Round 14: Gustavo
Este round é no passado, o passado do Gustavo mais especificamente. O garoto perdeu os pais aos 12 anos e isso fez o seu mundo cair. Por mais que sua tia Roberta e prima Helena cuidassem muito bem dele, ainda havia um espaço e buraco que jamais seriam preenchidos, não importando o quanto tentassem.
Ele é grato as duas por tudo que fazem, mas elas não são seus pais, nunca poderão ser e isso é uma dor difícil para uma criança tão nova processar. Desde o falecimento, Gustavo deixou de ser quem era, a criança feliz, animada e forte deu lugar para um jovem apático, robótico e melancólico.
O cabeludo faltava a escola, não se alimentava como deveria, tirava as piores notas possíveis e vegetava na cama por dias inteiros, totalmente alheio ao mundo lá fora e qualquer outra coisa. Roberta morria de preocupação em ver o sobrinho em tal estado, já não sabia mais ao que recorrer, havia tentado psicólogo, o colocar em algum esporte como hobbie e até mesmo o levar para visitar o túmulo de seus pais, mas nada demonstrou qualquer resultado ou efeito. A espiral de declínio do rapaz continuava e piorava a cada dia.
A única coisa que aparentava dar um pequeno sinal de melhora era a visita de seu amigo Daniel, que frequentava a mesma classe e o conhecia há um bom tempo. Este amigo o visitava todo dia após as aulas e o trazia as lições do dia quando faltava, além de ser o motivo de Gustavo ir nos poucos dias que ia para a escola, já que o amigo vinha o buscar na porta de manhã cedo e não se dava por vencido até o cabeludo o acompanhar.
Daniel era um garoto franzino, de cabelos curtos e lisos, usava um grande óculos fundo de garrafa que tinha um tamanho desproporcional em relação ao seu pequeno rosto. Ele adentra o quarto de Gustavo e visualiza um cenário digno de guerra, as roupas estão espalhadas pelo chão e algumas estão sujas, deixando o ambiente com um cheiro desconfortável. A cama está desforrada e há restos de lanche e embalagens por toda parte, no meio de toda essa imundice está Gustavo deitado de bruços e largado, respirando pesadamente imóvel.
— Seu quarto tá parecendo um chiqueiro — Daniel reclama em pé vendo o estado patético do amigo — E você tá fedendo. Seu quarto tá fedendo, tudo aqui tá fedendo. Vamo, é hora de levantar.
— Não enche — Gustavo esbraveja sem se mover, permanecendo naquela pose de derrota.
— Eu encho sim, ô se eu encho! — Ele cruza os braços e se aproxima mais — Você é meu amigo e eu tô preocupado. Você vai levantar, tomar banho, arrumar o quarto e se alimentar. Nem que eu tenha que te segurar a força e dar banho no chuveiro vendo sua bunda pálida, e depois te fazer comer com aviãozinho na boca igual criança e velho caquético.
Gustavo suspira, ele sabe que não é uma piada ou brincadeira, Daniel realmente acabaria fazendo essa situação vergonhosa se fosse o necessário para o ver melhor. O cabeludo então resolve levantar, ele faria de tudo para evitar essa situação desconfortável e bizarra.
— Pronto, tô de pé. Satisfeito?
— Banho, você tá fedendo a morte. Parece que um gambá morreu de baixo do seu braço.
— Entendi, entendi – Gustavo reclama — Não precisa humilhar também, cara.
— Agora — Daniel diz autoritário.
O cabeludo assim acata e anda em direção ao banheiro, ele suspira e entra embaixo do chuveiro. É bom ter um momento sozinho com seus pensamentos, sem toda a preocupação e adulação dos outros ao seu redor, não julgue errado, é bom o cuidado e preocupação, mas nem de longe é o que o rapaz quer nesse momento, ele só quer sentir e processar o que sente, no tempo que precisar.
A água toca seu corpo e a sensação é boa, é como um grande abraço quente e carinhoso, um abraço que desejava de seus pais e que nunca mais vai conseguir ter. Ele passa longos momentos no banho, é onde seus pensamentos não o martelam todo tempo, é onde sua mente não o tortura com um sentir pesado a todo momento. Ele não entende se essas emoções são tão difíceis de lidar porque é novo de mais ou se algum dia esse sentir pesado vai passar, ele não quer entender, ele não quer sentir, apenas quer que passe, se é que é possível passar.
Feridas abertas doem, e essa que ele tem no coração definitivamente está aberta, recém cortada. É uma dor renitente e expressiva, que dói e pertuba sem parar. Por mais que feridas se fechem, ainda ficam as cicatrizes e ele sabe que esta será uma grande cicatriz que o marcará e deformará de modo irremediavel e imutável por toda sua vida, será uma marca e um lembrete de uma ausência prematura e importante no alicerce no seu ser. Só resta colocar remédio, sentir e tentar colocar algum brilho na cicatriz, para que não seja tão feia, tão dolorida e marcante, para que um dia um sorriso possa iluminar seu rosto novamente, ele faz suas tarefas do dia a dia como pode, dando o que consegue fazer, para que se recupere do jeito que der, para não desistir de si e acabar com ideias perigosas, que possam levar a atos precipitados e impensados.
Após a longa e demorada sessão de pensamentos no banho, ele volta para o quarto e o acha um brinco, totalmente arrumado e organizado, com tudo catalogado, forrado e limpo. Daniel está sentado na mesa de estudos, com um olhar de entediado por esperar tanto, ele se vira para Gustavo e começa a reclamar.
