I

Ângelo encarava deprimido o canto da sala, lugar que sempre lhe cativava os pensamentos. Não parecia faltar algo?

- Almoçar, chefe! - chamou Emerson, levantando-se da mesa à sua esquerda. - Catorze horas já! Nem só de relatórios viverá o homem.

Ângelo sorriu e, voltando a si, deixou a sala junto com o colega. Antes de trancá-la, deu uma última olhada no interior. Era um recinto pequeno, construído para comportar quatro servidores, apesar de trabalharem apenas três ali. Além dele e Emerson, só havia Mário, que nessa semana tirava férias.

- Que te aflige? - perguntou Emerson, vendo o abatimento com que Ângelo trancava a porta.

- Nada - murmurou Ângelo.

Não mentia. Raramente havia motivo para os momentos de depressão súbita que o atacava. Fora assim sua vida inteira: independente do lugar ou ocasião em que estivesse, era acometido, às vezes, pela mais profunda tristeza, velha companheira cuja presença já desistira de tentar entender. Felizmente, poucos ao seu redor notavam a constância desses relapsos.

Desceram ao refeitório do Instituto de Pesquisas Mágico-Espaciais, discutindo o último e preocupante relatório que chegara ao departamento. Encontraram a cantina quase vazia: apenas dois servidores ainda almoçavam.

- Como anda magro, Ângelo! - bronqueou Divina, a copeira, enquanto servia o rapaz. - Precisa comer mais.

- Impossível - ele riu.

- E seu nariz está sangrando. Faça algum exame, meu filho.

O rapaz ergueu imediatamente a mão e limpou as narinas, constrangido.

- Fiz na semana passada, Dona Divina. Não se preocupe: deve ser o calor - acalmou-a, recolhendo seu prato e indo se sentar após Emerson.

Enquanto comiam, os pensamentos dele se voltaram para o relatório que discutiam há pouco. Seu pequeno, mas importante departamento, era responsável por analisar os dados transmitidos pelo satélite de detecções mágicas e interpretá-los, em busca de possíveis anomalias. Há um ano o rapaz era chefe do departamento, função que, apesar de desempenhar com afinco, pegava-se questionando, frequentemente, se não deveria pertencer a outra pessoa.

- Que lasanha insípida - escutou Emerson dizer.

Ângelo sorriu. Nada mais característico de Emerson do que reclamar da comida. Ia defender a lasanha quando, subitamente, soltou um grito e deixou o garfo cair no prato.

Lá estava ele, à mesa mais distante da cantina, encarando-o com seus olhos de fogo. Um vulto alto, encapuzado, indistinguível como a noite. Aterrorizado, Ângelo fechou os olhos e respirou fundo. Ao abri-los novamente, a Sombra havia desaparecido.

- Que foi? - perguntou Emerson, olhando pra trás.

- Na-nada - murmurou. - Cochilei sentado... Não dormi ontem...

- Você trabalha demais - resmungou Emerson, voltando a comer. - Vai acabar louco.

Ângelo concordou, num riso trêmulo. Seu coração, todavia, continuava disparado. Não era a primeira vez que tinha aquela visão. Tivera outra semanas atrás, quando, ao chegar em casa, encontrara o vulto de olhos flamejantes sentado em seu sofá, observando-o calmamente. Também daquela vez a visão durara pouco, e ele culpara o cansaço. Mas ei-la de novo!

"O que há comigo?"

Não teve tempo, porém, de refletir na alucinação, pois naquele instante os telefones dele e de Emerson tocaram simultaneamente. Ângelo atendeu, pressuroso: sua ligação vinha da própria Diretora.

- Ângelo, preciso que suba aqui agora. É sobre o relatório de sexta.

- Ainda estamos analisando ele, Inês. As conclusões são preocupantes, adianto.

- Adianta corretamente. O satélite retornou novas imagens. Há uma anomalia de escala nove atingindo o sol!

Ângelo saltou da cadeira e, seguido de Emerson, deixaram esbaforidos o refeitório.

***

Eu acho que não existo. É só o que sinto ao olhar ao meu redor. Estou andando sobre águas, com os pés descalços, e não sei há quanto tempo estou neste lugar. Parece que sempre estive aqui. Parece que cheguei agora. Mas aqui existe?

Só há água. Estou cercada por um oceano pálido, encimada por um céu pálido, e pálidos são meus pés. Como sei a diferença entre céu, oceano e eu, se tudo é vago?

Eu tenho um nome. Bárbara. Lembro-me de uma voz, doce voz, pronunciando-o. Então só pode ser meu. Mas o que sou eu?

- Oi! - grito, e minha voz ricocheteia os ares. - Tem alguém aqui?

Não obtenho resposta, então sigo caminhando. Se caminhar, chegarei a algum lugar.

Às vezes olho o céu, e tenho a impressão de que não é tão pálido assim. Não seria aquele pontinho vermelho um astro? É minha estrela guia... Devo segui-la.

Oh, se não existo, aquela mulher também não existe. Ou ambas existimos. Pois há uma mulher, vejo agora, logo ali, também seguindo em frente. Grito por ela:

- Oi!

Ela vem até mim. Não sei se é jovem ou velha. Discirno perfeitamente sua face, mas não consigo lhe atribuir tempo.

- Está perdida, moça? - ela pergunta.

- Não sei... Onde estou?

