Round 18: Cotovelo

--- Chefe, chefe! --- Raul se aproxima empolgado --- Olhei as papeletas e o nome do seu oponente é Isaque Cruz.

--- Isaque? --- Davi aparenta tentar se recordar --- Alguém aqui conhece?

No ambiente estão Raul, Davi, Miguel e Helena, todos respondem acenando a cabeça em negação. Não conhecer o oponente é algo tenso e que faz a mente viajar para longe, imaginando sempre alguém muito perigoso, o que pode ou não ser verdade.

De maneira conveniente, um rapaz alto vem caminhando na direção do grupo. Ele tem o cabelo baixo raspado nas laterais e maior em cima, no canto tem algumas listras desenhadas no cabelo. Sua sobrancelha tem um risco e abaixo do seu olho direito há uma tatuagem de lágrima.

Assim que chega mais perto, Davi logo nota que os dois braços desse cara também são completamente fechados de tatuagens. Sendo as que mais se destacam dois socos inglês no dorso das mãos. Esse garoto misterioso para na frente de Davi e o encara de cima a baixo.

--- Você é o Davi? --- Diz com uma voz rouca e de deboche.

--- Sou --- Davi rebate firme não desviando os olhos --- Eu te conheço?

--- Ainda não, mas vai. Eu vou te dar uma surra por nove minutos daqui a pouco.

A mente de Davi finalmente é capaz de entender toda a situação, esse garoto em sua frente é o tal Isaque Cruz, seu oponente. O garoto então começa a o analisar o máximo que consegue, vendo que é menor em estatura e que provavelmente tem alguns poucos quilos a mais que seu futuro rival. A postura dos dois também difere muito, Isaque exala problemas e soberba, um clássico garoto problemático, desde o modo de falar, portar e se vestir. Davi por outro lado beira o mauricinho, é um cara quieto, que não chama atenção e que se veste de forma discreta e arrumada.

--- Não é tão fácil assim me dar uma surra --- Davi fala sério.

--- Eu vim aqui ver quem vai ser minha próxima vítima --- Isaque diz o encarando com nojo --- Mas me decepcionei, você é bem menos do que eu pensava. É um anão, playboy e nerdola, você vai se cagar de medo antes mesmo de subir no ringue.

Essa ofensa faz o sangue do rapaz ferver, ainda mais porque foi feita na frente de seu pai e da garota que ele gosta. Davi desvia o olhar e vê Miguel e Helena assistindo toda a cena, isso o envergonha e o enche de raiva. Não poderia aceitar isso, mas antes mesmo que pudesse responder, Isaque segue na sua metralhadora de palavras.

--- Vou te jogar morto com socos no primeiro round. Pra seu pai ver o merdinha que criou.

Isaque se bate em Davi e vai embora, totalmente alheio e ignorando o rapaz, dá as costas como se o seu oponente não representasse ameaça. Essa última ofensa foi de mais para lidar e aceitar, Davi sempre foi do tipo que evitava briga e pensava em resoluções pacíficas, mas não desta vez, esse cara precisava de uma resposta a altura usando os punhos. O garoto está decidido a usar a linguagem da violência para passar uma mensagem, não poderia aceitar voltar a ser tratado como antes, e para sua sorte neste período treinando boxe acabara se tornando fluente na língua da porrada.

--- De que Febem esse cara saiu? --- Raul fala tenso --- E caralho, 16 anos e já é todo riscado? Ali é tatuagem de cadeia, certeza!

--- Que se foda quem ele é. --- Helena diz autoritária --- O Davi vai vencer dele.

--- Não --- Davi diz isso e faz uma pausa, que causa tensão em todos com medo do rapaz ter perdido a confiança, o que não foi o caso --- Vencer não é o bastante, eu tenho que fazer esse cara tomar uma surra.

Raul sorri ao ver a nova postura do seu amigo, mais confiante, mais forte, de modo que não deixa as pessoas o tratarem como bem entendem. Ele só consegue sentir alegria e orgulho ao ver tal cena, a ponto de não se conter e precisar elogiar o que acabara de ver.

--- Tem razão! Dá um samba de cacete nesse cara!

O clima já havia aliviado um pouco da tensão quando finalmente Miguel começa a falar o que acha sobre o ocorrido. O homem está mortalmente sério e fala com uma voz rouca e serena.

--- Cuidado, não subestime e nem superestime seu oponente. Ainda não sabemos como ele luta --- O pai diz com os braços cruzados --- Também não se encha de raiva dele, quem controla as emoções do oponente tem vantagem, e ele sabe disso. Tá tentando te descontrolar pra te dominar, esse cara sabe o que está fazendo. Com certeza não é um qualquer.

--- Sim, tomarei cuidado --- Davi diz sentindo a pressão de ter que vencer após essa conduta do oponente. Como uma resposta a toda ofensa e desrespeito que recebera.

🥊

Após a briga de Helena e Raul, o clima na torcida é o pior possível, com cada pessoa no próprio canto e no próprio mundinho, alheio aos demais. A garota segue com o coração aflito e cheio de preocupações, Raul por sua vez permanece em silêncio como se estivesse pensativo sobre algo, Miguel aparentemente se mostra entediado e ansioso para a luta de Davi, que parece se corroer de nervosismo.

Antes de uma luta de boxe o tempo é o pior inimigo, é comum que lutadores neste período fiquem oscilando entre calma e inquietação. Por vários momentos o rapaz se sentiu tranquilo e preparado, como também por outros se sentiu totalmente dominado pela pressão. Esta montanha russa emocional e variação do sentir é um desafio e uma verdadeira maratona psicológica. É cansativo e extenuante, é uma sensação dos seus órgãos internos derreterem e liquefazerem e que só vai piorando a medida que a sua vez de subir no ringue vai chegando.

Nessa hora a mente de bombardeia e tortura com inseguranças, neuras e dúvidas. Você se pega pensando se treinou o suficiente, se realmente está preparado para o que virá, se está pronto para se machucar gravemente e, principalmente para os lutadores novatos, se você vai passar vergonha na frente de todos os seus amigos, parentes e colegas. Essa é a pior parte na minha opinião, a tensão do medo de não desempenhar uma boa luta e ser humilhado na frente das pessoas que importam para você.

Quando está repleto dessas emoções, é a hora de todo bom lutador exercer a sua natureza circense, todo guerreiro tem um quê de artista. Quando estão fracos é a hora de mostrar força, quando estão fortes é a hora de mostrar fraqueza, tudo em um jogo psicológico de mimica e atuação para enganar o oponente, e muitas vezes a si mesmo.