— De nada, mal educado. Limpei sua imundice, mas na próxima é você. Se desleixe assim não. — Ele segue dando sermão enquanto chama seu amigo para sentar do seu lado — E bora estudar que tão doidos pra te reprovar por falta e nota merda. Trouxe a lição de casa, senta a bunda murcha aqui e vamo resolver essas contas.
— Sim — Gustavo solta um sorriso tímido e grato, é bom ter um amigo igual Daniel em um momento como esse — Vamos resolver umas equações.
🥊
Quando não estava afundando em si mesmo e em pensamentos ruins, o jovem Gustavo naquela época oscilava entre dois tipos muito específicos de companhia: a primeira muito boa e solidária de Helena, Roberta e Daniel, já a segunda sendo uma má companhia de projetos de delinquentes que atendem por Catraca, pirulito e Vida mansa.
Esses três jovens são cerca de 2 a 3 anos mais velhos que o garoto e a sua companhia proporciona a ele adrenalina e uma falsa sensação de poder, não é muito, mas para ele já é melhor do que a tristeza que sente todo o tempo. A questão é que os hábitos e condutas destes rapazes mais velhos não são nem de longe agradáveis ou louváveis, e a cada minuto que Gustavo passava com eles, apenas ia se corrompendo mais e mais. Terminando por fazer coisas que dificilmente o seu eu de alguns meses atrás faria.
O líder desta corja é o Catraca, que é um repetente incorrigível, sendo desleixado com o visual e ainda mais alheio as questões academicas. Ele é o mais velho do grupo, já tendo algumas espinhas como prova do estado mais avançado na vida que está. Catraca é extremamente alto e corpulento para a idade e se usa disto para através da violência conseguir sua diversão duvidosa.
Pirulito, como o próprio apelido já diz, é um rapaz muito magro, porém com um crânio totalmente desproporcional em relação ao corpo. Ele não é forte e nem muito inteligente, acabando sendo uma Maria vai com as outras, apenas para não ser o alvo do próprio grupinho que participa.
Vida mansa por sua vez é um garoto muito gordo, a ponto de que ninguém nunca o viu saltar ou correr, tendo até mesmo apostas de que se ele é capaz de realizar tais atos. Sendo extremamente preguiçoso e guloso, sua vida se resume a dormir o dia inteiro, até mesmo nas aulas, e a roubar o lanche dos rapazes mais novos que ele. Sem nenhum tipo de moral ou remorso.
Esse trio tem sido a companhia recorrente de Gustavo após as aulas, e desta vez o quarteto está reunido na frente do banheiro da escola que estudam. Vida mansa parece entediado e sonolento, enquanto Pirulito exala tensão e nervosismo. Gustavo pernanece frio olhando para o líder Catraca, que abre a sua mochila e mostra uma bomba extremamente grande.
--- Caralho! Isso aqui é praticamente uma dinamite! --- Pirulito diz hesitante --- Não, isso ai é praticamente uma bomba nuclear!
--- Não é pra tanto, chorão. É só uma bomba de mil, daquelas do São João. Apaga poste e os carai --- Gustavo explica.
--- O que vamos fazer com ela? --- Burro como é, Vida mansa diz confuso.
Um sorriso sádico se abre no rosto de Catraca, que segue observando atentamente os seus subordinados que aguardam uma resposta. O garoto mais velho tira um esqueiro do bolso e a reação dos demais é de hesitação.
--- Nós vamos explodir a privada --- Catraca diz como se não fosse nada --- Essa escola maldita me paga, vai chover merda!
--- Hehe, vai chover merda e a vadia da zeladora vai se foder pra limpar! --- Vida mansa endossa --- Pra aprender a não me encher o saco com as embalagens do que eu como. O lanche é meu! Jogo onde quiser depois.
Gustavo entra em um dilema moral, estudara a vida inteira praticamente nesta escola e conhecia há tempos a tal zeladora, Dona Mirna. Ela sempre foi carinhosa e cuidadosa com o rapaz, ainda mais após a morte de seus pais, dado o período ruim que estava passando. Por outro lado, seu coração estava enlameado com toda a raiva e revolta que podia sentir, não era justo que perdesse seus pais assim do nada, o rapaz se corroia de raiva e essa raiva era expressada sendo o flagelo do mundo.
Mesmo que a sensação após os tais atos não resolvesse nada de verdade, pelo menos por um breve instante ele acabava se sentindo no controle de algo, "não sou a vítima, eu que faço o que quero", isto de algum modo o fazia se sentir menos impotente por nem sequer poder ter visto os pais uma última vez antes da morte. Tais pensamentos negativos estavam embriagando seu julgamento e ultimamente ele sempre acaba optando pelo pior caminho. Em um caminho turbulento de más decisões.
E esta foi mais uma delas, os quatro entraram no banheiro e posicionaram a bomba em cima da tampa do vaso e acenderam, logo depois fugindo do local às pressas com uma carreira descomunal. Deixando para trás apenas um barulho de estrondo ensurdecedor, sons de água jorrando, azulejos quebrados e um prejuízo para a escola.
