UM
MINHA FAMÍLIA ERA SOBERANA de Aquatick, um reino cercado por água e lar de nossa linhagem há centenas de anos. Vivíamos em um mundo onde cada nação era dividida por seu Dom, e nós éramos os controladores da Água.
Desde que me conheço por gente, sempre soube que seria meu destino assumir a frente do meu povo como sua rainha e Representante Elemental. Cresci na beira do mar. Mergulhando nos lagos mais profundos e correndo junto às correideiras dos mais extensos rios. Até mesmo tarde da noite, quando me deitava na cama, criava pequenas gotas de água e me divertia vendo-as girar sobre mim em um redemoinho de cristal. Saber que eu tinha nascido para fazer aquilo me causava enorme prazer, um tão grande que eu não conseguia reunir palavras o bastante para descrever.
Mas ultimamente tudo estava dando errado. Eu não sabia realmente o quê, só que parecia ser uma brincadeira de mal gosto arquitetada especialmente para se tornar meu inferno pessoal. Uma série de pequenos acidentes havia se desenrolado desde dois meses atrás, se tornando piores a cada ocorrência. Era uma vez uma princesa que erguia grandes escudos de água. Até que seus escudos se transformaram em grandes bocas que perseguiam qualquer um que surgisse pela frente. Era uma vez uma princesa que criava lindos carrosséis nas várias piscinas naturais distribuídas por seu reino. Até que eles se desfizeram e se tornaram cavalos-marinhos selvagens terrivelmente ariscos.
Tudo o que eu fazia que envolvia o meu Dom fugia do meu controle em um piscar de olhos e eu não fazia ideia do porquê. Agora até mesmo criar pequenas gotas de água na privacidade do meu quarto havia se tornado uma tarefa difícil. Não ousava fazer mais demonstrações em público porque tinha perdido totalmente a confiança em mim mesma e só conseguia sentir medo de passar vergonha ou pior, de machucar alguém.
Até ontem.
Tudo começara em um dos muitos chás que minha mãe dava no Jardim do Lago, cheio de figuras importantes de outros reinos que eu mal conhecia. A cada dois meses ela dava uma festinha e nunca inovava na lista de convidados, sempre as mesmas pessoas, as mesmas conversas, os mesmos elogios – ou pseudoelogios, como eu gostava de chamar, já que todos que falavam das inúmeras qualidades do nosso reino eram um bando de falsos puxa-sacos.
Eu estava dando minhas voltinhas, passando de mesa em mesa, perguntando se estavam gostando do chá e da decoração com a maior cara de enfado, fazendo o que minha mãe chamava de "obrigação de princesa", que na minha opinião era só um nome educado para "baboseira total".
E foi então que Lumina, princesa do Sol – uma completa estúpida, – nossa convidada mais antiga, indagou, chamando a atenção de seu grupinho de seguidoras bronzeadas:
— Pérola, querida! — ela me saudou, acenando freneticamente. —Estávamos falando agora mesmo da minha belíssima apresentação manipulando raios solares durante o pôr do sol do meu aniversário no mês passado. Quando a vi passando, me recordei de que não pôde comparecer e me dei conta de que faz um século desde que me lembro de tê-la visto usando seus poderes. E então gostaria de saber se não vai agraciar minhas amigas e a mim com o seu pequeno dom.
As meninas bronzeadas, provavelmente todas vindas de Soláris, o reino de Lumina, o mais próximo da estrela incandescente, deram risadas altas e tão estridentes que meus tímpanos quase explodiram ali mesmo.
— Ah, Lumina — eu disse, com o sorriso mais sonso que consegui colar no rosto. — Eu gostaria muito disso, mas infelizmente terá que ser outro dia. — completei, já me preparando para dar o fora dali.
— Vamos, por favor. — a princesa do Sol correu até mim, segurando o meu braço, seu toque caloroso ao extremo contra a minha pele. — Não fique com vergonha, ninguém vai rir de você se não conseguir mostrar nada que chegue aos pés do que foi o show de luz do meu aniversário. É normal para todo mundo quando se trata de ficar abaixo de mim. Não precisa ficar triste; deveria se orgulhar de ocupar o terceiro ou quarto lugar!
Olhei para ela com o que devia ser a expressão universal para "você é louca" e me desvencilhei de suas mãos, lhe dando as costas.