Quando um ente querido se aproxima e pergunta se estamos nervosos ou se estamos prontos, vamos responder que sim, mas com a alma agitada como um mar em fúria, e eles nunca vão nem notar a diferença. Davi se sente pesado e teso, mas diz a todos que está preparado e todos acreditam em sua palavra. A cada vez que vão checar seu estado ou vão o perguntar sobre seus sentimentos, ele só vai murchando e piorando internamente, mas com um rosto inabalável externamente para esconder este fato.

Olhos leigos nunca poderiam ser capazes de notar isso, olhos de quem nunca experienciou o ringue e suas adversidades. A questão é que Miguel por anos de sua vida teve essa rotina cansativa de lutar e dentre todos os ali presentes, ele é o que mais consegue entender Davi. Palavras agora só serviriam para embrulhar ainda mais o estômago do rapaz, então seu pai resolve agir de outro modo.

O homem se aproxima do garoto e encosta suas testas, restando apenas que se encarem nos olhos. Olhares nunca mentem, são o espelho da alma e de todo o sentir, um grito sufocado de tudo aquilo que reside em alguém. O olhar de Davi revela nervosismo e falta de concentração, enquanto Miguel faz todo o possível para transparecer força e intensidade. Eles seguem se olhando, nesta comunicação muda e limitada, mas totalmente verdadeira e crua. Aos poucos Davi entende o recado, seu pai está o educando sobre a postura que deve adotar neste instante.

Os olhos do rapaz se transformam, mas não como uma mimica ou teatro, eles se transformam de dentro para fora, da forma mais real possível. Sua postura muda, agora ele irradia confiança e força, sua visão afunila e tudo que ele consegue ver é o ringue e as cordas, tudo que consegue focar é em sua luta, deixando de lado todos os devaneios e inseguranças. Davi estava pronto.

Antônio se aproxima dos dois, que se afastam e o encaram. O mestre vê o olhar do garoto e acena com a cabeça, ele conhece esse olhar, já o viu milhares de vezes antes. O treinador então finalmente quebra o silêncio aterrador que ditava a atmosfera do local.

--- Tá pronto, pirralho? --- Diz intenso.

--- Sim, estou, vamos para a luta --- Rebate seco.

🥊

--- No corner azul, da academia arte porradaaaaaaaa --- O narrador berra empolgado no microfone --- Fazendo a sua estreia nos ringues de competição, vem ai DAVIIIIIII NOGUEIRAAAAAAAAAA.

Agora era a hora, não havia como voltar atrás, esse era finalmente o momento que ele tanto sonhara, finalmente consegue entender como Rodrigo e Gustavo se sentem toda vez que competem. O caminho para o ringue parece infinito, ele dá muitos passos, mas sente que não chega mais perto. Ele segue caminhando olhando para o rosto das pessoas na plateia, todos os laços do seu destino se afunilam e apontam para o ringue de boxe. Os degraus para subir parecem imensos e ele sente as pernas tremerem, é sinal de que está vivo e sentindo cada e todo momento, assim que sobe no ringue ele aparenta confusão e fica olhando sem parar para as luzes e para as pessoas.

--- Cumprimente a plateia, mal educado, eles vieram te ver afinal --- Antônio diz para o garoto.

--- Sim!

Davi começa a acenar a cabeça e fazer reverências para os quatro cantos do ringue, o que desperta curiosidade e risadas da plateia, por conta da postura extremamente tesa e educada do rapaz, algo bem diferente do que estão acostumados a ver dos lutadores em cima do ringue. Ver alguém tão polido e tímido assim é refrescante e até carismático, de um jeito bobo.

--- E-Eles tão rindo de mim???

--- Acho que sim --- Antônio diz gargalhando --- Você foi formal de mais, mas acho que eles gostam de você agora.

As gargalhadas cessam quando um homem gordo nas primeiras filas começa a gritar com toda a força de seus pulmões, ele faz a sua voz ecoar por todo o ginásio enquanto balança uma garrafa de cerveja Heineken.

--- AE PIVETE EDUCADO, VOU TORCER POR VOCÊ! BOTA PRA TORAR, ARROCHA NELE!

--- É!!!! --- Mais pessoas começam a gritar em coro --- Tamo torcendo por você!!!!!!!

Essa reação faz Davi corar e fazer cara de bobo, o rapaz se vira tímido para Antônio e faz uma imensa cara de pastel. Até que acanhado solta um riso e diz com a voz satisfeita e alegre.

--- Eles me amam!

--- É, é, tô sabendo --- Antônio diz gargalhando --- Agora foca na luta, inferno!

Até que o narrador usa toda sua voz e teatralidade para anunciar o rival, o homem agarra o microfone e berra com tudo de si e toda a animação possível, que passa a contagiar a plateia que berra e ecoa um som de êxtase.

--- No corner vermelho, da academia boxe para vencer, o único, o inconfundível ISAQUEEEEEE CRUZZZZZZ. Com duas lutas e duas vitórias. Ele continuará no caminho do triunfo ou o novato Davi irá mudar seus planos????

Lutadores amadores normalmente tem entradas discretas e contidas, não há muito espaço para o show como ocorre no profissional, mas não com Isaque, o rapaz sempre foi conhecido pelo seu estilo extravagante e inconfundível. Muitos acabam achando vulgar e até mesmo vergonhoso que um amador imite um profissional desta maneira, mas o garoto simplesmente não liga e faz o que quer, quando quer.

Isaque surge e vem fazendo sua entrada usando um roupão preto com um capuz que cobre grande parte do seu corpo, deixando de fora apenas seu rosto e seus pares de luvas que tem desenhos dos ossos do punho. A parte de trás do roupão tem um grande desenho de escorpião e a frase que o caracteriza como lutador: "inconfundível".

" Soy un hombre muy honrado, que me gusta lo mejor
Las mujeres no me faltan, ni al dinero, ni el amor
Jineteando en mi caballo, por la sierra yo me voy
Las estrellas y la luna, ellas me dicen donde voy

Ay, ay, ay, ay
Ay, ay, mi amor
Ay, mi morena
De mi corazon"

Uma música começa a ecoar pelo espaço enquanto o jovem segue sua caminhada, algumas pessoas da plateia se mostram chateadas por o acharem um exibido, enquanto outras gostam e acham que o show faz parte e que agrega a experiência de assistir uma luta.

" Me gusta tocar la guitarra, me gusta cantar el son
Mariachi me acompana, cuando canto mi cancion
Me gusta tomar mis copas, aguardiente es lo mejor
Tambien el tequila blanco, con su sal le da sabor

Ay, ay, ay, ay
Ay, ay, mi amor
Ay, mi morena."