Ao longe, o coração de Gustavo cavalgava no peito extremamente acelerado, seu rosto se iluminava com um sorriso cruel, mas caloroso. Ele estava farto de receber pena, era só o que sua tia e prima lhe davam, também estava farto dos conselhos de biscoito da sorte do Daniel. Não, chega! Era isso que ele queria fazer agora, descontar no mundo tudo de ruim que sente, ele quer se divertir e sentir seu sangue ferver, não mais um pobre coitado qualquer, mas sim alguém no controle. Um péssimo controle.
🥊
Daniel estava atrevessando o vasto corredor da escola em direção ao laboratório, para assistir a aula de química. Os seus passos são constantes e apressados, seu ritmo é inquieto e de forma acelerada ele segue seu rumo.
Não havia tempo, já estava atrasado e sua mente apenas focava em chegar o mais rápido possível, por isso pouco se apegou aos detalhes do ambiente e isso foi seu grande erro. Sendo incapaz de notar, Daniel logo toma uma rasteira e vai ao chão com tudo, batendo firmemente a testa e ralando os braços.
Ao olhar para cima, ele avista Vida mansa e pirulito, que o encaram sorrindo, cheios de más intenções. Sabendo do risco que corre por estar com dois problemáticos, Daniel rapidamente tenta levantar, mas logo volta ao chão por causa de um empurrão desferido por Pirulito.
--- Ei! Eu não te deixei levantar, deixei?
--- Lugar de lixo é no chão --- Vida mansa complementa enquanto está tomando um suco de caixa.
--- Lugar de lixo é na lixeira --- Pirulito sorri sadicamente --- Você é reciclável?
Daniel entende onde isso vai parar e tenta levantar de novo para correr, mas o gordo Vida mansa o agarra, não o deixando fugir. O brutamonte o ergue do chão, enquanto os dois algozes riem sem parar. Daniel se debate, é só o que resta fazer, mas é um esforço inútil e sem resultados.
--- Merda é orgânico. --- Vida mansa diz enquanto Pirulito abre a lixeira.
--- Não! Por favor! --- Daniel implora inutilmente --- Não faz isso!
De nada adianta as súplicas, Daniel é arremessado dentro daquela nojenta e podre lixeira. O recipiente está cheio de restos de alimento, larvas e algumas moscas, a farda, o rosto e o corpo do garoto ficam totalmente sujos e com um cheiro horrível, é uma humilhação que fere o orgulho e a mente, além de o expor ao ridículo.
Após este ato hediondo, se aproximam catraca e Gustavo, que apenas observam. Catraca vem com um sorriso perverso no rosto e Gustavo está claramente desconfortável. Ele não sabe o que fazer, um lado seu quer ajudar Daniel, já que é seu amigo e o outro não quer perder o contato com os outros rapazes e a fuga da realidade que só eles conseguem proporcionar. Também são 3 deles e são mais velhos, o que ele poderia fazer? Ele tem que decidir logo, e o olhar que Daniel o olha, apenas faz o seu corpo pesar mais e mais.
--- Merdaniel! Que saudade! --- Catraca diz derrubando água no cabelo do rapaz que ainda está na lixeira, imóvel em choque e com olhar de choro --- Deixa eu te limpar um pouco.
Daniel segue tentando conter as lágrimas, com todo o seu ser e força, mas uma hora elas vencem e escorrem pelo seu rosto, dando apenas mais motivos para que os algozes entrem em uma gargalhada macabra e cruel. Ele encara Gustavo fixamente, como se esperasse alguma atitude do amigo, atitude esta que nunca vem, o cabeludo apenas desvia o olhar e deixa Daniel a própria sorte.
Catraca nota os olhares de súplica de Daniel e o desconforto de Gustavo, então fica muito desconfiado. Ele observa mais alguns segundos e então rompe o silêncio os indagando, para saber o que é que está rolando naquele local.
--- Tá olhando pro Gustavo porquê, Merdaniel? Tá apaixonado por ele é?
Gustavo teme que Daniel conte que são amigos e que isso faça com que se voltem contra ele, o cabeludo não quer ser um alvo igual seu colega é. Além de não querer perder a chance de andar com os caras mais velhos e aprontar, tendo assim sua carga de adrenalina necessária para se sentir melhor. Prevendo o pior, Gustavo empurra Daniel que tomba junto com a lixeira e vai ao chão, espalhando todo o lixo pelo solo e deixando a vitima estatalada no chão, ainda mais suja.
--- Tá olhando o quê, Merdaniel? --- Gustavo brada, enquanto Daniel se levanta e sai em silêncio. Machucado fisicamente, mas principalmente emocionalmente por receber este tratamento de um amigo.
🥊
--- Um teste? --- Gustavo pergunta confuso.
--- É, ontem me deixou com uma dúvida. Não é nada de mais, apenas desencargo de consciência. --- Catraca diz calmo enquanto guia o garoto para a parte de trás da escola.
Ao chegar no local, Gustavo apenas visualiza um pequeno corredor estreito que tem pouca utilidade na escola, sendo apenas um local abandonado onde fazem o acúmulo de materiais descartados. No fundo no corredor estão Pirulito e Vida Mansa, segurando Daniel contra a parede.
Catraca guia o cabeludo até os outros jovens, Gustavo sente um nervosismo e ansiedade como se algo de muito ruim fosse acontecer a qualquer momento. O líder dos delinquentes então aponta para Daniel, que está encurralado e indefeso.
--- Quebra ele, Gustavo.
--- Ahn? Tipo... dar porrada?
