ombro dele, consolando o amigo de forma irônica. Como se estivesse dando os pêsames ao histórico manchado.

--- É o que todos os delinquentes dizem.

--- Nãooooooo !!!! --- Davi diz dramaticamente brincando imitando cena de filme.

--- Deixa de ser bobo, cara. --- Ela cobre a boca para sorrir.

Davi abre um sorriso largo de orelha a orelha, achando divertida a situação e a forma como ela sorri. Ele então começa a tirar uma onda e começa a ser presunçoso, dizendo de forma confiante e espontânea.

--- Se eu deixar, você sente saudades.

--- Sinto mesmo, suas bobeiras me divertem --- Ela dá um soquinho no ombro dele, que coloca a mão no local fingindo dor --- Só não deixa isso subir pra cabeça.

Davi sorri e acena com a cabeça, concordando. Depois abre os braços se exibindo, de forma leve e piadista para dar contrates com a sua frase.

--- Tentarei me manter humilde.

Os dois finalmente chegam na escola, eles andam até o prédio no final do pátio e ficam sentados em uma mesa que fica na entrada, onde os alunos costumam lanchar no intervalo. É um hábito que possuem desde que entraram nesse colégio, sempre se reunem nesta mesa, já que é um lugar mais silencioso e não tem tantos alunos por lá. Sempre tem um ou outro de passagem, mas nada que seja irritante. Davi fica relaxado enquanto algo claramente incomoda Helena, que olha chateada e desvia o olhar, ela repete isso algumas vezes até que Davi nota.

--- O que foi?

--- Ahn? --- Ela diz sem entender. Depois que percebe que Davi notou, tenta disfarçar dando uma de desentendida --- Como assim?

--- Algo tá martelando na sua cabeça, me conta o que é.

Ela suspira chateada e desvia o olhar emburrada. A garota dá umas batidinhas na mesa e depois vira de volta encarando o rapaz. Helena finalmente começa a falar, mas diz com uma voz que mostra bem que está incomodada.

--- Não sei se é justo que eu te cobre isso.

--- Só desembucha logo.

A garota fica em silêncio alguns segundos, depois faz contato visual e olha com o olhar fixo e firme. O que era um mero incômodo escalou para raiva, Helena está claramente irritada com Davi.

--- Davi, porquê não me falou que ia brigar com o Mosca?

--- Não quis te preocupar e você tentaria impedir.

--- Não quis me preocupar? Imagina o que eu senti quando terceiros vieram me falar que você saiu com a cara toda zoada do ringue? --- Ela faz uma expressão séria, com a testa franzida e sobrancelhas arqueadas --- Imagina como eu fiquei sem saber seu estado, só ouvindo pessoas aleatórias falando que foi brutal. Pensei que confiasse mais em mim.

Davi trava alguns segundos, ele tenta começar a falar, mas para, ele percebeu que vacilou e que estava errado, não há como justificar um erro tão grande. O rapaz Fica pensativo mais alguns segundos e então começa a falar novamente, meio acanhado e tímido, porquê sabe que pisou na bola.

--- Eu confio em você. Só... eu não sei, eu não tava com a cabeça no lugar. Não pensei antes de agir.

--- Não faz isso de novo. Me preocupo com você. Sei que tinha que fazer o que fez, só queria que me contasse pra eu ajudar.

--- Era minha briga, você não podia ajudar.

--- Sei lá, pelo menos torcer. --- Helena tenta aliviar o clima.

O garoto abre um sorriso maroto e diz de forma leve, entrando na brincadeira também. Uma tentativa de diminuir a tensão que estava no ambiente.

--- Torcida organizada Davi FC?

Helena gargalha e o clima alivia muito, os dois se entreolham e sorriem. A garota encosta o ombro dela no dele e depois repousa a cabeça colada na dele.

--- Torcida organizada Davi FC --- Ela concorda.

--- Você me desculpa? --- Davi diz com a voz embargada --- Não quis te fazer sentir mal.

--- Eu te perdoou, bobão, mas se fizer de novo te dou uns cascudos. --- Helena soa mortalmente séria.

Ela se afasta dele e o encara nos olhos, com um olhar bem mais calmo e com mais ternura, mostrando que já haviam superado qualquer desavença que tiveram. Davi a encara e sorri, logo em seguida responde a "ameaça" que a garota fez.

--- Que medo.

