Round 5: O velho religioso
Após praticamente passar o dia contando os segundos e as horas, Davi finalmente vai para a academia de boxe no horário que foi mandado. A academia fica a cerca de 20 minutos a pé de distância da sua casa, após chegar no local, visualiza um galpão com as paredes amarelas. No topo da entrada tem uma placa escrita "Academia Arte Porrada" e algumas fotos de lutadores do lado, Davi não conhece ninguém na foto, mas acaba achando que são alunos da academia, porquê no canto inferior direito tem uma foto de Gustavo vestido de lutador acertando um soco em um oponente.
O rapaz suspirou e finalmente entra no local, sua primeira visão são alguns rapazes amarrando bandagens nas mãos. No meio da academia tem um grande ringue, no fundo da academia tem seis sacos de pancadas e um teto-solo, a frente da academia é um grande espaço vazio. Para quem não conhece, saco de pancada é um saco de couro recheado de retalhos de roupa, são usados para treinar força e resistência ao aplicar socos, teto-solo é um pequeno saco de pancada circular, preso por molas em cima e em baixo, quando você acerta golpes nele, ele voa para trás e volta na sua direção, são usados para treinar velocidade e defesas.
O piso da academia é um chão de concreto sem detalhes, enquanto as paredes internas são brancas e em de seus cantos há um espelho, onde um garoto fica se observando soltar socos, polindo e corrigindo todo e qualquer erro técnico que consegue notar. O som das rapazes pulando corda faz uma sinfonia de esforço que impressiona Davi, que só consegue pensar em como nunca viu tanta gente forte assim junta antes, isso o deixa um pouco nervoso e apreensivo.
Davi anda em direção a um senhor de cabelos brancos que está sentado no ringue, o homem é gordo e carrega no peito um medalhão de São Jorge, o Santo protetor dos guerreiros. O homem o observa desinteressado, mas fica o encarando para ver o que o pirralho quer. O rapaz tímido fica parado pensando no que dizer, nada vem a sua mente então resolve improvisar.
--- Eu gostaria de aprender boxe.
--- Boa noite pra você também --- O velho retruca. --- Vamos recomeçar, mais educado dessa vez.
Davi se envergonha por tamanha gafe, ele ajeita a gola do sueter e recomeça, a fim de resolver o mal entendido.
--- Boa noite, gostaria de treinar com o senhor --- Davi diz sem jeito.
--- Melhorou, mas ainda tá ruim. Vai lá fora, pede licença pra entrar, dá boa noite, se apresenta e pede para treinar --- O idoso diz com cara de irritado. --- E rapidinho, viu?
Davi fica envergonhado, mas atende rapidamente o pedido. Ele sai da academia com todos o olhando e rindo, o rapaz então vai para a porta. Ele suspira pesado, mas tenta ignorar toda a zombaria e só pensa em seu objetivo primário: Conseguir a vaga na academia. O rapaz então segue as ordens do idoso ranzinza.
--- Licença, eu posso entrar?
--- Agora você pode. --- O velho rebate.
O garoto então entra na academia e se dirige ao senhor sentado no ringue, ele o olha com olhar de tensão, mas o velho continua a encarar com cara de tédio, como se não tivesse o menor interesse em seja lá o que Davi tivesse a dizer, como se já soubesse cada palavra que iria sair de sua boca.
--- Boa noite, me chamo Davi. Posso treinar boxe com o senhor?
--- Me chamo Antônio, e você não pode.
--- Mas eu fiz tudo como o senhor pediu
Antônio franze a testa e cruza os braços, atestando sua indignação com a reclamação do garoto.
--- E sua resposta foi não --- O velho fica visivelmente irritado --- Que geraçãozinha essa de vocês, viu? Não sabem ouvir um não, tem tudo na mão. Vocês são mimados.
Um dos garotos arrumando os materiais para treinar se aproxima dos dois, ele é negro e tem o cabelo trançado, seu corpo é esguio e ele é alto para o peso que possui, ele chega trajando uma bota apropriada para treinar boxe de cor rosa e um calção da everlast branco com alguns detalhes no canto, já sua blusa é uma camiseta branca simples, sem detalhes.