--- É --- Catraca diz seco --- Ontem você pareceu ter peninha dele. Desconfio que vocês são próximos.
Daniel e Gustavo trocam olhares, o cabeludo com olhos de desespero e pressão, sem saber o que fazer. Já a vítima devolve um olhar calmo e sereno, com um grande ar de "Eu sei o que você sente". Eles seguem se olhando enquanto os rapazes mais velhos visivelmente estão perdendo a paciência. Daniel solta um sorriso de canto olhando para Gustavo que está tremendo e repleto de suor.
--- Faça o que tiver que fazer. Eu não ligo.
--- E então, o que vai ser? --- Vida mansa caçoa.
Gustavo engole seco e fecha os punhos, ele sente estar apertando nas mãos o sentimento de ser o ser humano mais desprezível do planeta, por simplesmente trair o amigo por aceitação e medo. Agora era tarde de mais para voltar atrás, ele desfere um bruto soco contra o rosto de Daniel, que cai no chão com o nariz sangrando.
Pirulito e Vida mansa começam a pisotear Daniel, que apenas se encolhe e tenta sobreviver a tempestade de chutes e pontapés. Catraca abraça Gustavo por cima dos ombros e o conduz para fora do beco, com um tom bem leve e calmo, como se aquela situação não fosse fora do comum.
--- Que bom, meu amigo. Sempre soube que não havia motivos para desconfiar de você. É um dos nossos!
--- É... --- Gustavo olha para trás e vê de relance Daniel sendo brutalmente surrado --- Eu sou um de vocês.
Este dia foi o marco do fim da amizade entre os dois rapazes, não mais amigos, apenas algoz e vítima agora, presa e predador. Não mais se viam após as aulas para estudar, não mais se falavam em qualquer ocasião, o único momento em que conviviam e trocavam olhares era quando Daniel caído o observava mais afastado enquanto levava uma surra. Gustavo evitava ao máximo o agredir, só o fazendo quando era extremamente pressionado, mas também não movia um dedo para ajudar seu amigo que a cada dia ia se entregando mais ao desespero, que o consumia. Essa foi a rotina torturante e doentia que se seguiu pelos próximos meses, rotina essa que teve graves consequências.
Um dia, Gustavo estava na varanda de casa tomando vento e pensando sobre as péssimas decisões que veio tomando, sua mente vaga e o arrependimento o machuca por um bom tempo, mas ele é interrompido e puxado de volta a realidade quando sua tia Roberta senta do seu lado. A mulher o encara com ternura e um pouco de pesar, ele reconhece este tipo de olhar, é o mesmo que Jair o lançara antes de contar sobre a morte de seus pais. Coisa boa definitivamente não deve ser, Roberta tem algo a revelar e isso o deixava apreensivo, o que poderá ter ocorrido desta vez?
--- Ei Gu, eu tenho uma notícia que eu não sei bem por onde começar. É algo bem triste mesmo. --- Ao escutar estas palavras sairem dos lábios de sua tia, a única coisa que se passa na mente do rapaz é o que poderia ter dado tão errado.
--- Pode contar, tia. Quanto antes acabar o suspense melhor. Tá me deixando agoniado.
--- Sabe aquele seu amigo do colégio que vinha aqui?
--- O Daniel?!?! --- Gustavo perde a compostura e se entrega ao nervosismo.
O cabeludo entende que não é o melhor dos amigos, na verdade ele é um péssimo amigo, mas mesmo assim algo de ruim poder ter acontecido com Daniel o faz tremer e ficar teso. A preocupação atinge o auge quando Roberta titubeia nas palavras e hesita muito para continuar a informação, Gustavo sente um pesar e uma culpa imensa, ele sabe que algo trágico ocorreu.
--- Bem, ele morreu. Tomou uma decisão ruim e fez besteira com a própria vida, ainda não sabemos o porquê. Achei justo te contar sobre.
Cada surra, cada xingamento, cada humilhação, tudo isso vem a tona e fica reprisando na mente de Gustavo, que é bombardeado e martelado pela culpa, é uma sensação esmagadora. Ele não consegue respirar, e sente seu corpo arrepiar ao escutar a informação da tia. Lágrimas vazam de seu rosto e a tristeza o controla totalmente. Seu cérebro não para de o maltratar com vários e se, "E se eu tivesse feito algo pra ajudar?", "E se eu não fosse um babaca?", só que nunca saberá como seria se tivesse feito isso. A única coisa que ele sabe é que a realidade dura e cruel bateu em sua porta. Escolhas tem consequências e essa é uma coisa causada principalmente por ele.
Roberta não sabe o que dizer para contormar a situação, ela entende que o luto é sempre algo difícil, principalmente na infância e que essa é a segunda vez em pouco tempo que Gustavo é atingido por essa questão. A mulher então resolve deixar o rapaz sentir, processar e por tudo para fora do jeito que achar melhor. A tia abraça o garoto e o puxa para perto, Gustavo a envolve em um abraço muito apertado e pede abrigo, deixando claro que por mais que pareça durão, ainda é só uma criança.
--- A tia tá aqui com você. Põe pra fora.
--- Por favor --- Ele diz entregue as lágrimas e com uma voz embolada, de difícil entendimento --- Todo mundo tá indo embora. Meu pai, minha mãe, o Daniel. Tia, não vai morrer também, por favor...
--- Eu não vou, pequeno. Vou te infernizar por muitos anos ainda. --- Ela responde o abraçando mais forte.