--- É pra ter mesmo --- Ela faz força com o braço, tensionando o biceps --- olha o muque.

--- Ui, que musculenta --- Ele gargalha.

🥊

No intervalo das aulas, os dois voltam correndo para a mesa onde sempre ficam. Já é uma tradição não falada entre ambos. Helena está lanchando um sanduíche natural e um copo de suco, Davi está lanchando uma coxinha e um copo de coca cola. Um grande contraste nos hábitos que sempre acaba gerando discussões amigáveis, mas calorosas sobre o tema.

--- Cê fica comprando coisa nessa barraca ai da frente --- Ela diz séria --- Tu vai morrer, barraca toda duvidosa. Já vi o cara coçar o rego antes de mexer nos salgados lá.

--- Eca, Helena. Chega deu ânsia.

Davi finge vômito como piada, a garota fica indignada pelo amigo escutar o que ela disse, mas mesmo assim seguir comendo aquela atrocidade culinária.

--- E vai continuar comendo mesmo assim?

--- Claro, 3 reais um salgado bonzão. --- Davi constata como se fosse óbvia a decisão a se tomar.

--- De mão de rego!

Helena fica indignada e não consegue acreditar no que está ouvindo, é simplesmente nojento de mais na visão dela. Davi após escutar os argumentos da colega, usa o argumento que usa para quase tudo.

--- Isso é detalhe. O que os olhos não veem o coração não sente.

Os dois terminam de lanchar, Davi amassa as embalagens e faz um arremesso estilo basquete na lata do lixo. Ele erra e tem que levantar para buscar e jogar fora do jeito convencional. Helena ri da cara dele e ele senta na frente dela envergonhado.

--- Tô feliz que achou algo em comum com seu pai e está gostando de um esporte finalmente. --- Ela para e sussurra a segunda frase --- Me preocupava de você ficar obeso um dia.

--- Porque? Não sairia com um gordinho? --- Ele rebate brincando.

--- Se enxerga, sou muita areia pro seu caminhãozinho. --- Ela fala rindo.

Davi sorri e a encara sério depois de um tempo, como se tivesse notado algo inédito.

--- Quando eu for campeão, vamos estar nivelados.

--- Campeão? --- Helena sorri --- Isso eu gostaria de ver.

--- Aguarde e confie. Vou te dar uma medalha ainda.

--- Eu confio. --- Ela diz levando como uma piada a afirmação da medalha.

Davi abre a mochila e entrega algumas apostilas e marcadores de texto para Helena. Ela pega e fica olhando para ele, são de marcas muito boas. O garoto então começa a dizer meio sem jeito.

--- Toma, perto da academia tem uma papelaria e peguei pra você. Tenho que incentivar sua nerdice igual você incentiva meu boxe.

--- Tava tão fofo você me dar isso de presente. Ai cê foi lá e estragou tudo me chamando de nerd. --- Ela brinca.

--- Por mais que a gente brinque, eu sei que você se esforça muito. Quis mostrar que te apoio nesse seu objetivo.

Helena sorri com uma alegria genuína para Davi, aos olhos do garoto o rosto dela se ilumina e ela se torna a pessoa mais bonita do mundo. Ele não resiste e suas bochechas ficam vermelhas igual a um pimentão, por isso logo desvia o olhar tentando disfarçar. A garota nota e acha fofo, depois segue a conversa normalmente para irem para outro tema, não estava afim de torturar o pobre rapaz por mais tempo.

--- Muito obrigada. Farei bom uso. Quando for médica te atendo de graça.

--- Vou aceitar, só ando com a cara machucada.

--- Credo, garoto. Tu joga o clima lá em baixo sempre.

Os dois gargalham, mas param ao observar Mosca passar com o lado direito do rosto inchado, marcas da sua briga contra Gustavo. O rebelde passa por eles e abaixa a cabeça ao ver Davi, como um sinal de respeito, como se ignorar a sua presença fosse um sinal de "agora eu te deixo em paz". Ele segue seu caminho como uma sombra sem toda a energia que sempre teve, mas mesmo assim atrai todos os olhares para si, que cochicham e dão pequenas risadinhas ao verem ele. Gustavo é uma das pessoas no pátio e sorri ao notar sua presença, e logo coloca o pé para ele cair. O ex valentão cai com tudo em cima dos próprios cotovelos e as pessoas ao redor começam a rir, fazendo seu rosto esquentar de vergonha.