--- Coé mestrão, não acha que tá pegando muito pesado? --- Ele diz descontraído tentando amenizar a situação.
--- Eu não te perguntei nada, Rodrigo. Pague 10 flexões.
O garoto começa a pagar dez flexões por ter se metido sem ser chamado, após fazer as repetições do exercício, o rapaz levanta novamente, com suor no rosto e os braços um pouco mais pesados que antes, mas por incrível que pareça, Rodrigo segue intercedendo pelo novato.
--- Mas mestrão, o cara não fez nada. Porquê tá pegando tanto no pé dele?
--- Olha a cara dele, ele brigou na rua, certeza que quer aprender boxe como vingança. Não treino brigões. E pague mais 10 por insistir.
Rodrigo volta ao chão e paga mais dez flexões, ele levanta suado e fica olhando pensando em algo para argumentar, mas sua mente não encontra nada e então ele se reduz ao silêncio, para não atrapalhar ainda mais. Davi toma coragem e pergunta algo que pairou sua mente, para escancarar o quanto não fazia sentido a lógica que o velho treinador está usando.
--- Mas você treina o Gustavo, e ele briga muito.
--- Esse ai está melhorando aos poucos, acredite. Ele seria mais problema ainda se ficasse nas ruas sem ter o que fazer. E dessa vez, ele pelo menos brigou por um motivo nobre.
--- Então já sabe sobre o que aconteceu? --- Davi diz envergonhado por saberem da história com o Mosca.
--- O Gustavo me contou sobre e disse que você viria aqui.
Antônio então fica pensativo por uns instantes, ele olha para Davi e Rodrigo. O velho bate os pés um pouco e depois finalmente continua a falar, após um longo e torturante silêncio que para os dois garotos demorou o equivalente a anos, mesmo que tenham sido apenas segundos, horríveis, mas só segundos.
--- Olha aqui, você quer treinar pra bater no tal muriçoca?
--- Muriçoca? --- Davi responde confuso --- Tá falando do Mosca?
--- Mosca, Muriçoca, pernilongo, Mosquito. --- Antônio perde a paciência --- Dá no mesmo.
Rodrigo segura o riso enquanto vê seu mestre perder um pouco da compostura, já Davi fecha a cara e fica com um semblante sério e responde de imediato, sem titubear ou enrolar.
---- Eu odeio o cara, mas não quero treinar pra brigar com ele, o boxe é muito bonito pra isso. Eu vi muitas lutas na televisão, todos confiantes, gladiadores dando a saúde e a vida por algo que acreditam, algo que só eles veem lá em cima. --- Davi se empolga e mostra estar visivelmente animado ---Vi eles ganhando os cinturões, alguns agem como se fosse qualquer coisa e outros como se fosse a descoberta do átomo. Eu quero entender oq eles sentem nessa hora, eu quero saber como é ser um campeão, pelo menos uma vez na vida.
O velho fica claramente impaciente e interrompe Davi, cortando o discurso que aparentava que duraria dias se ninguém intervisse.
--- Só perguntei se iria brigar, não precisava desse discurso todo. Se eu topar te treinar você cala a boca?
--- Claro! --- Davi sorri
Rodrigo vê o mestre claramente irritado e sem saco para continuar a conversa, então o rapaz gargalha vendo a cena. O mestre vira para ele e aponta para o chão, Rodrigo já sabe o que signica e isso tira toda a sua alegria, porém ele não tem o que fazer.
--- Mais 10 flexões --- Antônio diz fechando a cara que fica com algumas rugas.
--- Mas mestrão... --- Rodrigo reclama.
--- 20 então.
Enquanto Rodrigo faz os exercícios, a atenção de Antônio volta para Davi que o encara concentrado. O idoso fala em um tom mortalmente sério, com um ar de desconfiança e teste, deixando claro para o novato que ele não é bobo e muito menos permissivo além do limite.