— Vá em frente, se esconda como a fracassada que você é. — a frase chegou a mim em um sussurro, me fazendo parar no lugar.
Era disso que eu estava sendo chamada agora? Uma temporada ruim e todos já pensavam que eu não tinha mais nenhum valor? Cerrei os punhos, com raiva.
Antes que pudesse impedir a mim mesma, já havia dado meia volta, declarando em bom e alto som:
— Na verdade, Lumina, estou mesmo a fim de uma demonstraçãozinha. — levantei a mão em direção às águas tranquilas do lago, que se tornaram agitadas de imediato.
Lumina revirou os olhos, rindo com escárnio.
— É só isso? — questionou, cruzando os braços cheia de presunção.
— Você ainda não viu nada. — eu disse, convencida. Com um pequeno gesto de meus dedos, a água do lago se ergueu de suas extremidades, curvando-se em ondas de tamanho mediano. Àquela altura, todos os olhos dispersos pelo jardim tinham se voltado para mim, que manuseava a água à minha vontade.
A sensação de triunfo ao ver que havia retomado o controle do meu dom inundou o meu peito quando eu gesticulei com os braços e as duas ondas se uniram, tornando-se uma só, resplandecendo no verde das árvores e no dourado do sol.
Foi nesse momento que a situação toda se tornou uma bagunça. Como se tivesse ganhado vontade própria, a onda que eu erguera mergulhara de volta no lago e se levantara novamente, só que com o triplo do tamanho. As pessoas ao redor deram alguns passos para trás, todas elas olhando para mim, assustadas. Tentei disfarçar que até eu mesma estava me assustando e sorri abertamente, na intenção de inspirar alguma confiança.
— Hã... T-tudo bem, Pérola. — a voz trêmula de Lumina disse em algum ponto atrás de mim. — Acho que todas nós já vimos do que você é c-capaz.
Apesar de ter sido muito bom ter ouvido ela falar sem aquele tom convencido e esnobe que parecia ser permanente nela, não respondi, concentrando-me apenas em tentar diminuir a onda. Ergui os dois braços, todos os músculos de meu corpo tensos com o controle monumental que eu estava fazendo. Eu tremia dos pés à cabeça, sentindo as lágrimas ardendo em meus olhos.
Era tão forte. Parecia determinada a lutar contra mim.
Depois do que pareceram ser mil anos, a enorme onda de água cedeu sob meu poder.
A última coisa de que me lembro é da voz da minha mãe me dizendo que estava tudo bem e de tudo ficando preto com o meu súbito desmaio.
E hoje, um dia depois do que havia sido por mim intitulado de “O Grande Erro”, eu havia recebido uma convocação de meus pais à sala de reuniões que ficava ao lado da biblioteca do castelo, lugar onde eu só era convidada a comparecer quando estava com muitos problemas.
Respirei fundo, tentando abrandar meu nervosismo ao bater na porta. Um “entre” abafado veio como resposta e logo depois eu estava dentro do imenso cômodo.
Janelas de vidro do chão ao teto ocupavam cada uma das quatro paredes da sala, dando ao recinto mais do que uma boa iluminação. Seis poltronas de couro branco estavam espalhadas sobre o carpete azul-marinho que cobria todo o assoalho de madeira. Mais ao fundo, sentados lado a lado na grande mesa de marfim que era usada para as reuniões do Conselho de Aquatick, estavam mamãe e papai, me encarando com expressões sérias idênticas em seus rostos bonitos.
Parei por um momento para observar a diferença simétrica entre eles. Marina, minha mãe, possuía um aspecto real, com longos cabelos brancos amarrados em um penteado trançado com pérolas em sua cabeça. Estremeci com a visão. Ela sempre as usava em peso, fosse no pescoço, nas roupas ou no cabelo. Pérolas eram suas joias favoritas. Não precisava ser um gênio para descobrir de onde o meu nome tinha vindo. Kadem, meu pai, tinha cabelo castanho, alguns fios já dando indícios de uma coloração cinzenta por causa da idade. Era tão bonito quanto mamãe e sua beleza era tão suave e notável quanto a dela.
Os dois exibiam uma brilhante pele negra e arrebatadores olhos azuis cor do oceano, característica que apenas os Representantes Elementais da Água apresentavam.