--- Caralho, parece que a Mosca esqueceu como faz pra voar --- Uma pessoa aleatória diz no meio das gargalhadas, e é acompanhada por mais e mais comentários sarcásticos e maldosos.

--- Acho que ele caiu tão bem durante a briga que acostumou a ficar no chão --- Gustavo diz calmamente, como se tivesse entediado.

Mosca ao levantar percebe que na queda acabou caindo em cima do próprio lanche e isso manchou sua camisa, de modo que a estampa e tudo mais está estragado em um nível quase irrecuperável, restando apenas um amálgamo de gordura e molho. O punk levanta visivelmente irritado e se vira para Gustavo com bastante intensidade, o boxeador apenas sorri e diz irônico.

--- Tem algo que quer falar, Mosquito? --- O boxeador diz desinteressado --- Sou todo ouvidos.

--- Tsk --- Mosca hesita, ele sente um medo terrível se instaurar em seu corpo e os olhares curiosoa dos outros só o repele ainda mais --- Não, não quero falar nada.

--- Então rala daqui, sua cara tá muito feia. Tá tirando meu apetite. --- Gustavo diz ríspido.

Mosca cerra os punhos e os aperta bem, mas logo os abre e se vira, ele sabe que não tem chances e isso o enche de frustração, além de toda a vergonha que está sentindo por ser alvo das piadas da pequena turba de estudantes no local. Depois disso ele sai andando passando a mão na blusa tentando a limpar inutilmente.

Helena abre um imenso sorriso ao ver a cena e se vira para Davi de modo totalmente satisfeita, ela fala com ele completamente animada e quase como se tivesse limpando a alma ao recitar as palavras.

--- Bem feito! O karma é uma vadia. --- Ela acena com a cabeça --- É poético ver o Mosca na situação que deixava os outros.

--- Não, Helena. Isso não é legal --- Davi diz sério --- Estar nessa situação é uma merda, nem ele merece isso.

🥊

Davi entra no banheiro para escovar os dentes após a refeição. Ele vê mosca na pia tentando limpar a blusa usando sabão e esfregando com ódio, é possível ver pela sua voz que ele está chorando ou acabou de chorar há muito pouco tempo.

--- Merda! MERDA! MORRA MANCHA, MORRA!!! --- O punk diz falando sozinho totalmente revoltado, igual a um louco --- Boxeador maldito, ele me paga.

O garoto vê a cena e acha muito estranho, mas tenta ignorar e vai para a pia do lado e coloca a pasta na escova. É estranho, Mosca antes era tão intimidador, mas agora Davi apenas o acha burro e bobo. Ele sente até um pouco de pena pela situação.

Mosca então finalmente nota a presença do rapaz e para de gritar pela morte dos germes e manchas, ficando envergonhado por estar pagando de bobo todo esse tempo. O punk tenta quebrar o silêncio constrangedor que está no ambiente, mas sua voz sai embargada e mais baixa do que de costume.

--- Bom dia, Davirg... Davi. --- Mosca conserta a frase rapidamente, mostrando estar nervoso --- Bom dia, Davi.

--- É... Bom dia, Mosca --- O garoto diz estranhando toda essa educação. Nem de longe é o que esperava do seu antigo algoz.

O rapaz então começa a escovar os dentes, mas atento ao homem do seu lado. Não é porque não sente mais medo que também vai abaixar a guarda, ele não o acha confiável. Mosca no entanto o ignora completamente, ele está focado na morte das bactérias e restos de comida na sua camisa.

--- Porra! MORRA MICRÓBIO DO CARALHO --- Ele esfrega a blusa com muita força, formando bolhas, mas nada da mancha diminuir --- BACTÉRIA FILHA DA PUTA.

Só que de nada adianta, a mancha ainda continua lá, maior ainda diga-se de passagem. Esfregar daquela forma só fez espalhar mais pelo tecido toda aquela gororoba. Mosca então suspira frustrado, ele sente que não há mais nada que possa ser feito e que sua blusa está arruinada.

--- Minha blusa favorita, porra --- Ele sussurra com um tom de voz triste, completamente murcho e apático --- levei um tempão para customizar.

--- Deixa de molho na Qboa e depois esfrega com sabão em pó e aquelas escovinhas de roupa --- Davi se intromete sem perceber, respondendo no automático.

--- Ahn? --- Mosca vira para ele curioso.