--- Vou ficar de olho em você, se entrar em confusão e usar o boxe para coisa errada, eu te expulso das aulas.
--- Ok, não precisa se preocupar com isso, mestre.
--- Você tem permissão pra se defender, só não inicie as brigas.
Davi fica confuso e o homem nota, então faz sinal para o garoto desembuchar o que estava pensando. Davi em primeiro momento hesita, mas logo solta o que estava se passando em sua mente.
--- Mas você não é religioso? Achei que iria pregar a não violência.
--- Não é pecado se defender ou lutar pelo que é certo. Bendito é o Senhor, minha rocha, que adestra minhas mãos para a batalha e meus dedos para a luta.
--- De onde o senhor tirou essa frase? É poética.
--- Da Bíblia. Salmos 144. Agora pare de enrolar e vai se preparar. Vamos testar você hoje.
🥊
--- Relaxa, o velhote é gente boa. Lá no fundo ele é gentil --- Rodrigo diz amarrando a bandagem na mão de Davi
--- Ficou apertada demais?
O novato vê a bandagem preta e velha envolta em seus punhos, ela fede um pouco por sem bem antiga e por ser usada por vários dos alunos que ainda não possuem material. Davi abre e fecha as mãos admirando como ficou, ele fica satisfeito e até se achando um pouco como um lutador, só por se vestir minimamente parecido com um, é uma sensação de invencibilidade, mesmo que nem de longe seja verdade.
--- Não, está bom. Coube certinho.
--- Que bom, porque amanhã você faz sozinho. --- Rodrigo dá uma bronca --- Se não aprendeu agora, se vire.
--- Que isso cara que frieza.
--- Deixe de frescura
Os dois se olham e gargalham, só que a risada de Davi dura muito pouco e Rodrigo logo nota a inquietação, já que o novato fica encarando o chão e suas pernas tremem involuntariamente, como se algo o pertubasse em seu íntimo.
--- Tá nervoso com a aula?
--- Um pouco, mas não é isso. O mestre disse que iria me testar, sabe me dizer o que é?
--- Nada de mais, ele só vai observar se você faz corpo mole. O velhote odeia preguiçosos.
Gustavo chega atrasado usando um sapato velho, bermuda preta e camiseta branca, o cabeludo está com o cabelo preso em um coque, isso dá um ar de muito mais elegância para ele, já que no dia a dia sempre anda com o cabelo bagunçado e desgranhado, dando a impressão de desleixo. Gustavo assim que entra na academia leva um tapa na nuca dado por Antônio que o observa com olhar de repreensão.
--- Atrasado de novo? --- O treinador diz frustrado.
--- Aiii desgraça, minha nuca, vovô --- Gustavo diz colocando a mão na nuca e esfregando tentando se livrar da dor --- Quase me mata, sua mão é pesada. E BOA NOITE PRA VOCÊ TAMBÉM, VELHO BIRUTA DO CARALHO.
Rodrigo ri baixinho ao notar a fúria do professor, podendo até mesmo notar uma veia saltar e pulsar no topo de sua testa. O velho balança a cabeça em negação e logo dispara palavras como uma metralhadora.
--- Ainda por cima chega xingando na academia. E vovô é o escambal!
--- Não precisa nem falar, eu pago 10. --- Gustavo interrompe Antônio.
Gustavo começa a pagar flexões, Antônio se vira para Rodrigo e Davi, os dois se entreolham tensos, fingindo que não riram por nem sequer um segundo, uma mentira deslavada. O mestre então dispara uma pergunta perigosa.
--- O Gustavo me chamou de velho, eu aparento ter quantos anos?
--- Uns 65 sólidos --- Rodrigo diz confiante.
--- 58 no máximo. --- Davi diz convicto.
Os dois rapazes não pensaram nessas idades, mas disseram por medo, o pensamento real dos dois era de que Antônio tinha no mínimo 70, a aparência do velho não negava, os anos não o fizeram muito bem.
--- Ahn???? Vocês são loucos? Eu só tenho 52. — Davi e Rodrigo fazem cara de choque ao ouvirem Antonio dizer isso.