Ao som do solo de violão, ele finalmente sobe no ringue e anda até o corner de Davi, o encarando nos olhos. Logo em seguida o analisa de cima a baixo, com um ar de superioridade.

--- Nove minutos de surra --- Ele desdenha.

--- Veremos. --- Davi retruca --- Você fala muito, deixe os socos falarem ao invés da boca.

🥊

Assim que o juiz permite o início do combate, Davi sai do seu corner com passos cautelosos, ele entende que o boxe vai muito além de socos e defesas. Cruz por sua vez, já possui uma certa experiência de ringue e também inicia cauteloso, ambos não sabem do que o oponente é capaz e preferem se movimentar, fintar e estudar o oponente durante o início da luta.

"O jeito que você se comportar aqui no ringue, vai ser como se comportará no resto da sua vida. Deus, viu meu esforço, não me deixe cair em humilhação. Dê a vitória a quem merecer mais " - Davi pensa enquanto se move usando passos planos e passos pêndulo.

Esse começo parece morno para a plateia, mas para os atletas é como se uma faca estivesse em seus pescoços. O corpo humano fala e revela muitas coisas apenas pela linguagem corporal, então o mínimo detalhe pode acabar denunciando a próxima ação do rival. Nessa hora entra todo o xadrez com punhos que é o boxe, "se eu mover meu ombro assim, ele vai achar que vou jogar um jab", "O que dá pra contragolpear um jab? Um direto por cima? Provavelmente é o que ele quer fazer, se ele jogar isso, eu respondo como?".

É apenas o que se passa na mente dos lutadores, estão lutando sem lutar, é uma luta que está acontecendo sem que nenhum soco precise ser efetuado. Duas ou três ações no futuro, é o que ambos estão planejando. Eles se movem e fingem iniciar movimentos, mas os interrompem, apenas para pescar reações do adversário e responder com ataques por cima dessas reações, mas os dois estão espertos e nenhum cai nessas pequenas armadilhas.

A plateia começa a vaiar, não vieram assistir dois lutadores se encararem por trinta segundos sem soltar nenhum golpe. A insatisfação cresce e as vaias começam a virar gritos que quase se tornam ensurdecedores.

--- ISSO É BOXE, NÃO É COMPETIÇÃO DE QUEM PISCA PRIMEIRO, SABIAM???? --- Um berro chama a atenção.

--- NUMA LUTA VALE DAR SOCOS, VIU??? --- Outro reclama.

Gustavo e Rodrigo fecham a cara e cruzam os braços, os dois estão claramente incomodados com os comentários idiotas e infelizes vindos da torcida. O cabeludo se vira pro seu colega lutador e começa a falar sobre sua insatisfação.

--- Idiotas que nunca tomaram um soco tão tendo a coragem de criticar algo que nem sequer entendem --- Sua raiva é visível --- O boxe é como o jazz. Quanto melhor fica, menos a maioria das pessoas consegue apreciar.

--- Esse tal Isaque não é um qualquer. Tá jogando com paciência e estratégia --- Rodrigo endossa --- O que mais me surpreende é o Davi estar conseguindo desempenhar uma luta dessa logo na sua estreia, ele não tem experiência, mas está se portando como um lutador calmo e cerebral.

--- Isso é verdade --- Gustavo abre um sorriso orgulhoso --- Quero ver o que ele tem para mostrar.

Os gritos da plateia aliados a tensão de estar lutando pela primeira vez, começaram a fazer Davi se sentir pressionado a atacar primeiro e assim ele o faz. Ele avança com a primeira sequência que aprendeu com Antônio, o clássico one two, que é um jab avançando e logo em seguida um potente e contundente direto.

O rapaz estava certo em estudar o oponente, errou apenas em começar a atacar antes que conseguisse ler claramente a intenção do rival. Isaque por sua vez não poderia deixar um erro Crasso destes escapar, ele sabia que o one two viria porquê os ombros de Davi o denunciaram. Isaque usa as luvas para bloquear o jab e desvia do direto. A rotação do direto foi exarcebada e isso deixou o flanco direito do atacante vulnerável, Cruza sabendo disso logo responde com um gancho curto e compacto que o atinge na linha de cintura.

Davi faz uma careta de dor e recua um passo tentando retomar o fôlego, o oponente aproveita a deixa e avança para a ofensiva. Vindo pela esquerda, ele solta um jab no rosto, mas Davi estranha que o golpe parece mais curto que o normal, a ponto de que o braço não se estende e não alcança o seu rosto. Sendo apenas um soco solto no ar.

Primeiro ele pensa que foi uma forma de Isaque medir a distância entre eles, mas asism que percebe um detalhe sua espinha gela e ele finalmente entende a motivação daquele jab curto. Tudo que consegue ver é o vermelho da luva e seu campo de visão fica totalmente impedido, assim que a luva sai, Davi não tem mais Isaque em seu campo de vista. Uma dor lacerante atinge novamente o seu flanco esquerdo e assim que olha para baixo, finalmente consegue ver e entender onde seu rival estava, já que vê outro potente gancho o atingindo.

Davi recua mais um passo sem conseguir respirar, seu diafragma com certeza está travado e a dor percorre todo o seu corpo. O próprio ato de levantar a guarda se mostra difícil e suas mãos insistem em querer abaixar por conta do peso que as luvas estão se tornando. Cruz mais uma vez avança contra o oponente com toda a velocidade que tem.

Isaque novamente atira um jab, mas este vem de baixo e em um ângulo nada ortodoxo. Tratavasse de um flickler, um jab mais alongado e vindo de direções diferentes do que os lutadores normalmente fazem, deixando assim uma tarefa mais difícil realizar qualquer defesa.

Davi fecha a guarda e sente a pancada atingir seus antebraços que ardem e incham, a ponto de que por conta das luvas de 12oz, usadas em competições, ele é capaz de sentir os nós das mãos do oponente o acertando. Se o sparring contra Gustavo o ensinara algo, é que quem não responde aos ataques do oponente acaba encurralado e sem possibilidade de devolver os golpes. Por isso o garoto mesmo sendo acertado pela chuva de flickers, joga um direto desengonçado por cima de um dos ataques do rival.

Golpes de encontro são aterradores porque são a força do seu golpe somados a força do oponente vindo em sua direção, sendo sempre momentos que podem virar ou mudar completamente um combate. O direto vindo por cima de um dos flickers vem com tudo e arremessa a cabeça de Isaque para trás e faz um jato de sangue voar pelos céus. O nariz daquele garoto atingido começa a soltar gotas de sangue que caem no tablado do ringue.