Davi fica envergonhado e sem jeito ao receber atenção, ele acena com a mão em negação. Sem querer chamar mais atenção do que já havia feito.

--- Bem, é só uma dica de limpeza. Funcionou pra mim.

--- Como sabe disso?

--- Bom, é que você já jogou comida em mim. Usei essa tática pra limpar minha camisa.

Mosca toma um choque ao ouvir isso e por mais incrível que pareça, o ex valentão agora demonstra uma espécie de arrependimento e vergonha dos atos que já fez.

--- Ah... --- Mosca fica sem jeito e incomodado, como uma criança pega fazendo besteira --- Entendi, vou tentar quando chegar em casa.

Davi guarda a escova de dentes em uma capinha e se vira para ir embora. Mosca o interrompe falando algo, o rapaz para e se vira para o antigo algoz que está tímido e envergonhado. O punk hesita um pouco e depois infla o peito puxando coragem, para finalmente voltar a falar.

--- Ei, Davi. --- Ele diz sério e com olhar de arrependimento.

--- Ah, oi --- Davi fica atento.

--- É... --- Mosca parece querer dizer algo, mas hesita, logo em seguida muda de assunto tapeando falando sobre outra coisa --- Isso funciona mesmo?

--- Pode apostar que sim --- Davi sente que ele quer dizer algo mais, então para de falar e dá uma deixa para que ele prossiga.

O corpo de Mosca treme e ele fica suando, ele tenta falar o que quer, mas simplesmente não sai. Ele sente o peso do arrependimento por todas as coisas que já havia feito contra o rapaz. O punk se sente um verme terrível e a pior pessoa do planeta Terra, mas ainda não tem a coragem o suficiente para pedir desculpas, então decide só encerrar o assunto.

--- Entendi, então. Vou tentar em casa e se der certo eu te aviso.

Davi concorda com a cabeça e sai do banheiro. Mosca fica se olhando no espelho, ele encosta a testa e suspira, não gostando do que vê no reflexo. O punk desvia o olhar para não ver a própria imagem, com nojo de si.

--- Porra... eu sou um babaca.

🥊

--- Pera ai, repete, Davi --- Gustavo diz incrédulo, como se tivesse ouvido uma piada de mau gosto --- Eu não acredito no que eu tô ouvindo.

--- Você poderia deixar o Mosca em paz? Tipo, sem zoar ou fazer coisas ruins com ele. Deixa ele na dele.

O cabeludo arqueia a sobrancelha e fica desconfiado, como pelo menos 2 pés atrás em toda essa situação. Para acabar com suas terríveis suspeitas, ele decide interrogar Davi sobre o que está desconfiando.

--- Porque? Ele te obrigou a pedir isso ou algo assim?

--- Quê? Claro que não.

Gustavo coloca a mão na testa do rapaz para ver se ele está com febre, notando que ele está aparentemente saudável. O cabeludo levanta uma sombrancelha e olha para Davi como se tivesse perdido alguma informação em toda a situação.

--- O cara ficou semanas te humilhando e batendo. Só tô dando uma lição para ele entender como tava se comportando. Tipo provar do próprio veneno.

--- Eu entendo isso, mas poderia parar por favor? --- Davi diz sério e firme.

--- Porquê? --- Gustavo diz sem entender, deixando transparecer toda a dúvida que está sentindo.

--- É simples, eu já passei por isso e sei como é ruim, sei como faz se sentir um lixo humano. Então não quero que ninguém passe por isso, nem mesmo ele.

Gustavo fica quieto sem resposta, depois sorri e acena com a cabeça. Ele olha para Davi e mostra uma expressão de respeito, como se o rapaz tivesse sido superior moralmente.

--- Ok, como me pediu irei parar.

--- Muito obrigado, Gustavo.

--- Não é nada de mais. Relaxa. E eu também não gosto de fazer essas coisas mesmo, é coisa de babaca.

Davi vira para ir embora, ele anda alguns passos e escuta a voz do boxeador de longe, como um pequeno lembrete.

--- Você é uma boa pessoa. Uma melhor do que eu.

--- Deixa disso, nem é pra tanto --- Davi diz olhando para trás sorrindo.

--- É pra tanto, sim. --- Gustavo diz satisfeito.

🥊

No dia seguinte, Davi estava na porta da escola esperando Helena que estava atrasada. Mosca chega com a camisa branquinha e limpa, como se fosse recém saída da loja. O punk anda até Davi.

