Round 4: Como é ser o mais fraco

Mosca não entende os movimentos e gingado de Gustavo, mas entende que definitivamente ele sabe o que está fazendo. Acabara de vencer Davi, mas de uma forma nada convincente, então sabe que isso já manchou sua reputação, perder para Gustavo iria ser o último prego no caixão. Então ele opta por uma saída estratégica, se a luta não rolar, ele pode alegar o que quiser depois.

--- Sua vez? Deixa de falar merda. Eu não brigo sem uma razão, não sou um cachorro.

--- Não seja por isso então, vou te dar o seu motivo. --- Gustavo dá um tapa na cara de Mosca, fazendo um gigante estalo. --- Vixe, ficou até vermelho. Vai aceitar essa humilhação na frente de todo mundo?

A plateia começa a gritar empolgada e a rir do projeto de punk, o rapaz não consegue aceitar esse desaforo e avança com um soco usando a soqueira. Davi está sentado e vê a cena, ele sabe como doi e como deixa tonto, então por reflexo já acha que é o fim do garoto que veio ajudar ele. Só que para sua surpresa, seus olhos se encantam com um movimento estranho de cabeça que Gustavo faz, ele a move em pêndulo e o soco passa no vazio, fazendo Mosca passar direto e cair sentado. O cabeludo segue saltitando nas pontas dos pés.

--- Muito lento. --- Ele diz sem interesse.

Davi não entende o que foi aquele movimento, Gustavo era muito rápido e definitivamente não foi algo improvisado, foi algo friamente calculado e praticado com antecedência. Mosca levanta visivelmente furioso e solta uma chuva de golpes desengonçados, o cabeludo continua na ponta dos pés andando para trás e movendo a cabeça, o punk não conseguiu acertar nenhuma vez. Esse show de destreza e habilidade deixam Davi encantado, ele quer entender como se faz isso.

--- Cara, como você faz essa merda!? --- Mosca diz puto.

--- Eu não te devo satisfações. --- Dá para ver o tédio na voz do lutador.

Gustavo finalmente para de saltar na ponta dos pés e fica fixo e firme no chão. Sua postura antes defensiva agora é claramente ofensiva, ele sorri e avança, Mosca solta um soco, Gustavo esquiva e corta ângulo saindo na lateral do punk, que não consegue acompanhar a velocidade. Davi já havia percebido que os socos de Mosca doíam, mas só tinham força bruta, mas ao chegar na lateral do oponente, o cabeludo golpeou de uma forma que o rapaz jamais havia visto antes. 

O soco foi completamente reto, sem nenhum ângulo maluco como os do punk, além de ser completamente direto, ainda houve giro de calcanhar, de cintura, de ombros e pegou precisamente na ponta do queixo, nem um centímetro distante e nem um centímetro perto demais. Foi um golpe perfeito. Foi elegante, preciso, compacto e poderoso. Mosca ao ser acertado tem a cabeça lançada para trás com tudo, e quando sua cabeça volta para posição de origem, suas pernas tremem e ele cai em cima do próprio rosto no chão.

Gustavo não demonstra nenhuma surpresa ou emoção, aparenta ser apenas mais um dia normal, ele tem aura de quem fez propositalmente e de maneira calculada. Não foi um golpe lançado tentando acertar, foi um golpe lançado sabendo que iria acertar. São coisas completamente diferentes. Mosca lutou com força bruta, fazendo o que seu instinto mandava, Gustavo lutou como se seguisse um plano, um passo a passo. O rapaz se comportou durante todo o combate como um cirurgião, o resultado já estava definido antes do primeiro soco ser lançado. Tudo estava previsto e ocorreu como ele quis, quando ele quis.

Davi está completamente incrédulo e sem palavras, ainda em choque fica encarando o cabeludo, que ajeita o cabelo em um coque e depois solta um sorriso de canto.

--- Aprendeu como faz, Davi?

--- Você matou ele?

--- Sei lá, quem liga?

A frieza e pouca falta de importância em fazer o que fez, deixou Davi com medo do rapaz. As pessoas que antes eram plateia, agora com muita preocupação começam a sacudir Mosca, que permanece imóvel no chão. O clima é o pior possível, todos estão tensos e com medo do pior, menos Gustavo que abre um chocolate e fica comendo vendo a cena. Até que finalmente Mosca acorda respirando pesadamente, ele tenta levantar, mas logo cai sentado novamente. Gustavo vai até ele e coloca a embalagem no seu cabelo, deixando grudada lá sujando de chocolate.