"Que mão pesada é essa? Você tem um tijolo dentro dessa maldita luva?" - Era apenas o que se passa na mente do garoto com o nariz ferido.

Cruz fecha um olho por conta da dor e trava por alguns segundos, era a brecha que Davi queria. Para os leitores que nunca quebraram o nariz, deixarei a explicação de que quando você quebra a cartilagem do nariz pela primeira vez na vida, sua visão nubla e a tontura o domina por alguns instantes, o que o deixa vulnerável. Por conta disso, a maioria dos lutadores normalmente acabam quebrando o nariz durante os treinos, para evitar que fiquem em problemas durante uma luta, porquê a partir da segunda vez que esse ferimento ocorre o corpo já está acostumado e não sofre essa vulnerabilidade. Alguns lutadores mais experientes até dizem que depois de uma determinada quantidade de vezes tendo esse machucado, já nem se nota que ocorreu, sentindo apenas o rosto ficar quente pelo sangue escorrendo.

Davi dispara contra o rival soltando uma chuva de golpes curvos que o atingem de todas as formas. Ganchos, uppercuts e cruzados laceram Isaque que apenas fecha a guarda e leva dano nos braços, antebraços e linha de cintura. A dor é insuportável e ele sente suas pernas tremerem, é o sinal de que seu corpo está sentindo e que cairá em breve.

" Eu vou...perder? Pra esse cara???? " - Cruz cerra bem firme os punhos.

Ele responde a surra que estava levando com um longo e largo balanço de um cruzado de direita, um golpe desesperados e previsível. Davi apenas dá um passo para trás de forma tranquila e observa o golpe passar no vazio. O juiz vem correndo rapidamente e separa os dois.

--- Fim do primeiro round! --- Ele sinaliza enquanto os garotos vão até seus respectivos treinadores.

🥊

--- Lutar cansa muito mais do que fazer sparring na academia! --- Davi diz ofegando com o rosto vermelho.

--- Isso é óbvio, pirralho, mas eu te treinei bem. Você tem físico o bastante pra isso! --- O velho diz o dando um pequeno gole de água. --- Você venceu o primeiro round, vamos manter assim. Só tome cuidado para não ficar apressado e afobado como no início da luta!

--- Mestre... --- O garoto se mostra inquieto e com as pernas tremendo. --- Eu tô muito cansado e meus antebraços tão fodidos. Eu não sei se consigo lutar igual o primeiro round de novo, eu tô me sentindo fraco.

Antônio se agacha e encara o garoto nos olhos, nenhuma palavra precisa ser dita, Davi entende bem o que foi dito sem o uso de palavras. O idoso coloca o protetor bocal do aluno e se levanta.

--- O covarde e o corajoso sentem o mesmo medo. O que determina o tipo de homem que você é, é como aje nesse momento. --- As palavras do treinador acertam o jovem boxeador em seu íntimo.

Estranhamente, sua mente apenas consegue lembrar do dia em que brigou contra o Mosca, consegue apenas lembrar da figura do boxeador cabeludo flutuando na ponta dos pés para o ajudar. Ele quer ser assim, ele quer ser forte para nunca mais ser pisado por ninguém, acima de tudo, ele quer conseguir lutar o boxe igual Gustavo o faz, uma proesa de habilidade e técnica que o fez se apaixonar pelo esporte. Não há espaço para o medo se quiser ser assim, ele deve renascer e agir diferente de todo modo que agia no passado e esta luta, este dia, este momento em cima do tablado do ringue seria sua prova de fogo. Era a hora de saber se realmente havia ocorrido alguma mudança em seu interior ou se era apenas palavras ditas no vazio e ele ainda era só um cara assustado fazendo pose.

Como um mantra, vem até a ponta de sua língua a frase que escutara na detenção. A frase que servira como um despertar para algo maior em sua mentalidade, as palavras que iniciaram a sua longa e demorada mudança de paradigmas.

--- É melhor lutar pelo seu espaço e ficar de pé o quanto aguentar, do que recuar por medo. Se recuar uma vez, vai recuar sempre. --- Davi diz confiante para Antônio. Era a frase que Gustavo o dissera e que sua alma jamais poderia esquecer.

No outro corner, Alfredo, o treinador de Isaque começa a medida de primeiros socorros. Um sangramento que não estanca rápido é motivo para que o juiz pare a luta por interferência médica. O treinador é um velho mexicano com o rosto fundo de magreza e cheiro de cigarro, com a voz rouca ele começa o seu sermão.

--- Vai perder assim???? --- O senhor diz enfiando um cotonete longo no nariz de Cruz que fecha um olho por conta da dor.

--- Não, já fiz muito, perder não é uma opção --- Isaque diz enquanto o cotonete sai da sua narina lavado de sangue --- Não posso me dar o luxo de ser derrotado. Não aqui, não agora.

--- Parei o sangramento, mas é temporário com toda a certeza. Se levar um soco em cheio no lugar, vai abrir de novo. Acabe com ele rápido.

Isaque segue concentrado, por mais que esteja em desvantagem e sendo derrotado, ele permanece frio e pensando no que fazer para mudar o rumo do combate. Nada o tira de seu transe mental, nada o abala, a única coisa que desvia momentaneamente sua atenção é um rosto feminino na plateia.

O moça tem sua idade e é uma garota alta e magra, com os cabelos tingidos de rosa. Ela olha atenta na sua direção e seu olhar aflito o atinge, é como se todo pavor e preocupação da garota pudesse ser visível e palpável. Cruz aperta o punho o mais forte que consegue e se levanta, trazendo para si aquele rosto preocupado como o combustível que precisara para seguir em frente.

--- Vencerei, custe o que custar. Eu prometi a Amanda que iria ganhar.

--- Então vá lá mostrar que tem palavra --- Alfredo solta essa frase enquanto sai do ringue.

Assim que o juiz anuncia o início do segundo round, os dois lutadores disparam com todo seu espírito para uma luta na curta distância. Isso contrasta imensamente do início do primeiro round, onde se mostraram cautelosos e estudando as possibilidades de ações do adversário. Davi já chega disparando ganchos curtos e afiados logo depois de desviar em pêndulo de alguns cruzados.

Cruz é atingido, mas não recua desta vez, ele junto dentro de si toda a fúria de seu coração e a usa para revidar. Um longo balanço de um uppercut vindo bem de baixo atinge o queixo de Davi, que tem a cabeça arremessada para trás. A tontura o atinge, mas não é o suficiente para o abalar ou enfraquecer mentalmente, o rapaz não deu nenhum passo atrás desde o início do round.