--- Ei, a mancha saiu depois que fiz o que me disse. Deu super certo.

--- Isso é muito bom. Fico feliz em ajudar.

Davi está completamente relaxado, Mosca está totalmente tenso em estar perto dele. Os papéis se inverteram, o algoz agora se sentia inferior a antiga vítima.

--- Ei boxeador, posso falar algo contigo ou vai me bater?

--- Te bater? Desencana disso. Não gosto dessas coisas.

Mosca fica sem jeito e diz timidamente, como se tivesse sido um esforço terrível deixar que as palavras saíssem de sua boca.

--- Obrigado.

--- Pela camisa? Relaxa, não foi nada de mais.

--- Não --- O punk hesita e faz uma pequena pausa --- o Gustavo me contou o que você pediu a ele. Obrigado, de verdade.

--- Não precisa agradecer. Que tipo de pessoa ruim fica feliz em ver alguém sofrer? Fiz o que qualquer um faria.

Mosca sente a alfinetada, mas prefere ignorar por não ter nenhuma resposta ou piadinha para rebater. O punk então segura os dois ombros de Davi, mostrando gratidão.

--- Tô te devendo uma.

--- Não precisa. Estarmos de boa já é o suficiente pra mim.

--- Não, faço questão. Eu quero te ajudar de alguma forma.

--- Como?

--- Deixa eu pensar...

Mosca fica em silêncio pensando, Davi quase consegue ver fumaça saindo das orelhas do punk e seus dois neurônios funcionando ao máximo. O tico e teco de Mosca finalmente conseguem ter uma ideia duvidosa e ele volta a falar.

--- Serei seu guarda costas. --- Ele diz convicto.

--- Eu não preciso de um. E sem ofensas, não acho que você seja bom nisso.

--- Isso não importa, Davi. Eu sei que agora você é do boxe e me dá uma surra --- Mosca prossegue como se tivesse sendo genial --- Os lutadores profissionais também tem guarda costas. Cê acha que o segurança do Floyd Mayweather ganha dele na porrada? Claro que não.

Davi levanta uma sombrancelha e segue quieto escutando essa bobagem, que insiste em continuar.

--- E tipo, tem a questão do visual. Antes de ser profissional, você tem que parecer um. Se te verem com segurança, vão ver logo de cara que você sabe o que tá fazendo.

--- Ok, Pode ser --- Davi interrompe e concorda para parar de ouvir essa asneira --- Pode ser meu guarda costas ou sei lá o quê. Só para de falar um pouco.

--- Não vai se arrepender, cara. Só que sem a parte gay.

Davi fica olhando sem entender mais nada, se perdeu na conversa há tempos. Ele tem medo da resposta, mas sua curiosidade o fez querer perguntar.

--- Parte gay?

--- É, que nem aquele filme da Britney Houston. Que ela pega o guarda costas dela. O nosso não tem isso não viu?

--- Não foi a Whitney Houston que fez esse filme? --- Davi fica cada vez mais confuso.

--- Tanto faz, dá no mesmo. Sou o Kevin Costner e você a tal da Whitney Houston, mas sem a parte gay.

--- Ok --- Davi concorda só para ele calar a boca, o garoto sente que seu ouvido tá sendo feito de penico, Mosca só fala merda --- Ok, vai ser assim mesmo.

Mosca sorri e abraça Davi dando uma gravata nele, depois sai andando para dentro da escola, o arrastando contra sua vontade.

--- E-espera --- Davi diz sendo arrastado --- Tô esperando a Helena.

--- Ela acha a gente depois.

Os dois vão para dentro da escola, Mosca sorrindo orgulhoso pelo novo "emprego" e Davi arrependido pensando onde se meteu, já que agora terá que aturar esse mala sem alça durante todo o dia

🥊

--- Você não precisa me acompanhar aqui, Mosca.

--- Não, chefe, meus serviços são 24 horas por dia, 7 dias na semana por 30 dias no mês. 31 quando é mês de 31 e 27 quando é fevereiro.

--- Fevereiro tem 28 dias, às vezes 29 --- Davi rebate.

--- Que seja. Podia ter 50 que eu ia tá lá.

Os dois seguem andando pelas ruas lado a lado, Davi do lado da calçada e o punk do lado da rua. Eles seguem em silêncio por alguns minutos, mas Davi só quer se livrar logo dessa maluquice.