🥊
--- Vocês souberam que o Daniel se matou? --- Vida Mansa diz rindo. --- Perdemos metade da diversão do dia agora!
--- Eu soube, mas que covarde do caralho! --- Pirulito rebate seco acendendo um cigarro. --- Teremos dias tediosos.
Raul está sentado entre os dois, quieto pensando sobre as coisas que fez durante os últimos meses. Escutar tamanha barbaridade faz seu sangue ferver e seu coração rugir como um leão. Ele cerra os punhos, mas se mantém controlado e segue pensando no porquê ainda está perto de pesssoas tão ruins.
Ainda absorto na própria mente, Gustavo presta atenção e escuta uma voz conhecida vindo de trás dele. Trata-se da voz de Catraca, que soa mais nojenta e áspera aos ouvidos do que nunca. Com um tom de deboche e pouco caso, ele solta uma frase que faz Gustavo perder o controle.
--- Já vai tarde, não faz falta. Menos um otário no mundo.
Ao ouvir tamanha barbaridade insensível, Gustavo vira para trás jogando um soco desengonçado, mas munido de todo o ódio do mundo. Quando a pancada atinge Catraca, sua cabeça é arremessada para trás e o merdinha cai com o nariz sangrando sentindo muita dor.
Os outros dois membros da gangue ficam surpresos com essa ação inesperada e repentina, ficando ambos totalmente tesos e travados. Era a chance que o cabeludo precisava, Gustavo começa a mandar uma chuva de socos nos dois que só conseguem se fechar na guarda e levar as pancadas.
--- Filhos da puta doentes! --- Gustavo diz fora de si.
Só que a sorte para de sorrir a seu favor quando Catraca se levanta novamente e acerta um soco em sua nuca o lançando contra o solo. Agora os três delinquentes começam a soterrar seu pequeno corpo com pontapés e bicudas, acertando seus braços, pernas, caixa torácica e rosto.
Gustavo sente uma dor latente e excruciante, ficando tonto e repleto de hematomas. O garoto segue indefeso contra a surra que dura bons minutos, até que o trio ficasse cansado de golpear.
--- Eu sempre desconfiei que esse ai era da laia do Merdaniel --- Pirulito diz pisando na mão de Gustavo que grita de dor --- Nunca me enganou!
--- Já que tem tanto zelo e sentimento pelo que rolou. --- Catraca diz abaixando e segurando Gustavo pelo cabelo --- Você vai ficar no lugar do Merdaniel agora. Você é nosso bichinho de estimação para nos divertimos.
O ódio está causando um incêndio na alma de Gustavo, que mesmo naquela situação não consegue sentir dor ou medo, tudo que o recheia é apenas raiva e culpa. Não poderia deixar barato, mas também não tem os meios para vencer, lhe resta apenas a insubmissão. O cabeludo procura dentro de si, no canto mais tenebroso de seu pulmão e cospe no rosto de Catraca que o larga com nojo.
--- Arghhhh fedelho escroto --- Catraca solta uma botinada no rosto de Gustavo que rasga na testa --- Nojento do caralho.
O mundo para e Gustavo fica tonto a ponto de mal entender onde está, se tornando impossível de se levantar. Suas pernas simplesmente não respondem e seu corpo agora pesa mais de uma tonelada, sua mente vaga e oscila entre o quase desmaio. Catraca limpa o cuspe do rosto e encara irritado.
--- Vou te dar uma lição, cuzão. --- Ele pausa rindo --- Hoje a noite vamos no túmulo do seu amiguinho, pra você ver quem manda. Vou cagar naquela merda!
Os três rebeldes caçoam e caem numa gargalhada tenebrosa, logo depois saem brincando entre si, como se nada tivesse rolado ali. Abandonando para trás um Gustavo caído e sem forças. O rapaz tenta levantar, mas cambaleia e volta ao solo, onde fica bons minutos, antes de conseguir se aprumar e ficar sentado com dificuldades. As lágrimas escorrem por seu rosto.
Ele não consegue entender se é sintomas da concusão que acabou de ter ou se é apenas a tontura, mas ele jura que a sua frente ele consegue ver um espectro de Daniel. Seu antigo amigo está normal como sempre, mas a energia que ele emana é diferente de qualquer pessoas que ele já havia visto antes.
--- Eu devo estar ficando maluco --- Gustavo caçoa enquanto segue tendo alucinações por causa da culpa.
O espectro de Daniel tem uma expressão facial forte de dor e sofrimento, uma careta carrancuda e pesada, que olha diretamente para a alma de Gustavo e a torce com julgamentos. A culpa abala e pesa o cabeludo, que de início desvia o olhar, mas logo o encara novamente, pois acha que se foi babaca a ponto de fazer, deve ser homem de ao mesmo ter a coragem de encarar seus atos de frente.
--- Me desculpe... --- Gustavo lamenta baixinho. --- Não. Não há palavras que compensem o que eu fiz.
A figura continua dando o silêncio e o desprezo como resposta, apenas o encarando com um olhar julgador. Um olhar doloroso e brutal, que apenas gera um sentimento de pequenez. Um sentimento horrível que agora já era parte dos dias do cabeludo.
--- Eu sou um merda --- Gustavo cai em uma gargalhada frenética misturada com um choro sentido, que invade e se espalha por todo o seu rosto --- Me desculpe!!!! me desculpe!!!! Me desculpe!!!!!