" É melhor lutar pelo seu espaço e ficar de pé o quanto aguentar, do que recuar por medo. Se recuar uma vez, vai recuar sempre. " - Segue repetindo mentalmente para si, a todo instante que consegue.

Davi balança a cabeça para recobrar os sentidos e segue avançando como um touro, com apenas passos para frente. Muito mais cru do que estava lutando no primeiro round, sem fintas ou cortes de ângulos pelas laterais. Se resumindo a andar contra o adversário, defender o que consegue e responder com o máximo de força possível no momento. Havia se tornado uma batalha de coragem.

" Só ande em frente! Só para frente!" - Davi convence a si enquanto avança contra a chuva letal de flickers que o acertam sem nenhum tipo de piedade.

" Esse moleque é doente!!! Quer morrer por acaso? Engolindo socos assim... mas se quer morrer, eu te mato! Só não vou perder na frente da Amanda!" - Cruz reflete enquanto se enche de más intenções, para atingir Davi com mais seis flickers no rosto.

A face do boxeador baixo começa a inchar, mas não é o bastante para parar sua investida incessante. Ele segue sendo atingido até Cruz ficar encurralado nas cordas de tanto recuar. "Agora é minha vez", ele brada avançando com mais socos curvos na horizontal e vertical que atingem Isaque com tudo. O lutador encurralado sente como se tivesse sendo atropelado por um caminhão graças a potência dos socos, é quase como se estivesse sendo acertado por um saco de cimento.

Isaque segue focado em cobrir o nariz para não voltar a sangrar, isso o deixa exposto na linha de cintura, que é onde Davi busca como próximo alvo. Um gancho tira os dois pés de Cruz do chão e o arremessa com extrema violência contra o solo do ringue. O juiz rapidamente vem correndo e separa os dois.

--- CHUPA, FILHO DA PUTA!!!!! --- Raul berra extasiado. --- VAI DORMIR COM O COURO QUENTE HOJE!

--- BOA, MOSTRA PRA ELE, DAVI!!! --- Helena não se contém e se entrega a euforia.

O árbitro inicia a contagem próximo a Isaque que segue ajoelhado se contorcendo de dor. O jovem boxeador sente o corpo pesar e derreter, seus músculos inferiores teimam em não o obdecer. A dor é lacerante e ele sente seus órgãos internos pulsarem, é a maior agonia e sofrimento que já havia sentido durante toda a sua trajetória nos ringues.

--- 1.... ‐-- O juiz começa a contagem.

--- E não levante, arrombado!!! --- Raul segue externalizando sua raiva.

Isaque tenta se levantar, mas seu joelho falha e ele volta a ajoelhar, soltando um urro de dor. O boxeador agoniza e sente a mente falhar, sua consciência oscila e vacila, porém ele dá tudo de si para se manter são, sabe que qualquer descuido pode acabar virando um desmaio.

--- 2!!!!! --- A contagem prossegue.

" Aqui é o único lugar onde me sinto aceito e eu mesmo, é onde eu sinto que sirvo para algo. Finalmente sou bom em alguma coisa! Eu vou... perder? Eu não sou bom como pensei? " - Cruz sente sua vontade murchar e diminuir a cada instante, a dor a cada segundo o domina mais e mais.

--- 5!!! --- Sua mente falha e quando ele volta do devaneio causado pelos machucados, nota que mais segundos se passaram.

Ele usa toda sua força restante para tentar ficar de pé, suas panturrilhas parecem que vão explodir e seus quadriceps parecem que vão rasgar a qualquer segundo. Até que seus membros inferiores novamente falham e seu corpo volta ao solo com uma velocidade tremenda.

" Por favor... fique caido, não levante! Eu preciso ganhar, eu tô cansado pra caralho! " - Davi torce silenciosamente enquanto começa a sentir os efeitos dos danos acumulados durante o combate. Seu olho direito está inchado de tanto levar flickers e seus antebraços estão vermelhos e roxos de tanto fazer bloqueios. Seus pulmões ardem e parecem querer sair pela boca, ele ofega e sente os sintomas da exaustão extrema.

" Vagabundo! Delinquente! Sem futuro! É só o que me diziam. Até que achei o boxe, o lugar perfeito para alguém como eu! Onde mais me elogiariam por acertar alguém na cara? Achei que fosse bom nisso... levar uma surra para um merdinha como esse... " - Toda a frustração do mundo acerta Isaque, que entra em um estado de negação e começa a se sentir derrotado.

--- 7!!!!! --- O Árbitro segue falando.

"Aceitação? Tô lutando pra gostarem de mim? Pra deixar de ser o garoto problema e ser alguém que os outros conseguem admirar e elogiar por algo? Que patético... que carente! " - Cruz segue se impondo um martírio pesado, mas que não consegue superar o peso da uma tonelada que seu corpo pesa agora.

Se as coisas seguissem como estão indo, seria uma derrota certa e esperada, mas um fator fora dos planos ocorre e muda tudo. Amanda finalmente rompe o silêncio e faz sua voz se alastrar por toda a arena, principalmente no coração de Isaque, que era quem mais precisava a ouvir.

--- Levanta, meu amor! Eu não posso aceitar ver você perder por se render a dor! Você não é assim!!!! --- Ela berra com tudo de si, deixando seus pulmões rugirem todo o misto de emoções que entorpecem sua alma --- Mostre a eles o Isaque que eu conheço, o que ninguém realmente consegue ver! Mostre que você é mais do que o que eles esperam!

--- 8! --- O juiz grita.

Isaque cerra o punho e usa cada gota de si para tentar se reerguer, cada molécula do que restou de sua energia grita uma ode de fúria e vontade recuperada. Seu olhar muda, é como se ele nesse exato momento fosse mais do que jamais foi antes, é como se uma dose de força além de seu limite tivesse chegado em seu coração. Amanda acabara de compartilhar com ele toda a sinfonia de sua alma e os dois agora estavam emanando uma só vontade, um só destino e um só objetivo: Lutar o quanto fosse necessário para vencer!

Cruz consegue ficar de pé faltando um segundo para o fim da contagem, o juiz o olha com desconfiança e parece estar indeciso de deixa o combate continuar ou não. Ele segue analisando o boxeador ferido e não sabe o que decidir.

--- Você está em condições de lutar?

--- Sai do caminho, tá na frente do meu oponente --- Isaque coloca o protetor bocal e vai na direção de Davi, enquanto tira o juiz de seu caminho.

"Lutar pros outros gostarem de mim? Não, nunca foi isso. Que se fodam todos. Eu luto pra ser o cara que ela pensa que eu sou! " - Isaque sorri vendo Amanda abrir um largo sorriso por o ver de pé.