--- Não precisa ir lá comigo, é seguro. Não tem nada de perigoso lá.

--- Nada disso, vou contigo. Caso você se machuque.

--- E se eu me machucar você vai fazer o quê? Não sabe nada de primeiro socorros.

--- Eu cometo seppuku.

Davi olha para ele achando bizarro e deixa o silêncio como resposta, mas não aguenta e precisa rebater, já que achou um absurdo completo aquela frase.

--- Tamo na Bahia, cara.

--- E? --- Mosca rebate.

--- Único Harakiri que cê vai fazer é meter o dedo no cu e parar de me encher o saco, seu porra.

--- Vai se foder, chefe. --- O punk sorri cínico --- Com todo respeito.

Os dois riem e seguem caminho, Davi não quer admitir, mas até está achando essa bobagem engraçada. Eles chegam na academia arte porrada, os dois jovens entram e despertam olhares de todos. Rodrigo os observa e, curioso como é, não consegue segurar a língua.

--- Quem é esse cara?

--- Eu sou eu, ué. Sou o guarda costas dele --- Mosca diz coçando a orelha --- Quem é você?

--- Esse é o Mosca, Rodrigo. --- Davi diz contrariado.

Após ouvir isso que Rodrigo fica mesmo incrédulo, dá para ver em seu rosto que ele não consegue entender a situação, é simplesmente bizarrice de mais para digerir de uma só vez.

--- Pera lá, eu entendi bem? Você trouxe o cara que fazia bullying com você pra cá? E ele é seu... guarda costas? --- Rodrigo levanta uma sobrancelha --- E caralho, você tem guarda costas??????

--- Longa história curta --- Davi rebate --- Mas a resposta é sim para as três perguntas.

--- Pois é, só fique ciente que estou aqui para proteger meu cliente. --- Mosca coloca a mão direita em cima do próprio peito --- Com minha vida se necessário.

Davi cora por tamanha falta de noção e sente vergonha alheia, logo se metendo para acabar aquele diálogo o mais rápido possível.

--- Não vai ser necessário, Mosca.

--- Você não tem como saber disso, Davi. --- Mosca diz sério e intenso.

Rodrigo gira a cabeça em negação, mas depois simplesmente ri e dá de ombros. A academia tem muito moleque estranho, bizarro e engraçado, Rodrigo julga não ser nada de mais ter que lidar com mais um.

--- Ok, cada louco com sua mania. Quem sou eu pra julgar? Bem vindo, Mosca, eu acho.

--- Obrigado pela recepção calorosa, mas não vim treinar. Apanhar na cara é coisa de maluco. Tô aqui só pelos interesses do meu cliente. Tenho que gerir a carreira dele.

--- Ei, não força também. Só é guarda costas, não combinamos nada sobre você ser empresário também --- Davi se intromete. --- Não seja aproveitador.

--- Ok, chefe --- Mosca bate continência.

--- Eu não sou seu chefe, cara. --- Davi coloca a mão no rosto envergonhado.

Rodrigo cai na gargalhada e Davi coloca a mão na testa como quem estivesse escutando barbáries, Gustavo observa de longe, mas prefere não se envolver, continuando afastado do pequeno grupo. Antônio chega e se aproxima dos rapazes.

--- Novato?

--- Não, mestre --- Rodrigo diz tampando a boca e rindo --- É o guarda costas do Davi.

--- Ele pode ser o diabo, não atrapalhando minha aula, ok.

--- Vou ficar quietinho aqui. Fazendo coisas de guarda costas. --- Mosca diz sério colocando um óculos escuro imenso, ficando desproporcional com o tamanho de seu rosto.

Antônio olha com um olhar de decepção e desaprovação, ele balança a cabeça. Davi vê a cena e fica murcho de vergonha.

--- Essa juventude de hoje é esquisita. Enfim, vamos começar a aula, rapazes. Hoje vai ser sparring.

--- O que é isso? --- Mosca pergunta.

--- Vamos lutar como forma de treino. 3 rounds de porrada --- Rodrigo diz animado e empolgado, é seu tipo de treino favorito.

Mosca franze a testa e sua linguagem corporal é toda de negação, ele anda até mestre Antônio e começa a falar, o velho só o ignora.

--- Meu cliente não vai. Muito perigoso, meu trabalho é manter ele vivo.