O ser fruto de sua mente segue em silêncio com um olhar vazio e solitário, sentimentos esses que passam para o coração de Gustavo, que está despedaçado.
---- Me desculpe, Daniel! Me desculpe! Ao menos me responde algo! Me xinga, mostre sua revolta. Só faz algo...
E novamente apenas nojo e silêncio como resposta.
🥊
--- Eu vim porquê soube do ocorrido com o Dan --- Gustavo diz sem jeito.
Dona Rosa, a mãe de Daniel, vê o garoto dizer essas palavras e seu rosto logo demonstra ternura e apreciação pela visita e carinho do rapaz. Ao mesmo tempo que uma tristeza nostálgica também a atinge, é a primeira vez que vê o amigo de seu filho desde que a situação aconteceu.
Quanto a Gustavo, o garoto não consegue a encarar nos olhos, desviando o olhar para o chão. O remorso o atinge de jeito e ele se apequena diante da idosa em sua frente,
--- É tudo verdade, rapaz. É a realidade cruel que tô vivendo --- Dona Rosa diz soltando um longo suspiro, pensativa --- Eu não consigo entender, ele sempre foi tão feliz, tão estudioso. Não faz sentido meu bebê do nada fazer isso, o que mais dói é não entender, sabe?
Sua feição é de derrota e é visível o quão abatida está, estando mais magra e com olheiras fundas e marcantes no rosto. Ela junta as mãos tentando se manter firme e sua mente hesita um pouco, mas logo acaba se entregando ao desabafo e coloca para fora o que pairava sua mente.
--- As vezes me pego pensando sobre o motivo dele fazer isso, vejo os erros que cometi, coisas que talvez tenham chateado ele. No fundo eu acabo me sentindo a assassina dele, por talvez ser a causa ou por não ter notado que ele tava assim.
--- Não diga isso, Dona Rosa. Nunca mais repita isso, se tem alguém que é a causa, definitivamente não é a senhora! --- Gustavo rebate rapidamente de forma incisiva --- Eu que te devo um pedido de perdão...
--- Perdão, mas por qual motivo isso? --- A senhora se mostra confusa.
Gustavo infla o peito puxando para si toda a coragem que consegue, não era hora para voltar atrás e ser covarde, não agora. Ele procura as palavras certas e o melhor modo de expor o que quer falar, mas simplesmente não há jeito certo de confessar algo tão ruim, ainda mais vendo em sua frente a consequência de seu ato.
Como não há modo de abrandar o que será dito, o rapaz opta por simplesmente atenuar o que conseguir e dizer como sua mente achar melhor na hora. Chega de hesitar, com uma voz embargada e baixa, ele começa a explicar toda a situação.
--- Tinha uns garotos fazendo bullying com o Dan, coisa pesada. Isso o colocou em uma tristeza e desespero imensos. Essa é a causa de tudo.
--- Está tudo bem, Gu. Vocês nunca foram de briga, então não irei julgar vocês dois por terem sido alvo desses garotos ruins --- Surpreendente a postura da idosa é de acolhimento e carinho, o que desarma totalmente Gustavo, o fazendo sentir um aperto no coração --- Sei que deve ter sido sufocante e assustador, então eu entendo vocês dois terem ficado calados e não contarem aos adultos sobre. Agradeço sua coragem de se abrir agora, mesmo que tarde de mais.
Receber bondade e carinho como retorno não era o que ele esperava, isso o faz sentir ainda pior, já que sente que não merece esse apoio e que ele é um monstro por não explicar completamente tudo sobre o ocorrido. Dona Rosa segue fazendo o seu discurso, olhando para o rapaz com muito cuidado, ela se aproxima e o encara nos olhos.
--- Os garotos ainda tão mexendo com você? Temos que parar isso agora e eles tem que ser responsabilizados! --- A senhora diz preocupada com a criança na sua frente.
Era a gota d'água, ele sente que tem que confessar e admitir, não é justo receber tamanha preocupação. Ser algoz e ser tratado como uma vítima seria falta de caráter em um nível extremo, ele não consegue aceitar isso e seguir em frente se escondendo desta maneira.
--- Dona Rosa... eu era um dos garotos que tava fazendo bullying com o Dan. Eu... eu me arrependo tanto! --- Admite se entregando as lágrimas e desviando o olhar para o chão, onde acha que é seu lugar --- Sei que não há desculpas para meu ato, nada vai te compensar nunca. Eu só não achei que isso fosse ocorrer.
Gustavo sente um ardor explodir em seu rosto e um arrepio percorrer sua espinha, o barulho forte o fez entender o que houve, tratava-se de um bruto e seco tapa na cara. Ele sorri cabisbaixo, esse sim era o tratamento que achou que merecia. Toda a ternura e compreensão somem de Rosa, que começa a esbravejar e a vomitar toda a raiva que estava sentindo.
--- Desgraçado sem coração! Ele te ajudou tanto quando seus pais morreram e é assim que retribui?
--- Me desculpe! De todo coração. Não tenho como desfazer o que fiz. Eu me sinto um lixo humano por isso.
--- Eu eu eu eu, que porra de pedido de perdão é esse? Só está falando de si e de como se sente. Egoísta egocêntrico do caralho --- A senhora piedosa e carinhosa havia sumido completamente --- Nunca vou te perdoar! Você não veio aqui porquê se arrepende, você só quer se sentir menos culpado. Não vou te dar esse alívio, nunca!