Agora era a hora da retribuição por todos os socos que levou, Isaque avança contra Davi com um ímpeto imensurável, mas assim que os dois entram na distância o suficiente para se socarem, o juiz entra entre eles e os afastam com um movimento veloz.

--- Tempo! Fim do round 2. Vão para os seus corners.

E assim os dois gladiadores se dirigem em direção a seus professores, para descansar e receber instruções para o último round. Deixando um clima tenso no ar, uma atmosfera de morte e uma plateia petrificada por conta das fortes emoções, onde todos se entregam ao silêncio e ansiedade pelo que virá a seguir nesta luta. Os próximos três minutos decidirão o resultado desta intensa batalha.

🥊

Antes de suas lutas, Isaque sempre fica tenso e nervoso, a concentração custa a vir e sua mente insiste em o sabotar. Pensamentos de fraude e impostor sempre o abalam e ele teme não ser quem sonha em ser um dia. Ele sempre acaba se pegando preso na ideia de que ninguém nunca o elogiou ou admirou, onde sempre acabou reduzido a alguém que não levam a sério ou que não esperam coisas boas. Se algo sumisse, seria ele quem acusariam de roubo, se algo quebrasse seria nele que colocariam a culpa. Isso sempre o isolou e colocou na posição de inimigo, na posição de "não se aproximem de mim ou vou fazer com que se arrependam".

Essa casca foi útil para evitar que o machucassem ainda mais, mas o deixou sozinho. Nenhum homem é uma montanha de si mesmo, inconquistável. Assim como nenhum homem é uma ilha isolada de si mesmo, Isaque não tinha a solitude, mas sim a pura e dura solidão. Era um rapaz só e segregado por opção própria e imposição alheia. Esse era o seu sofrer.

Mais cedo neste dia, antes do início da luta contra Davi, ele estava ainda mais agitado do que de costume e tentava aliviar a tensão jogando socos no ar. Flicker voam e cortam o ar, emando um som cortante que invade todo o silêncio do vestiário. Seu corpo treme de ansiedade e sua mente grita por conforto, que não virá.

Ao menos era o que pensara, até que Amanda entra no vestiário e o abraça por trás. Ele mesmo sem olhar ou notar a chegada da garota, pôde perceber quem era no exato momento em que recebeu o abraço, a textura da pele de sua amada era uma sensação inconfundível e prazerosa para seu corpo. Era um abraço que ele jamais poderia esquecer de como era.

--- Tá fazendo o que no vestiário masculino?

--- Vim apoiar o amor da minha vida antes de uma grande luta --- Amanda fala com a voz doce --- E como só tem ele aqui dentro, não acho que vá dar problemas. Sei que ele é ciumento e tal, por isso já deixo avisado que não vi nada de ninguém!

Ela sorri e deixa uma gargalhada ironica escapar, Cruz sente o rosto esquentar de vergonha, mas se esforça para manter a postura de durão, que só ela sabe como quebrar.

--- Eu não sou ciumento. --- Sua voz escapa tímida.

--- É sim, mas eu acho isso fofinho.

--- Eu não sou fofo! --- O boxeador reclama --- Eu bato em gente por esporte!

--- Então é um ursinho fofo brigão. --- Responde ironizando.

A presença de Amanda sempre o acalmara em qual situação e ela sempre foi a melhor coisa em sua vida desde que conseguia se lembrar, no mar de merda e frustração que vem sido seus anos, a garota sempre foi um farol e um lembrete de que tudo poderia dar certo no final, desde que ele a tivesse do seu lado. Ela o abraça mais apertado e começa a passar a ponta dos dedos em seu peito, enquanto segue o abraçando por trás.

--- Nervoso de novo para lutar? Achei que agora que é a sua terceira vez lutando já teria acostumado. --- Ela diz encostando a bochecha nele.

--- Lutar é a parte fácil, eu faço desde que nasci. Meu medo é de que tirem o boxe de mim, é a primeira vez que sinto que um lugar me pertence, onde me encaixo. Dentro das quatro cordas eu sou eu sem amarras.

--- O boxe é seu para se expressar como quiser. Ninguém pode roubar isso de você.

--- Você não entende. É a primeira vez que me sinto bom em algo, é a primeira vez que eu consigo ser eu e as pessoas esperam coisas boas. Eu não quero perder isso, eu não quero estragar tudo e voltar a ser visto só como um delinquente qualquer. --- Isaque respira fundo --- Eu tenho medo de que eles finalmente consigam enxergar a merda que eu realmente sou.

Amanda o larga e o obriga a se virar para ela, a garota o agarra pelas mãos e o encara nos olhos com seus olhos azuis, que para Cruz sempre simbolizaram o mar azul cristalino, sem mentiras, puro como só ela poderia ser. A menina o encara com todo fervor de seu coração e começa a dar uma bronca nele, com a voz ríspida e tom seco.

--- Eu já te disse que se o boxe é o que te faz feliz, vá fundo com isso! Se expresse e aja lá em cima da forma que te faz feliz! Sem querer agradar pessoas que nem conhece! --- A raiva dela atinge o ápice --- E que sorte as pessoas teriam se elas pudessem ver você ser você mesmo! Se elas te vissem como eu te vejo, porra! --- Ela retoma seu raciocínio remendando o que ele disse --- "A merda que realmente sou", nunca mais repita uma coisa como essas. Sortudos seriam se pudessem realmente enxergar você de verdade, por baixo dessa casca que você insiste em ter. Essa muralha intransponível que o afasta de todos.

--- Amanda... eu realmente gostaria de poder ser essa pessoa bonita e boa que só você enxerga em mim. Talvez eu nunca consiga ser, mas vou tentar ser o máximo que conseguir, por você!

Ele a abraça firme e rouba um beijo, ela fecha os olhos e retribui o afeto. É como se os dois tivessem parado no tempo, o curto beijo de seis segundos para eles durou como se fossem seis anos, não havia nenhum outro lugar no mundo onde gostariam de estar, queriam que aquilo durasse para sempre.

--- Posso te pedir uma coisa, meu amor?

--- Você sempre pode pedir o que quiser, princesa. Sempre, eu te amo.

--- Corta esses papos de impostor e vence por mim, ok!?!

Isaque abre um sorriso e sente a perna lentamente para de tremer.

--- Eu vou, custe o que custar!

🥊

O último round da luta se inicia e Isaque toma a dianteira. Ele corre atacando Davi com socos sem técnica, já se passou o tempo disso, agora era a hora de socos que servem como gritos da alma. As pancadas atingem o garoto baixinho que sente os joelhos falharem rapidamente, mas consegue permanecer de pé.