--- Cacete, você tá acabado --- Gustavo dispara de longe.
Os três rapazes até tentam se controlar, mas acabam se rendendo as gargalhadas. O primeiro a rir foi Rodrigo e isso contagia os outros dois que acabam o acompanhando, em um riso frenético, truncado e interminável, isso só alimenta ainda mais a fúria de Antônio que a essa altura já está indignado.
--- Já que os três são tão engraçadinhos --- Antônio está tão bravo que a veia da sua testa pulsa, ele faz uma pausa dramática e então prossegue --- O TREINO DE VOCÊS HOJE É CORRIDA.
Rodrigo e Gustavo ficam mortalmente desanimados e tristes ao ouvirem isso, Davi ainda não entende o motivo, mas se duas pessoas mais experientes que ele tiveram essa reação, então coisa boa não deve ser.
--- Desculpa, seu Antônio --- Gustavo diz cabisbaixo.
--- Tá todo respeitoso agora hein? --- Antônio sorri vingativo --- Mas é tarde demais, os três vão correr 10km.
--- Mas eu e o Davi não dissemos nada --- Rodrigo rebate.
--- Mas pensaram --- Gustavo responde --- E ainda riram, pra caralho inclusive.
Rodrigo se vira para Gustavo, incrédulo com tamanha audácia do seu companheiro de treino.
--- De que lado você tá, seu desgraçado?
--- Do que eu não me fodo sozinho.
Gustavo e Rodrigo se encaram em um clima de duelo de faroeste, Antônio encara os dois bravo, um clima totalmente de animosidade. Davi observa a cena e fica tenso, sem saber o que fazer. Rodrigo vira para Davi em busca de respostas.
--- Diz algo!
--- E-Eu? --- Davi responde balançando as mãos em negação.
--- Ah, foda-se. Se você falasse algo só iria piorar. Vamo logo --- Rodrigo diz em um tom de derrota.
--- Isso aí, espírito de equipe e união --- Gustavo sorri irônico.
--- Vai se foder, seu maníaco --- Rodrigo diz bravo.
Os três então se reúnem, se preparam e partem para o treino do dia, uma excruciante e longa corrida pelas ruas ao redor da academia, o inferno pessoal que cada um irá viver nos próximos instantes.
🥊
Assim que saem para correr na rua, Davi nota que o clima muda completamente. Tanto Gustavo quanto Rodrigo ficaram totalmente diferentes, ambos sérios e focados em um nível que o rapaz nunca havia visto antes. Os dois realmente levam o treinamento como uma espécie de trabalho. Eles seguem em silêncio pelo primeiro quilômetro, os dois veteranos não aparentam cansaço, enquanto Davi já está suado e demonstra começar a respirar mais pesado.
O rapaz então louco de curiosidade, decide saber mais sobre os garotos que o acompanham. Saber sobre seus novos colegas é importante, ainda mais quando não se está acostumado a ter muitos amigos, além de que a experiência deles pode ser útil e dar informações que o ajude a melhorar no boxe, ou a pelo menos dobrar o Antônio e conseguir que ele seja menos ranzinza, pelo menos um pouco.
--- Porquê vocês fazem boxe? --- Davi diz olhando para os dois --- Tipo, com tanta opção de esportes ou outras atividades, porquê o boxe?
Gustavo apenas ignora e segue correndo em silêncio, Rodrigo entende que o garoto só está tentando quebrar o gelo e se aproximar, então tem piedade e responde a pergunta. Ele é sempre muito gente com esse tipo de coisas.
--- Porquê eu não sei dançar e nem jogar bola. --- Rodrigo diz tentando ser engraçado --- Sobrou levar murro na cara.
--- Ahn? Só por isso? --- Davi solta uma pequena gargalhada.
--- Não né, bobão. É uma frase do filme do Rocky Balboa. --- Rodrigo limpa o suor do rosto --- Vamos assistir um dia, inclusive. É o melhor filme da história.