De certo modo ela estava certa, que tipo pensamento foi esse? Realmente achou que poderia dizer umas palavras e ficaria tudo bem? É o que se passa na mente de Gustavo. O garoto fica em choque ouvindo a senhora, o fazendo ter uma catarse que o deixa em dúvidas, não há perdão sem compensação e sacrifício. Chegar e pedir para uma mãe o perdoar porque sente muito beira a insanidade e desrespeito.
Ao menos ele disse a verdade, é o que o consola enquanto segue quieto ouvindo tudo o que Rosa tem para jogar em sua cara. Ela sangra suas dores e ódio no rapaz, de modo curto, seco e descontrolado.
--- Eu nunca vou te dar um desfecho sobre isso, que queime e arda de culpa até o fim dos seus dias. --- Ela diz batendo a porta na cara dele, não antes de deixar uma última alfinetada --- Essa culpa vai te acompanhar pro caixão!
🥊
--- Tem certeza que o coveiro tá dormindo? --- Vida mansa diz preocupado.
--- Deixa de ser marica, cara. Já é a quarta vez que a gente vem pra cá e ele sempre tá dormindo depois da meia noite --- Catraca explica bravo.
Os três delinquentes seguem discutindo entre si enquanto sobem a ladeira do cemitério, causando algazarra e cortando o silêncio sepulcral da madrugada. Eles tem bebidas nas mãos e até derrubam um pouco em alguns túmulos durante sua caminhada até a cova de Daniel, para fazer a nova diversão sádica da sua rotina: Vandalizar seu túmulo.
As quatro primeiras vezes foram fáceis de fazer esta perversidade, os responsáveis pelo local não são eficientes ou assíduos ao seu trabalho, dormindo ao invés de monitorar o local. Os três vão com a certeza de que não haverá dificuldades, mas não desta vez.
Assim que chegam na lápide, avistam Gustavo sentado a espera deles. O rapaz fica em silêncio os encarando, mesmo quando os três entram numa gargalhada, o garoto segue quieto os observando concentrado.
--- Tá fazendo o que aqui, seu porra? --- Pirulito zomba.
--- Acho que as surras na escola não tão sendo o bastante --- Boa vida sorri --- Ai veio apanhar aqui também, na frente do amiguinho morto.
--- Sai pro lado, temos coisas pra fazer. Quando terminarmos, te damos sua surra. Agora rala, bora. --- Catraca diz com nojo, enquanto segura uma placa de ovos na mão.
Gustavo levanta, mas não se afasta como foi ordenado, ele anda em direção aos três e fica em pé os encarando quieto. Vida mansa recua um passo, maldito gordo covarde, já Pirulito sente um arrepio, mas olha para Catraca e sente tranquilidade por ver o chefe não hesitando.
--- Somos três, Gustavo. Nem tenta, é melhor para sua saúde. --- Catraca diz encarando de volta. --- O que te leva a achar que tem uma chance?
--- Isso --- Gustavo diz desinteressado enquanto mostra os punhos cerrados.
Para Dona Rosa, subir aquela ladeira até o túmulo de seu filho era como escalar o Everest, tanto por causa da idade avançada quanto pelo dano mental e emocional de saber que provavelmente vai encontrar o local todo depredado, nem após a morte estão dando paz para seu filho e isso a magoa infinitamente.
Com a vassoura na mão, para limpar seja lá qual for a situação da vez, ela sobe a ladeira pela manhã com o coração sangrando uma dor latente e irremediavel. Só que a cena que vê a petrifica e surpreendente, definitivamente é uma das cenas mais marcantes de toda a sua vida.
Aos seus pés está Pirulito desmaiado com o rosto inchado, com a bochecha e o olho com o dobro do tamanho. No canto esquerdo está Vida mansa caido com o braço esquerdo quebrado, inconsciente e com a blusa lavada de sangue.
Perto do túmulo está Catraca fora de si, com o nariz escorrendo sangue e com a boca inchada, suas roupas tem manchas de sangue e há um dente no chão, impossível de saber de quem é. Sentado em cima do túmulo está Gustavo, que a encara fixamente com um olhar reto sem hesitações.
O rosto do garoto está um caco, deixando claro a necessidade de ir para um hospital, seu rosto está quase inteiro vermelho com um líquido denso escarlate. Sua blusa está com rasgões e apesar da situação, ele segue firme e com uma postura de guarda como um falcão vigiando. Não foi difícil para a senhora conseguir entender o que ocorreu ali, Gustavo protegeu o lugar das depredações que iriam ocorrer. Arriscou a vida e a segurança física apenas para isso, mesmo apesar da desvantagem e baixas chances. E conseguiu.
Ela nunca poderia achar Gustavo certo ou algo poderia compensar o que houve, mas este ato a mostrou que seu arrependimento era real e não algo egocêntrico, apenas para aliviar o próprio pesar. Rosa nunca mais poderia conviver com o rapaz ou o tratar como antes, mas também já não poderia sentir raiva dele, não depois de ver o que viu.
O garoto segue a olhando fixamente, sério e dando sinais de cansaço e dor, porém se mantendo firme na sua posição de vigia. Ela sente que como provavelmente era a última vez que seus caminhos se cruzariam tão diretamente assim, era propício que o liberasse um pouco de toda a dor que sente, como ele a libertara agora de ver um local importante ser desrespeitado.