--- Agora você sabe como é ser o mais fraco. --- O cabeludo diz olhando com desdém. --- O Davi me disse que você cobrava grana para o deixar em paz. É mesmo um grande empreendimento. Vou imitar, agora você paga pra mim pra viver em paz, ok?

🥊

O coração de Davi pula no peito, como nunca havia feito antes. Ele se sente uma criança novamente. É uma animação diferente, uma alegria, uma empolgação que ele sente até os ossos. Muitos pensariam que essa felicidade é por ver Mosca levar o que merece, mas não é isso, nem de longe. O rapaz na realidade está como está por ter testemunhado aqueles movimentos que ainda não entende, por ter visto aquela habilidade que ele acha bonita, plástica e elegante. Ele entende que é algum tipo de técnica ou coisa do tipo, e isso só o deixa mais curioso para entender mais sobre. Gustavo parecia uma pessoa completamente diferente naquele momento, era como se fosse alguém especial, iluminado, feroz e até com características além das pessoas normais.

Tamanha beleza naqueles movimentos intrigaram Davi, que como forma de aproximação, comprou um lanche em um bar próximo e saiu pela cidade a procura do autor de tal ato. Após caminhar por aí, o jovem finalmente encontra Gustavo, que está jogando em uma máquina de fliperama, em um boteco mofado e caído, uma verdadeira espelunca onde bêbados vão encher a cara, apostadores vão perder suas economias jogando no bicho e Gustavo vai jogar the king of fighters 2002 e jogos nesse estilo. Mesmo tímido como sempre, desta vez não havia tempo para isso e ele logo quebra o silêncio.

--- Posso falar com você, Gustavo?

--- Você meio que já tá falando --- Ele responde sem desviar o olhar do jogo.

--- É, isso é verdade --- Davi diz sem jeito --- Ah, muito obrigado por hoje. Você realmente me ajudou muito.

--- Corta esse lenga lenga, não gosto desse drama todo.

Davi logo fica ansioso e sem saber como seguir a conversa, então logo apela para sua carta especial. Ele abre o pacote e hesitante o mostra para seu salvador, que logo abre um sorrio repleto de gula.

--- Eu trouxe um lanche pra você pra agradecer.

--- Definitivamente não corte esse lenga lenga. --- Gustavo ignora o jogo e vira animado já pegando o pacote na mão do rapaz.

O cabeludo abre e vê que é uma coxinha e já sorri, logo em seguida começa a devorar de maneira muito mal educada, nem de longe parecendo o cara elegante que foi enquanto brigava. Davi observa a cena e um pouco da admiração que sentia dilui, mas ainda sobra o suficiente para que valha a pena que a pergunta seja feita. Sua mente já não aguenta mais não entender o que houve, ele precisa saber o que foi aquilo que testemunhou, mas não consegue acreditar no que viu.

--- O que foi aquilo?

--- Aquilo o quê? --- Gustavo diz amassando a embalagem após terminar de comer.

--- A magia com os punhos que usou no Mosca.

--- Magia? --- Gustavo dá de ombros aéreo no papo.

--- O jeito que se movia, você flutuava na ponta dos pés --- Davi fica visivelmente empolgado.

Gustavo sorri ao receber o elogio, mas mantém sua postura desinteressada de sempre, como se fosse algo cotidiano receber elogios por esse tipo de coisa. O cabeludo dá de ombros e diz como se fosse qualquer coisa.

--- Ah, é só boxe --- O cabeludo faz uma bola com o pacote e tenta acertar de longe no lixo, mas erra. --- Quase.

Boxe? Então era isso que seu pai gostava e fazia todo esse tempo? Isso foi uma grande surpresa para Davi, pois por seu pai ser um homem bruto e simples, sempre pensou que por ele gostar disso, seria algo também bruto e simples, sem nenhum tipo de inteligência ou coisa do tipo, apenas violência pura e sem razões, dois homens se acertando por puro instinto e prazer em machucar alguém, mas definitivamente não foi isso que ele viu Gustavo fazer. Havia todo um sistema, um padrão de movimento, uma técnica, um modo de fazer as coisas e toda uma leitura do oponente para realizar a melhor ação no melhor momento, um xadrez em movimento. Davi percebe que estava errado todo esse tempo, o boxe sempre foi muito mais do que ele sempre pensou. O rapaz até sente um certo arrependimento por sempre ter evitado o tema e recusado os convites de praticar, definitivamente esse esporte é algo que virou um de seus interesses. Tudo sobre isso o deixa curioso agora.

--- Você me ensinaria? --- Davi diz com uma firmeza incomum.

--- Eu não sou professor e alguém inseguro como você não serve pra isso. --- Essa resposta claramente deixa Davi triste, ao notar isso, Gustavo segue falando --- Só que meu professor é religioso e gosta de causas impossíveis, vai ser interessante ver o que vai rolar.