Davi sorri com o convite e fica animado por estar fazendo finalmente novas amizades depois de tanto tempo. É muito legal andar com a Helena, mas ele sentia falta de ter mais pessoas com quem possa passar tempo ou fazer outras coisas
--- Ok! --- Davi sorri animado. --- E você, Gustavo? Porquê o boxe?
--- Porque é um caminho pra mudar de vida.
Davi fica confuso com a resposta seca do cabeludo e fica em silêncio esperando que ele desenvolva o pensamento, mas não acontece. Gustavo simplesmente volta a correr quieto, Davi pego pela curiosidade então novamente volta a perguntar.
--- Como assim mudar de vida?
--- Isso não é da sua conta. --- Gustavo rebate ríspido.
--- E você, Davi? Porque o boxe? --- Rodrigo se mete na conversa para fugir do tema e aliviar a tensão que estava começando.
O rapaz nem precisa pensar para dar a resposta, não depois daquele dia vendo lutas com seu pai e tendo toda aquela inspiração nos vídeos.
--- Eu quero ser um campeão.
Os dois então caem na gargalhada e riem como se tivessem ouvido a maior piada do mundo, Davi fica confuso do motivo disso ocorrer, no início fica envergonhado achando disse alguma bobagem, mas depois logo fica furioso por se sentir subestimado, por sentir que acham suas capacidades e convicções fracas.
--- Acham que eu não consigo?
--- Não é questão de conseguir, baixinho. É de merecer. --- Rodrigo diz em um tom extremamente sério, bem diferente do seu normal --- Não fale como se fosse simples ou fácil assim.
Gustavo olha para Davi com um olhar mortalmente irritado, como se o rapaz tivesse pisado em seus calos ou comido o último pedaço de algo que ele guardou.
--- Todo boxeador quer ser campeão, mas só um pode ser. Pra isso você tem que ser o que mais treina. Ser campeão é uma escolha diária, o campeão já é decidido antes do campeonato, a luta é só pra ele ir buscar a medalha dele.
--- Como assim? --- O rapaz perguntou com olhar de quem perdeu algo no meio das informações.
--- É uma escolha feita todo dia, com constância e sem falhas. Comer certo, dormir o tempo correto, treinar pesado, evitar festas, garotas. É muito difícil ser um campeão, não fale como se fosse qualquer coisa. É ser muito iludido.
A ficha então finalmente cai, Davi percebe que todo praticante que compete também almeja ser campeão. Só na academia de Antônio tem 40 garotos e ainda há muitos mais em outras academias da cidade, do estado, do país, do mundo... o rapaz vê que a concorrência é grande e que tem que se esforçar muito para atingir seu objetivo. O que ele julgava ser um caminho em linha reta, na verdade é uma imensa montanha, onde só pode ter uma pessoa no topo. A pior parte é que ele ainda começou essa corrida atrasado, a maioria começa a competir no boxe com 12 anos de idade, Davi já havia atingido 16 e nunca pisou em um ringue antes, seus oponentes terão muito mais experiência que ele e serão lutas difíceis.
Os três seguem o resto do trajeto correndo em silêncio, Gustavo e Rodrigo por estarem focados, Davi por estar pensativo e se sentindo inseguro com a epifania que acabara de ter. Assim que eles chegam nos 5 quilômetros percorridos, os veteranos estão tranquilos e seguem correndo, já o novato está com as pernas pesadas e o coração acelerado. Todo o seu corpo dói, parar começa a parecer uma saída interessante, pois a cada passo o jovem só sente mais e mais dor. Pensar que só havia chegado até a metade do caminho e que ainda faltava passar por mais 5 dolorosos quilômetros, cansava a mente de Davi que só conseguia pensar em parar de correr e desistir.
E eventualmente é o que ele faz, Davi para de correr e agacha com as mãos nos joelhos. O jovem está extremamente ofegante e suas roupas estão grudadas de suor. Rodrigo e Gustavo seguem correndo, mas assim que nota, Rodrigo volta correndo até o rapaz, Gustavo ignora completamente e segue seu trajeto como se nada tivesse acontecido.