Davi por sua vez responde com uma sequência de dois cruzados de esquera e um gancho de direita no estômago, a pancada é tão bem encaixada que a dor que Cruz sente é similar a de ser esfaqueado. O garoto sengue na ofensiva e atinge Isaque com dois jabs e um direto, que são o bastante para que o rival recue cambaleando.

" Eu perdi os dois rounds para esse puto. Se for pros pontos eu tô fodido! Eu tenho que nocautear ele, eu prometi pra Amanda!" - Isaque pensa sentindo a dor percorrer todo o seu corpo.

Só que isso não é o suficiente para o intimidar, Cruz volta a avançar e ataca um direto no estômago de Davi, que se esforça para não colocar o almoço para fora. O protagonista finca os pés no chão e ataca um uppercut malicioso bem no nariz de Cruz, que é atingido em cheio e sente uma gota de sangue cair. Ainda não foi o bastante para abrir o sangramento, mas foi o suficiente para que deixasse o lugar extremamente sensível, a ponto de que se Davi apenas triscar lá já vai ser o suficiente para que uma cachoeira jorre.

"MERDA! MERDA! MERDA! LOGO AGORA, PORRA?!??! AGUENTA MAIS UM POUCO CORTE FODIDO!" - O lutador tatuado bradeja e amaldiçoa mentalmente.

Davi segue na ofensiva e acerta mais três ganchos na linha de cintura, mirando no fígado, rins e baço. É uma dor descomunal e o corpo de Isaque sente um choque percorrer toda sua espinha quando é atingido. Sua força de esvai e ele tem a sensação de estar flutuando, graças a seus receptores de dor que a essa altura da luta já estão anestesiados.

--- Isaque!!!!! --- Amanda bate no alambrado que separa a torcida do ringue.

"Não precisa se preocupar, meu amor. Eu detesto ver você nervosa" - Isaque pensa enquanto despenca em direção ao solo - "Nariz fodido, pernas mortas. Se ele acertar meu rosto vou praticamente ter uma hemorragia, se eu cair não tenho perna pra levantar. Eu já era... desculpe não conseguir cumprir a promessa!" - Tombando para frente, ele vê o chão a poucos centímetros do seu rosto - "Não! Que se foda isso!"

Isaque agarra Davi e clincha, usando o rapaz como moleta, o que o impede de cair. Assim que o tatuado consegue apoio, ele usa suas luvas para segurar os antebraços de Davi, e logo em seguida sobe o cotovelo igual uma navalha em direção ao rosto do rival, de forma discreta.

A cotovelada atinge o supercilio de Davi rapidamente, um som seco e alto ecoa pela arena, o suficiente para que todos entendam que foi uma bruta pancada. O juiz se aproxima e faz os dois se afastarem e largarem o clinch. Assim que se solta do seu rival, Davi começa a sentir um ardor acima do olho e sua visão fica completamente vermelha no lado esquerdo.

Trata-se de um imenso corte em formato de meia lua que começa acima de sua sobrancelha e corre até o meio do seu nariz. O sangue que jorra vem em jato e escorre como uma imensa cachoeira. Ao ponto da gola e uma parte do peito da camisa mancharem de sangue, que não para de descer. Aos olhos leigos que viam a luta, a cotovelada nunca ocorreu por ter sido desferida de forma sutil e discreta durante o clinch, mas para Gustavo e Rodrigo ficou óbvio o que realmente ocorrera.

--- Caralho! Que trapaceiro filho da puta! --- Rodrigo xinga sem se controlar --- Que sujeitinho sujo!

--- O pior é que se o juiz não viu a cabeçada, o Davi vai perder por interrupção médica! --- Gustavo sinaliza fora de si, algo raro de se ver --- Isso é injusto pra caralho!

--- Venha cá! --- O Árbitro chama Davi.

O garoto se aproxima e um médico entra no ringue e começa a ver o ferimento usando uma lanterna. O senhor cutuca o machucado com cotonete e usa vaselina e outros medicamentos no lugar, mas nada do sangue parar de escorrer, é um corte muito profundo. Davi segue o encarando com cara de desespero como quem implorasse para que ele fizesse algo, como se esperasse uma milagrosa solução vinda dos céus.

--- Vou ter que parar a luta --- O homem comenta --- Isso tá muito feio.

--- Não! --- O desespero domina Davi que começa a berrar enquanto gesticula freneticamente --- Eu te imploro, por tudo que é mais sagrado, não para a luta. Eu me esforcei pra caralho! Eu preciso disso, eu tô vencendo! Eu vou ganhar essa luta! Faltam só um minuto pra acabar! Não para agora, por favor!

--- Desculpe, rapaz. É pro seu bem. --- O médico faz um sinal pro juiz

O árbitro se aproxima do meio e chama os dois rapazes para o centro do ringue, ele segura uma mão de cada lutar e começa o anúncio oficial do resultado do combate.

--- Por conta de uma interrupção médica, Davi Nogueira não está em condições de seguir lutando, portanto... a vitória é de ISAQUEEEEE CRUZZZZZZZ!!!!!!! --- O árbitro diz levantando o punho de Cruz, que sorri com a vitória, sem se importar com a chuva de vaias que a plateia solta para ele.

--- Isso não é justo! Ele me bateu com o cotovelo, isso é falta! --- Davi começa a berrar enquanto tenta ir na direção do juiz, mas uma mão vindo por trás o segura e impede.

Assim que se vira para ver quem é, o garoto vê Antônio o segurando. O mestre está visivelmente frustrado, mas mantém a postura e o decoro, encarando o garoto com um olhar firme, mas acolhedor. Como um ex lutador ele era capaz de entender toda a dor e frustração que se passa no coração do seu aluno.

--- Davi... ele atacou no ângulo que o juiz não tinta como ver, era um ponto cego --- Antônio segura o garoto com as duas mãos nos ombros --- Aquele cara sabia o que tava fazendo, foi proposital. Não tem nada que possamos fazer, só lamber as feridas e voltar mais fortes.

--- Mestre, isso é tão... injusto... --- Davi se entrega as lágrimas e começa a chorar, pouco se importando com quem está olhando.

E assim termina a primeira luta de Davi, um show de ímpeto, vontade, desenvolvimento pessoal e um frustante desfecho, que serviu para o rapaz como um lembrete de que ainda havia um longo caminho a percorrer, e que o mundo fará de tudo para o impedir, lhe restando apenas que siga seu caminho até vencer, por mais difícil e frustante que seja!