--- Mosca, na boa, cala a boca --- Davi diz puto, saindo do sério.

Antônio então finalmente junta as peças e entende a identidade de Mosca. O velho não resiste e precisa comentar sobre.

--- É o muriçoca?

--- Sou o Mosca.

--- Dá no mesmo, infeliz. E paga 20 flexões por mexer com o nosso Davizinho. — Davi cora com o apelido vergonhoso, mas ao mesmo tempo sente satisfação pelo carinho.

--- Eu não, não sou seu aluno. --- Mosca diz sem interesse. --- Não preciso pagar nada.

--- Agora são 50.

O idoso olha bravo para ele, sua aura é tão intimidante e aterrorizante que o punk só desce e paga as flexões sem falar nada, obedecendo sem toda a pompa e marra que sempre tem. Depois que termina, ele levanta de novo e se vira para Davi.

--- Nova regra do nosso acordo. É guarda costas sem a parte gay e sem eu te proteger desse cara --- ele aponta para Antônio --- Esse cara dá medo.

--- Ok, posso aceitar. É justo. --- Davi se entrega a gargalhada.

🥊

Gustavo e Rodrigo colocam luvas, capacete e coquilha, os dois atletas depois de preparados sobem no ringue e iniciam a luta treino. Antônio fica na beirada do ringue assistindo sério e dando instruções aos dois sobre o que estão errando e como usar os erros do oponente contra ele. Davi fica maravilhado com as técnicas e desempenho dos rapazes mais experientes, então durante o intervalo entre os rounds, ele vai até Antônio.

--- Mestre, com quem eu vou lutar?

--- Com ninguém, ainda não está pronto. Precisa aprender todo o básico primeiro.

--- Eu aprendo o que o senhor quiser. É só me dizer.

Antônio solta um soco reto usando a mão esquerda, é tão veloz que Davi não o vê, se dando conta do movimento apenas quando o idoso para a mão a um centímetro de seu rosto. As pernas do rapaz tremem e ele olha impressionado.

--- O-o que foi isso?

--- Foi só um jab. Não precisa se mijar de medo por isso.

--- Uau.

--- É sua primeira lição de boxe. Aprenda o jab e não me encha o saco até lá.

O mestre pendura uma folha de papel e solta um jab, o papel fica com um furo no meio. Ele amassa a folha e joga fora, logo em seguida pendura outra.

--- Quando conseguir furar a folha usando seu jab, irei te ensinar o próximo golpe.

Antônio volta sua atenção para o sparring e ignora completamente Davi, que começa a soltar os jabs. A primeira vista parece uma missão fácil, mas por o papel estar preso apenas na parte de cima, quando o soco encosta nele, ele é lançado para trás e não deforma, voltando a mesma posição.

Davi passa as duas horas da aula soltando jabs, mas nenhum deles fura o papel. Até que Antônio intervem.

--- Não tem casa não? Chispa, amanhã tem mais.

--- Só mais um pouco, sinto que tô perto.

--- Vaza logo daqui, ô seu sem família. Quero ir pra minha casa.

Antônio diz com uma vassoura na mão, para varrer a academia após fechar, Mosca vê a cena e  interpreta mal por conta da má impressão que teve do velho, por isso ele puxa Davi pelo braço.

--- Corre, chefe. O velhote pirou!!!

--- Velho é o mundo! Eu só tenho 52 anos! --- Antônio se irrita, deixando uma veia saltar na testa.

--- Só se for 52 anos antes de Cristo. --- O punk rebate de imediato.

Mosca corre para fora da academia e os dois rapazes vão embora gargalhando fugindo do treinador, enquanto Antônio fica na porta olhando. Ele se alegra por Davi resolver seu problema na escola e por ter feito um novo amigo. O velho quase sorri, frisando bem o quase, apenas quase, porquê logo ele se dá conta do último comentário de Mosca e fecha a cara irritado.

--- Amanhã ele vai pagar cem. Não, mil.

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Notas do autor:

Eae galera, mais uma semana e mais um capítulo. Gostaram? E agora a pergunta que não quer calar: O Mosca tem redenção? Vocês que vão dizer se ele pode ser um cara legal ou não kskskks.

Enfim, esse foi o capítulo da semana. Te vejo próxima sexta-feira? Até mais, coloquem suas luvas e vamos para o próximo round!!!!

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