O cabeludo então tira um planfeto todo amassado do bolso e entrega para o rapaz. No planfeto há um senhor mais velho com manoplas na mão e ao fundo tem um brasão com um buldogue estampado, com os dizeres "Academia Arte Porrada - Matrículas abertas".

--- Academia Arte Porrada? --- Davi questiona achando o nome meio bobo, mas não estava em posição de julgar. Gustavo nota e fica meio ofendido.

--- É onde eu treino. Algum problema?

--- Nenhum. --- Davi diz nervoso com a ideia de ter sido ofensivo e perder a chance de treinar --- Nenhum problema!

Gustavo cerra os olhos desconfiado, como quem tentasse ler a mente e intenções de Davi. Ele segue fazendo isso por longos e desconfortáveis segundos, mas logo se convence de seja lá o que ele estava desconfiando e volta a agir normalmente.

--- Que bom. Aparece lá na segunda feira, 19 horas. Sem atrasos, o velhote fica puto com quem se atrasa.

--- Não vou me atrasar nem um minuto!

🥊

Assim que chegou em casa, a primeira coisa que o rapaz fez foi abrir o YouTube e pesquisar a palavra boxe, uma pesquisa não muito específica, mas para quem não sabe nada, deve ser o bastante para entender no mínimo o básico. Ele se deparou com vídeos de dezenas de lutas, acabou assistindo várias e várias delas em sequência, primeiro como uma curiosidade, depois como entretenimento e por fim se viu estudando sobre, tentando entender as razões que levaram o lutador a ganhar ou perder. A cada golpe, a cada round e a cada coisa que assistia sobre, mais e mais o encanto aumentava, mais e mais ele tinha vontade de sentir na própria pele como era executar aqueles movimentos, ele ansiava saber como era estar em cima daquele ringue.

 Todos aqueles caras eram tão diferentes dele, eles não desistiram, não recuavam, não importando o quão difícil era a situação, eles sempre davam um jeito de se levantar no último segundo da contagem. De certa forma, era inspirador assistir aqueles combates e a figura daquelas pessoas ficava cada vez mais mística, como algo idealizado e virtuoso. Davi os via cheios de cinturões e pensava: O que será que eles sentem nessa hora? Como um campeão se sente? 

O rapaz sabe que não teve uma vida memorável até então e sabe também que não poderia ser considerado uma pessoa incrível e invejável, então imagina que nem de longe sabe como é ser um campeão. A ideia sobrevoa sua mente e ele flerta com ela, como é ser um campeão? Ele só pensa nisso agora, sabe que talvez seja apenas uma curiosidade boba e infantil, mas talvez só talvez em algum canto de sua mente, isso acaba de virar uma meta, uma meta tímida e talvez delirante, mas ainda assim uma meta. Para isso, ele precisa mudar e renascer, ser um novo Davi, um digno de ser chamado de campeão, um cheio das virtudes que tanto admira nesses lutadores.

Sua mente se perde nesses devaneios, mas logo volta ao mundo real com a chegada de Miguel, que o observa em silêncio, sem entender o que seus olhos estão vendo, é uma situação totalmente fora do cotidiano dessa casa e família, o garoto sempre teve aversão a luta e essas coisas, então o ver assistindo boxe todo animado, definitivamente chama a atenção do pai. O homem segue em silêncio e nota os ferimentos na testa, lábio e nariz de seu filho, era como se um caminhão o tivesse atropelado, primeiro Miguel se infla de ódio e pensa em ir ele mesmo resolver o problema, pouco se importando se era um menor que fez aquilo. Depois ele observador como é, viu que o estado do rapaz estava muito diferente e ele não demonstrava tristeza ou vergonha, estava sereno e contente. Isso era um bom sinal, não é? Ele se perde em pensamentos e análises do que vê até que sua voz rasga o silêncio e atinge os ouvidos do rapaz.

--- De novo, o que é essa merda na sua cara? --- O homem está visivelmente irritado e até frustado com o que vem ocorrendo.

--- Eu revidei.

--- Revidou? --- A resposta de Davi claramente o desarmou. --- E então, você ganhou?

--- Eu venci, pai. 

Um sorriso sorriso surge no rosto de Miguel, isso por algum motivo deixa Davi feliz de um jeito diferente, seu coração aquece na hora. Todo seu jeito turrão e bruto, se desarma e ele fica muito mais aberto a o que o rapaz tem a lhe dizer. E assim ele faz, fica em silêncio e deixa o rapaz seguir falando o que precisa saber.p

--- Eu sei que te dei muito trabalho com isso, mas é um tipo de problema que você não vai mais ter que lidar, pai.