--- Vamos, quando fica difícil é que você tem que continuar, baixinho. Desistir é uma doença, na primeira vai ser difícil, mas a cada vez desistir vai ficar mais fácil. --- Rodrigo diz segurando no ombro do rapaz --- Quando menos notar desistir vai ser sua primeira opção. E na boa, se você não aguenta uma corrida, como pensa em ganhar as coisas difíceis da vida?
Davi ainda está absorto na própria mente e seu semblante é de total derrota, seu espírito já foi totalmente massacrado pelo cansaço. Rodrigo fica olhando com pena, mas uma voz chama sua atenção.
--- Rodrigo, a salvação é individual --- Gustavo berra de longe --- Que se fodam os fracos sem coragem de fazer o que precisa ser feito.
Rodrigo olha para Davi com um olhar de quem vê alguém que considera menos do que ele, se vira para frente e volta a correr. Isso massacra totalmente o ego do rapaz, que vê os dois veteranos sumirem no horizonte. Ele fica frustrado olhando para o chão, todo aquele seu discursinho de que iria mudar e que iria ser campeão já foi destruído no primeiro treino? Na primeira dificuldade? Ele finalmente entende com clareza a frase de que ser o melhor não é questão de conseguir, é questão de merecer. Fazer por onde e se esforçar, suportar toda dor, cansaço, vida regrada e pressão. Talvez isso só não fosse para ele, não fosse sua praia, talvez fosse de mais para um rapaz que a vida inteira foi apenas uma sombra.
--- AHHHH PRO INFERNO COM ISSO, CÉREBRO --- Davi grita dando um monte de tapinhas no próprio rosto --- Quem eu decidir ser aqui, vai ser quem eu serei a vida toda. E eu não quero ser um desistente.
Mesmo com toda dor, cansaço, insegurança e pensamentos negativos, Davi volta a correr com todo o seu ser e passa por todos os árduos quilômetros. Ele decide que vai completar ou morrer tentando, sem desculpas, sem meio termos, sem dúvidas. Assim que ele consegue finalmente correr os 10 quilômetros, ele chega na academia.
Quando Rodrigo o vê, abre um largo sorriso e acena com a cabeça em sinal de respeito. Gustavo faz o mesmo ato e o reconhece com um sinal de positivo com o dedão. Isso faz o rapaz sorrir e depois cair sentado exausto no chão. Antônio vê a cena e se aproxima dos três.
--- Ele realmente correu os 10 quilômetros? --- O velho olha incrédulo --- Os novatos geralmente não conseguem. Eu mandei ele ir pra desistir e não voltar mais.
--- O moleque é durão. --- Gustavo diz sorrindo.
--- Eu vou treinar ele com tudo que eu sei. Ele passou no meu teste.
Davi fica sentado no canto da academia totalmente exausto e fadigado, enquanto observa Gustavo e Rodrigo treinarem mais 6 rounds de saco de pancada e mais 3 rounds pulando corda. Ele então percebe que para realizar seu sonho, vai ter que treinar mais que esses monstros, e que isso vai ser extremamente árduo e complicado. Só que no momento não há tempo para inveja, o rapaz só consegue sentir admiração por seus veteranos por todo dia fazerem um treinamento que ele não consegue nem terminar. Só há uma coisa a se pensar, esses caras são incríveis.
🥊
Depois do treino, Gustavo chega em casa. Sua moradia é uma casa simples, sem nenhum bem caro ou extravagante. É uma residência apertada com dois quartos, uma sala que também é cozinha e um banheiro. Os móveis são velhos e surrados, mas a faxina e o cuidado com tudo são impecáveis. O garoto joga sua mochila com os equipamentos no chão e deita no sofá todo suado. Até que uma voz feminina irritada chama sua atenção .
--- Levanta daí, porcão.
Gustavo sorri ao reconhecer a voz e quem sempre se irrita com esse seu péssimo hábito.
--- Pera ai, Helena. Eu corri pra caralho hoje, preciso descansar.
--- É, mas depois eu não vou sentar no sofá todo sujo de seu suor. --- Ela o encara furiosa --- Ainda mais que você chega do treino fedendo a morto!