Meus olhos, apenas um tom mais claro que o deles, estava destinado a se tornar tão escuro quanto. Assim como minha mãe, eu tinha cabelos brancos, mas não tão angelicais. Enquanto os dela eram mais puxados para o dourado, os meus eram tão brancos quanto um flash de luz podia ser. Às vezes doía olhar. Ela brincava sobre isso o tempo todo, dizendo que nunca poderia me perder de vista, já que minha cabeça era como um farol ambulante.
Eu não achava tanta graça.
Caminhei em direção a cadeira em frente a deles, aguardando em pé que um dos dois desse início ao sermão que terminaria comigo ficando de castigo por longos oitenta e quatro anos.
— Estou completamente decepcionado com você, Pérola. —meu pai foi o primeiro a falar, sua voz grave ressoando pelas paredes. —Pensei que havia entendido sua situação atual e que tínhamos concordado quanto a não fazer nenhuma demonstração pública do seu Dom.
Eu estava prestes a abrir a boca para justificar meus atos quando fui cortada:
— E não adianta dizer que você não teve escolha — ele disse, olhando para mamãe. — Marina me disse que ouviu você dizendo à princesa do sol que estava mesmo “a fim de uma demonstraçãozinha.” — completou, fazendo o sinal de aspas com os dedos.
Pressionei os lábios, desviando o olhar de meu pai para minha mãe.
— Mas a senhora ouviu também as provocações que Lumina havia feito? Deve ter ouvido, já que ouve tão bem quanto uma vampira. — retruquei, aborrecida.
Meu pai se levantou de sua cadeira e me repreendeu:
— Não cite o nome de uma criatura do submundo, Pérola. Muito menos para compará-la a sua mãe!
Revirei os olhos.
— Vocês podem resumir o motivo de toda essa comoção? Estou quase tendo um colapso nervoso por não saber qual vai ser o meu castigo.
Minha mãe juntou as mãos sobre o colo, inabalável.
— Você lembra da instituição que foi criada alguns anos atrás para preparar as crianças que assumiriam a posição de seus pais como Representantes? — assenti com a cabeça, sem entender o que um acampamento no meio do nada tinha a ver com tudo aquilo. — Eu e o seu pai decidimos mandar você para lá.
A declaração me chocou. Quando a minha primeira reação foi sendo absorvida, senti meu rosto queimar de frustração e vergonha, sentimentos que eu estava guardando havia algum tempo.
— Então quer dizer que me acham incapaz de voltar a controlar meus poderes sozinha? — eu disse, minha pergunta saindo em um fiapo de voz.
— Não é isso, querida. — meu pai respondeu, me olhando com carinho. — Só achamos que vai ser melhor para você desenvolver seu dom com ajuda de alguém que esteja acostumado com o tipo de situação pela qual você está passando.
— E aí vocês vão me colocar numa escolinha? — desdenhei, ciente da raiva evidente em meu tom.
— Quase isso. É mais como uma colônia de férias. Mas chame do jeito que lhe parecer adequado. — minha mãe deu de ombros, sem dar importância ao meu descontentamento.
— Sabe o que isso me parece? — olhei para os dois. — Me parece ridículo. Eu não fiz aquela confusão de propósito, não fiz nada de propósito!
Meus pais se entreolharam.
— Nós sabemos disso, filha. — mamãe disse. — E é por isso mesmo que ficou claro para nós que você precisa de ajuda. Sentimos muito que não tenha gostado da notícia, mas sabemos que é o melhor.
— Vocês não entendem? Eu não vou para lugar nenhum. Vão rir de mim! — exclamei.
— Não vão, Pérola. Ir para o Acampamento Elemental é algo normal para jovens da sua idade. —meu pai diz, numa tentativa de me tranquilizar.
Em vão.
— Mas eu não quero ir! Sempre pude controlar muito bem o meu Dom sozinha. Desde criança já fazia coisas que muitos membros adultos da linhagem da Água não eram capazes de fazer, sempre fui boa. Só estou passando por uma fase ruim e vocês querem me exilar em um fim de mundo qualquer. Isso não é justo! — gritei, deixando a sala em um rompante de raiva.
E não era justo mesmo.
Eu faria o que estivesse ao meu alcance para não precisar ir até o tal Acampamento. Onde já se viu? Eu, sendo ensinada a fazer algo que eu já nasci sabendo? Essa vergonha eu me recusava a passar.
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