Ela me toca o rosto, e seu toque é pálido.

- Você tem um nome?

- Sim! Meu nome é Bárbara!

Ela suspira:

- Nomes se perdem aqui...

Não entendo.

- Onde estou?

- Às vezes, a única forma de não cruzar caminhos é não percorrendo caminho algum.

Ela se distancia, e nenhum passo meu a alcança.

- Por favor! - clamo. - Me ajude!

Ela para:

- Acha que precisa de ajuda?

Reflito naquelas palavras. A cada instante, a palidez deste lugar se torna mais agradável, e não sei se quero sair dele. Por que grito, afinal?

Porque meu nome é Bárbara, e o ouço pela voz, doce voz, em meu peito. O que são essas imagens em minha mente?

- Lembranças - balbucio.

A mulher se volta, impressionada.

- Lembra-se de algo?

- Sim... Um... hospital...

- Você estava doente?

Lágrimas brotam de meu rosto, enquanto vou me lembrando:

- Eu não.

A mulher vai falar... quando olha sobre meu ombro, geme e esconde o rosto.

Giro-me e vislumbro, tão longe, mas tão perto, uma figura esvoaçante, de olhos de fogo, encarando-nos silenciosamente. Sua presença é nítida na palidez, e sei que, ainda que eu não seja real, aquilo é.

- Quem é aquele?

- Aquilo, moça, é a razão de estarmos aqui.

E a mulher sai correndo. Estou só com a Sombra.

- Oi! - me aproximo.

Mas também ela desaparece, e tudo volta à palidez.

***

As imagens mostravam o que, para um satélite comum, pareceria uma mancha solar. Às lentes do Instituto, entretanto, seu significado era mais temível.

- Um distúrbio magiquântico - murmurou Ângelo. O que o último relatório só sugeria estava explícito nas novas imagens. - Se cresceu assim em cinco dias, num mês terá coberto o sol! O sol apagará!

- Exatamente - disse Inês, desabando na poltrona. - Temos três semanas, estimo, para contermos essa anomalia... Ou será o fim.

- Não já enfrentamos isso antes? - perguntou o rapaz. Tinha a estranha sensação de não ser a primeira vez que tudo aquilo acontecia.

A Diretora negou, surpresa.

Na mesma tarde, o Instituto inteiro foi empregado no estudo do fenômeno, numa força tarefa presidida por Ângelo. Convocou-se até quem usufruía férias, como Mário, para se debruçar sobre os dados recebidos, os indexes de encantamentos e tudo o que pudesse oferecer uma solução.

A depressão crônica de Ângelo, dissociada daqueles fatos, mais do que nunca o atacou. Várias vezes, erguia os olhos dos papéis e fitava o canto de sua sala, onde seus pensamentos mergulhavam... Algo faltava ali, mas não sabia o quê...

Ao anoitecer, recebeu uma ligação do médico com quem se examinara. Quando encerrou a chamada, minutos depois, continuou calmo. A notícia não o assustava; era como se sempre esperasse um dia recebê-la. Os sangramentos não eram frutos do clima - mas de uma doença terminal.

Não, isso não importava. Voltou a focar na anomalia: seus dias podiam estar contados, mas ainda tentaria salvar o mundo que estava destinado a deixar.

"Pelo menos agora entendo porque ando alucinando", suspirou.

Duas semanas se passaram, todavia, sem que nenhum avanço fosse feito no estudo da anomalia. Só conseguiram entender seu modus operandi: reduzia a energia dos átomos, causando seu decaimento. O planeta já sentia as consequências: com o sol escurecendo, as temperaturas globais atingiam níveis baixíssimos.

Ângelo emagrecia a olho nu. Isso se devia, em parte, à doença célere que se alastrava por seu corpo; mas, principalmente, à depressão, sua inexplicável companheira de toda a vida, ultimamente mais fiel do que nunca.

- Por que tamanha tristeza, filho? - perguntou Divina, numa tarde em que o rapaz entrou no refeitório anormalmente abalado.

Ele pensou se responderia. Mas sua angústia estava tão grande que, pela primeira vez, não resistiu em confessá-la:

- Sinceramente? Não sei... Não sei porque sou assim... É como se eu vivesse uma vida repetida, mas incompleta, roubada daquilo de mais importante... E meu coração vagasse no nada...

E, contendo a emoção, ele se afastou.

Teve grande dificuldade, naquele dia, em se concentrar nos dados do satélite. Sentado à mesa, subia o olhar, de minuto em minuto, para o cantinho da sala...

- Sr. Mário - ele chamou, de repente. - Diga-me, quem trabalhava naquele lugar antes de eu chegar aqui?

- Ninguém, chefe.

- Não - disse Ângelo, quase delirante. - Uma mulher, uma mulher costumava se sentar ali. Uma mente brilhante, ela era. Exímia pesquisadora. Seus trabalhos elucidavam várias matérias, de anomalias cósmicas a doenças mágicas... Era quem chefiava este departamento antes, não?

Mário fitou preocupado o empalecido rapaz:

- Chefe, o senhor está bem?

- Estou. Vamos, responda.

- Antes era o Macedo, uai. Ele não era mulher, não se sentava ali, e muito menos era brilhante.

Ângelo estremeceu e, voltando à razão, se encerrou outra vez nos dados.

***

[1515 palavras]

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