🥊

Após vinte minutos depois do desfecho da luta, Davi seguia sentado na arquibancada com seis pontos costurados no rosto para remendar o corte que sofrera. Desde que perdeu, ele preferiu se isolar e não conversar com ninguém, para tentar processar o tsunami interno que estava passando. Até que Miguel se aproxima e senta do seu lado. O clima fica estranho, pois fica evidente que os dois querem dizer algo, mas não sabem como começar.

--- Você lutou bem --- Miguel inicia o diálogo.

--- E adiantou de quê? Perdi independente disso.

--- Ganhar ou perder não é tudo. Você lutou com tudo de si. Estou orgulhoso.

Essas palavras mexem com o garoto, mas não são o bastante para o tirar da espiral de emoções catastróficas que está sentido, mas ao menos serviu de um pequeno alívio para seu coração, que ainda segue machucado e inundado de emoções ruins e destrutivas.

--- Me desculpe por perder. Você faltou o trabalho pra vir aqui e eu decepcionei.

--- Não fale isso, você não me decepcionou. Você foi bem pra caralho! Nem consegui te reconhecer lá em cima, aquele garoto assustado e isolado simplesmente não existia. Eu pude ver meu filho brilhar com tudo que tinha, eu não poderia estar mais feliz!

--- Obrigado, pai. De verdade, mesmo, significa muito pra mim. Só que ainda é frustante que tudo termine como terminou. Tanto esforço e abdicação no lixo por uma trapaça.

O silêncio constrangedor volta a reger a interação entre os dois, pessoas que nunca passaram por isso com certeza diriam muitas coisas nessa hora, mas por os dois serem lutadores e por saberem exatamente como é ruim essa situação, eles entendem que nada que possa ser dito poderia aliviar esse sentir sofrido e truncado. Apenas o tempo pode curar.

--- Se eu fosse mais forte, meu soco no segundo round teria nocauteado. --- Davi range os dentes --- Se eu não fosse fraco...

--- Ninguém disse que o caminho era fácil e nem reto. Há os pequenos declives e desvios, mas o final ainda é o mesmo, ser campeão. Sei que um dia irá conseguir, desde que continue andando, por mais que ainda doa. O caminho do vencedor é repleto de dor e sofrimento, o único jeito de chegar ao final, é seguir em frente. Como fez na sua luta. Eu sei que você é capaz disso.

Miguel levanta e acena com a cabeça, logo depois se afasta e volta para perto do ringue para ver mais lutas. Davi segue sozinho naquele pedaço afastado da arquibancada, entregue e imerso nos próprios pensamentos. Até que ele é interrompido por um segundo momento, desta vez por Helena que vem e senta do seu lado, o encarando com preocupação e pesar.

--- Desculpe quebrar minha palavra. Eventos de lutas casadas só dão medalhas pro vencedor, então fiquei chupando dedo nessa. Não vou poder te dar a medalha que disse que daria.

--- Que se foda a medalha --- Ela responde séria --- O que me importa de verdade é saber como você está. Você tá bem?

--- Eu pareço bem? --- Ele ironiza para tentar aliviar o clima.

Helena segura sua mão e o encara nos olhos, a garota suspira e parece tão abatida quanto Davi. A situação foi ruim e frustante para todos que se importam com o rapaz e querem o seu bem.

--- Tem algo que eu possa fazer pra te fazer sentir melhor? --- A garota diz delicada.

--- Não há nada que possa ser dito ou feito pra mudar o que rolou, só me resta aceitar. Vou voltar mais forte e isso nunca mais vai acontecer, não vou deixar.

--- Tem certeza que não tem nada mesmo que eu possa ajudar?

Davi faz silêncio por um tempo e fica pensativo, quase concentrado como um monge meditando, até que finalmente responde a pergunta da garota.

--- Não, acho que não.

--- Nem mesmo matar aquele trapaceiro? --- Ela brinca.

--- Ah, isso seria de grande ajuda --- Ele corresponde a brincadeira, o que torna o clima mais leve. Os dois gargalham juntos e por um pequeno instante, a dor emocional do rapaz dá espaço a uma felicidade momentânea de desfrutar de uma boa companhia.

🥊

O pós luta de Isaque foi terrível, até mesmo pior que o de Davi, que por mais que teve danos emocionais e físicos sérios, nem sequer se comparam aos danos que o corpo de Cruz levara, a surra que tomou durante os três rounds foram um duro castigo. Isso se refletiu quando o tatuado foi urinar no vaso, que ficou manchado de vermelho por conta do sangue presente no seu mijo. Ele sente uma dor forte e latente nos órgãos internos, é o suficiente para saber que algo não está certo e que uma visita ao médico será necessária o mais breve possível.

Assim que sai do banheiro, o boxeador dá de cara com Amanda, que o aguardava na porta. A garota solta um olhar julgador e desdém e nojo são o que descrevem sua expressão facial. Esse olhar machuca Isaque mais do que qualquer soco que recebeu, e ele sabe exatamente o motivo do porquê sua namorada o encara desta forma.

--- Que merda foi essa durante sua luta? --- Ela diz com a voz embargada.

--- Eu venci como te prometi. Só isso.

O silêncio se alastra e eles conversam sem dizer nada. O garoto não aparenta arrependimento pelo seu ato, mas demonstra dor e mágoa pelo jeito que Amanda o olha, é torturante que ela o encare como todos sempre o fizeram. Quanto a garota, seu silêncio comunica decepção e a percepção de que a visão que ela tinha sobre o namorado estava errada, e que talvez o homem que ela idealizava não passava de uma ilusão.

--- Talvez você realmente tivesse certo todo esse tempo quando disse que não era quem eu imaginava.

--- Talvez... --- Isaque responde com pesar. --- Eu me expressei como eu sou e agora você me vê exatamente como todos veem. Apenas ocorreu o que sempre ocorre.

--- Eu queria que você estivesse errado sobre isso. --- Ela diz com a voz triste.

--- Eu também. --- Responde e os dois seguem em direções opostas. --- Eu também...

Contagem de palavras: 8791
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Notas do autor:

Oficialmente o maior capítulo até o momento!!! Esse é um recorde que eu to quebrando bastante ultimamente, mas não é minha culpa, os personagens vem ganhando vida e mais detalhes além do planejamento acabam surgindo enquanto escrevo. Ai quando vejo, já fiz capítulos monstros imensos como esse, espero que não achem massante.

Já escrevi muito, então não vou me alongar muito nas notas desta vez, deixarei só uma pergunta: O que acharam do capítulo? Tomara que tenham gostado!

Vejo vocês no próximo? Até mais. Coloquem suas luvas e nos vemos no próximo round!!!!!

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