--- Ei Gustavo --- Ela chama a atenção dele, que pela primeira vez neste dia demonstra hesitação e perturbação. Se entregando a ansiedade. --- Eu te perdoo.
Ele aguentara toda a dor sem chorar, aguentara todos os socos sem pestanejar, resistira a desvantagem numérica e a pedradas, firme, era um homem agora, mas nada doeu tanto e o desestabilizou tanto quando ser perdoado. As lágrimas escorrem do seu rosto e ele cede as emoções que sente. Dona Rosa sorri e acena a cabeça, demonstrando respeito, o rapaz retribui o mesmo ato.
Ao fundo, novamente Gustavo avista a alucinação do espectro de Daniel que só ele consegue ver, a materialização da sua culpa e pesar. O ser segue quieto, com olhar de julgamento que penetra e corta a alma de Gustavo como uma faca, ainda não era o bastante para se redimir e seguir em frente. Talvez nunca fosse o bastante.
🥊
Curativos, inchaço e alguns pontos são as únicas lembranças que Gustavo guardou do seu embate no cemitério, e agora ele vaga cabisbaixo pelas ruas as ostentando. O garoto anda sem chamar atenção, no próprio ritmo, sem pressa. A única coisa que o acompanha, e quem sempre o acompanha independente de onde esteja, é o espectro de Daniel, a alucinação que só sua mente vê e que só ela é perturbada.
O olhar do ser é uma lâmina que o faz sangrar desespero e agonia, o lamento de sua alma só cresce e o arrependimento o consome, por isso anda sem chamar atenção, já tem problemas o suficiente. Até que durante sua caminhada, ele se depara pela primeira vez com um personagem importante para história, mestre Antônio.
Mesmo nesta época, o homem já tinha feições de velho e uma cara carrancuda e ranzinza. O velho o encara e fica na passagem, o impedindo de passar, logo depois cruza os braços e solta um sorriso debochado. O idoso solta uma frase com um pouco de descrença.
--- Você que bateu em 3 garotos de uma vez?
--- Não senhor --- Gustavo nega e tenta passar --- Agora se me der licença...
--- É você sim, a Rosa não mente. --- Antônio diz ainda obstruindo a passagem, não o deixando ir embora.
Gustavo suspira, definitivamente não era uma situação em que desejasse estar, tudo que mais queria agora era ficar na dele, abaixo do radar por algum tempo. Vendo que o senhor não vai o deixar seguir seu rumo, ele decide voltar a dialogar para que isso acabe logo.
--- Ei, se algum deles era seu filho, me desculpe, mas tive meus motivos.
--- Quê? Claro que não. Deus me livre. --- O senhor nega com a cabeça e as mãos --- Meu interesse em você é outro. Eu quero seus punhos.
--- Ahn? --- Gustavo franze a testa e se afasta um passo --- Que conversa estranha é essa?
A criança sente o coração acelerar um pouco e não consegue saber quem é aquele homem ou o que ele quer, mas não espera que seja coisa boa. O velho fica em silêncio um tempo pensando que acabou se expressando mal, mas logo volta a falar para tentar consertar as coisas.
--- Sou treinador de boxe e você fazer o que fez demonstra talento. Se eu te treinar, você ficaria imbatível.
--- Ah, boxe? --- O garoto soa mais aliviado --- Obrigado, mas não tenho interesse.
--- Deixa de desperdício, alguém com tanta habilidade tem que usar para algo útil.
Gustavo dá de ombros e depois balança a cabeça em negação, afastando totalmente a ideia de ser um lutador, atleta ou seja lá o que o velho esteja falando. Queria dar um tempo das fortes emoções, os últimos meses foram intensos e agora tudo que queria era a boa e velha paz da normalidade. Antônio não se dá por vencido e segue na sua argumentação.
--- Não tem ninguém que você queira mostrar que pode ser mais do que é hoje? Que pode ser alguém melhor do que sempre foi? Mais do que um garoto problemático.
Essas palavras atingem Gustavo no íntimo, e ele olha para o lado e avista o espectro de Daniel o encarando com olhares julgadores, olhares frios e sem piedade. O garoto suspira e se vira para o velho de novo.
--- Você pode me fazer mais do que sou?
--- Pode apostar que sim, pirralho.
--- Eu topo, me faça ser mais do que eu sou. Eu não quero ser isso pra sempre --- Diz com um pesar na voz.
Contagem de palavras: 6.952.
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Eae galera, beleza? Cá estamos pro capítulo da semana. Dessa vez eu admito estar com receio, já que o Gustavo é um personagem que está sendo bem popular com os leitores, então mostrar o passado dele cheio de erros e ações ruins, me deixa com medo de que vcs parem de gostar dele. Só que eu assumo o risco e vou postar assim mesmo, já que é algo necessário e importante para a construção do personagem e do seu arco de desenvolvimento pessoal.
Agora sabem como o Gustavo conheceu o boxe e um pouco dos motivos dele em lutar. O capítulo foi imenso e é o maior da história até o momento, espero que não tenha ficado enfadonho. No plano original tinha mais coisas a serem mostradas e ditas, mas dado ao tamanho que estava ficando acabei cortando bastante coisa, que se julgar importante mostrarei no futuro.
Eae, gostaram do capítulo? Te vejo na próxima sexta-feira? Até mais, coloquem suas luvas e nos vemos no próximo round!
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