--- É onde eu durmo mesmo!
A garota fica parada olhando para ele com um olhar severo, o rapaz suspira e a obedece. Levanta e senta na cadeira da mesa de jantar, sem nem sequer rebater ou retrucar, apenas aceitando que era uma batalha que não valia a pena e que definitivamente não venceria.
--- Melhor? --- Ele diz a espera da aprovação dela.
--- Melhor --- Ela diz olhando com cara de brava para o sofá molhado --- O Davi gostou da aula?
--- Sei lá dele, fiz minha parte. Ele só continua sendo otário se quiser.
Helena sorri um pouco com o jeito meio foda-se de Gustavo, e logo em seguida se mostra grata pela ajuda que ele ofereceu.
--- Muito obrigada, mesmo. --- Ela sorri olhando para ele --- Chamar ele pro boxe foi muito legal.
--- Eu tenho coração mole pra gente fracote e você é minha prima, cuidar do seu namoradinho não é nada de mais!
--- Ele não é meu namorado! --- Ela rebate rápido com as bochechas vermelhas.
Gustavo começa a gargalhar por causa da cara de brava que Helena fez para ele. O cabeludo então abre um largo sorriso e diz com uma voz irritante, a voz que ele sempre usa para a tirar do sério, a que já sabe que é o calcanhar de Aquiles da garota.
--- Mas bem que você queria, hein?
--- Somos apenas amigos.
--- Eu já comi uma pah de amiga minha.
Helena faz um silêncio mortal por um tempo e diz totalmente decepcionada.
--- Credo, nojento.
Ela dá um tapa na nuca dele e depois faz cara de emburrada, mas logo desfaz o rosto de brava e sorri, os dois gargalham juntos, como fazem desde a infância. A dupla gosta de passar tempo juntos, é sempre divertido estarem juntos e por crescerem tão próximos, acabam se vendo como irmãos de consideração.
--- Você já jantou, Gustavo?
--- Não, acabei de chegar.
--- Certo, guarda um pouco pra minha mãe. Ela ainda não chegou do trabalho. --- Helena boceja cansada --- Vou estudar um pouco antes de dormir. Te vejo amanhã, ok?
--- Ok, bons estudos. Vou guardar comida pra tia quando ela chegar.
Helena entra no quarto dela e fecha a porta, Gustavo aproveita e deita novamente no sofá. Ele suspira, é grato por sua tia ter o acolhido após a morte dos seus pais, mas também já estava cansado de não ter um quarto, de ter que dormir no sofá, de ter que ver sua tia chegar tarde do trabalho para conseguir manter a casa, todo esse esforço pelo seu futuro e de Helena. Ele quer recompensar essas pessoas que sempre fizeram tudo por ele, quer que cada gota de lágrima e suor derramada por elas dê resultado.
Cresceu sendo chamado de encrenqueiro, revoltado, vagabundo e todo tipo de coisas ruins. Por diversas vezes seus professores disseram que ele nunca seria ninguém na vida e que talvez terminasse até preso. Ele sabe que não é inteligente e nem o melhor dos alunos, sabe que quando o ensino médio acabar dificilmente irá passar no Enem e que não tem grana para uma faculdade particular. Ele sente que vai terminar em algum trabalho braçal e que vai ser só mais um o resto da vida, que não vai conseguir compensar a bondade de sua tia como ela merece.
O boxe é a única coisa que ele faz bem, é seu plano A, B, C até o Z, pois se isso não der certo, ele não tem outras ferramentas para subir na vida. Tem que continuar vencendo e vencendo até poder ser um profissional. Na tv passam lutadores milionários, Floyd Mayweather e Conor Mcgregor ganharam 100 milhões para lutarem. Para um rapaz pobre, isso é um sonho distante e uma mera ilusão, mas para ele é melhor se apegar e esforçar por uma ilusão, do que simplesmente esperar o tempo passar e sua profecia se cumprir. Ele sente a gana e o desejo de vencer, não pelas medalhas, troféus ou cinturões, mas por aquelas duas que sempre cuidaram dele.