--- Eu espero que sim, mas eu posso ajudar se continuar por alguma razão. --- Miguel diz tentando se aproximar do filho --- Eu só não me meti porque você não estava fazendo nada, mas com você fazendo a sua parte, eu vou sempre te apoiar. Em tudo.

Davi o olha fixamente e firmemente, sem piscar, titubear ou fazer firulas, é um tipo de intensidade que o pai não está acostumado a ver no rapaz, mas que definitivamente não desaprova, até fica satisfeito em a ver no semblante de seu filho. Miguel deixa o garoto continuar falando, ele está interessado em entender o que foi essa mudança repentina.

--- Eu ainda não sou quem eu quero ser, mas já não sou quem eu era. Isso já é muita coisa. --- Davi cerra os punhos --- Não vai se repetir.

Passado o susto incial e agora estando finalmente conseguindo ter uma conversa com o filho que não acaba em brigas e lamentos, Miguel sente uma satisfação e alegria que não sentia há tempos, sentia falta de se sentir próximo a Davi. O velho quer continuar conversando, mas não sabe como, então puxa papo do jeito mais bobo que acaba achando.

--- Isso é boxe no seu computador ou eu tô delirando? 

--- Eu me interesso agora. --- Davi diz timidamente.

--- Se é pra ver, pelo menos vê uma luta boa. --- O homem diz e logo em seguida começa a se gabar --- Esses moleques da sua geração são palhaços, não lutadores.

--- Como assim?

--- Deixa o pai mostrar.

Miguel então coloca George Foreman versus Muhammad Ali. Os dois assistem impressionados e boquiabertos, tanto pela habilidade quanto pelo espírito dos dois lutadores. É a melhor e mais intensa luta que Davi já assistira em sua curta vida de fã de boxe.

--- Caraca, pai. O que foi isso?

--- Eu sei! Legal né? O Ali tava retornando ao boxe após estar suspenso 3 anos por motivos políticos. Ele tava sem tempo de luta, era mais velho e ninguém tinha durado 5 rounds contra o Foreman antes. Todos achavam que o Ali ia perder fácil.

--- Então porquê o Ali ganhou?

Miguel sorri ao ver o interesse do filho e começa a disparar palavras igual uma metralhadora, totalmente entregue a animação e empolgação. Ele quer falar tudo o que sabe, ele quer falar tudo que tem para dizer, só porquê é seu filho quem está ouvindo.

--- Ele deixou o Foreman bater nele por 6 rounds, provocando, isso fez o Foreman cansar. Ai no sétimo round, ele fala: "É tudo que você tem, George?" E bate nele até desmaiar e vence. Pura estratégia, vence quem usa o cérebro, não quem só joga socos e quer brigar o tempo todo. Não são bodes batendo a cabeça, é boxe.

Davi fica inspirado ao ouvir isso, o boxe em si já era algo que pairava e mexia com sua mente, agora saber das histórias por trás das lutas só o deixava ainda mais admirado por tudo. Para sua sorte, seu pai sabia histórias sobre muitas e muitas lutas. Os dois passam horas e horas assistindo e conversando, assistem Roberto Duran vs Sugar Ray Robinson, Mike Tyson vs Evander Hollyfield, Muhammad Ali vs Chuck Wepner e mais dezenas de combates clássicos do esporte. A mãe de Davi, Maria, chega com uma bacia de pipoca que fez para os dois, a mulher adorou ver os dois juntos por tanto tempo e não hesitou em fazer esse mimo, para os incentivar a continuar passando esse proveitoso tempo juntos. Ela abre a porta do quarto e vê os dois dormindo sentados lado a lado, Davi está com a cabeça apoiada no ombro do seu pai e Miguel está abraçando seu filho. Ela sorri quando vê a cena, coloca a pipoca na mesa e desliga o computador. Maria pensa em os acordar, mas já havia tanto tempo que não os via se darem tão bem, então ela só apaga a luz e sai fechando a porta, com um risinho bobo no rosto, transparecendo uma felicidade genuína.

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Notas do autor:

Eae, galera. Olha eu aqui de novo, mais um capítulo e dessa vez o Mosca finalmente teve o que merece. Pra vocês foi o bastante ou ele tinha que se lascar mais? Kskskks provavelmente já imagino a resposta de vocês.

O Davi finalmente despertou interesse pelo boxe e ganhou um convite para frequentar uma academia, o que será que vai acontecer? Volte semana que vem e descubra!

Te vejo na próxima sexta-feira? Até mais, coloque suas luvas e vamos para o próximo round!

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