Eu vou conseguir... --- Ele sussurrou fechando os punhos.
No quarto, Helena está sentada em uma mesinha que fica ao lado de sua cama. Na parede estão um monte de papéis com anotações, neles tem citações para redação, fórmulas matemáticas e conceitos de física. A garota estudou pela manhã na escola, a tarde arrumou a casa e agora novamente vai estudar, sua mente está cansada, seu corpo está cansado e seus olhos mal se mantêm abertos. Ela sacode a cabeça e toma um gole de café.
--- Acordada! --- Ela dá uns tapinhas no rosto --- Você tem que ficar acordada. Ainda não estudou suas 6 horas do dia.
Ela abre os livros com o selo da biblioteca local e começa a ler e fazer anotações no caderno. Folha a folha, parágrafo a parágrafo, linha a linha e letra a letra, ela lê e faz anotações de cada um deles. Seu corpo pesa, mas ela prossegue. Até que algo chama sua atenção e a tira do foco dos estudos, é a luz do sol. Ela virou toda a noite e madrugada lendo, Helena sorri.
--- É... mandou bem --- Ela diz com a voz cansada. --- Medicina ano que vem aqui vou eu.
Ela levanta com um pouco de dificuldade e vai tomar banho para se arrumar para mais um dia de escola. Mais um dia de rotina, mais um dia em que vai fazer de tudo para atingir seu objetivo e propósito. Os dois primos estão fazendo todo o possível para melhorarem a vida da família. Cada um do seu jeito, cada um do seu modo.
Gustavo arrisca a saúde e se esforça desgastando seu corpo, Helena desgasta seu tempo, mente e talvez até a visão para conseguir ser uma médica um dia. Ela quer dar uma vida confortável para os que ama e os estudos são seu caminho para isso. Não tendo como pagar pela faculdade, o Enem ano que vem é sua batalha e ela se esforça para vencer com louvor todas aquelas questões.
🥊
Davi desce as escadas da sua casa mancando, com uma grande letargia e fazendo caretas de dor por conta da corrida de ontem. Maria e Miguel estão na sala e se entreolham sem entender o que está havendo. A mãe é a primeira a romper o silêncio com uma voz tensa e trêmula.
--- O que foi isso, meu pimpolho? Tá com problemas na escola de novo? Tá todo dolorido.
--- Ahn? Não, nada disso. Nem perto disso, aliás --- Davi coça a nuca e solta um sorriso --- Isso foi no boxe.
Sua mãe faz uma cara de espanto e fica calada, seu pai abre um largo sorriso de orelha a orelha. O homem então começa a falar muito empolgado.
--- Boxe, é? Isso é inesperado.
--- Eu gosto muito agora.
Seu pai acena com a cabeça e sorri orgulhoso, esse é um sorriso que Davi não recebia há muito tempo. Ver o pai orgulhoso e animado com algo que ele fez, o deixa extremamente bobo e feliz, para o rapaz isso é melhor que qualquer presente. Ele é grato ao boxe por isso e por render um clima mais leve com seu pai. O garoto abre a porta de casa e vai animado para a escola e mal pode esperar pela noite, para ir novamente ao boxe e descobrir mais sobre e saber o que mais esse esporte vai lhe proporcionar.
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Notas do autor:
Olha eu aqui de novo, pontual como o sol, mais uma semana e mais um capítulo. Espero que tenha sido do agrado de vocês, tô fazendo essa história com muito carinho. Esse foi o maior capítulo da história em termos de quantidade de palavras, tomara que isso não o tenha deixado massante, eu só não conseguia achar um bom momento para terminar o capítulo e fui continuando deixando a mente livre. Pelo visto eu deixei ela livre por tempo de mais e saiu essa imensidão toda kskskks.
O que acharam do Antônio e do Rodrigo? Aos poucos irão aparecendo mais personagens importantes para a trama. Te vejo na próxima sexta-feira? Até mais, coloque suas luvas e te vejo no próximo capítulo!
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