TRÊS
DEPOIS DE MAIS DE UMA HORA de jornada, peguei no sono durante todo o percurso restante ao acampamento. Não que fosse uma surpresa: eu mal tinha pregado o olho nas noites anteriores de tanta ansiedade e nervosismo. Todo esses sentimentos de expectativa e medo eram novos para mim, e por causa deles eu me sentia envolta em um turbilhão de emoções.
Devo ter apagado repentinamente porque nem o meu cérebro aguentava mais processar tanta informação. E como recompensa por não ter dado ao meu corpo o descanso esperado, acordei me sentindo enjoada e fora de órbita, com o bônus de uma tremenda dor de pescoço. Depois de massagear a faixa de pele dolorida logo abaixo de meus cabelos, afasto as cortinas da pequena janela da carruagem e estudo com atenção a paisagem diante dos meus olhos.
O sol está alto no céu, o que significava que deveríamos estar no início da tarde. A vegetação que se erguia dos dois lados da estrada de terra pela qual estávamos seguindo era toda constituída por gigantescos pinheiros de um verde tão escuro que me recordava as profundezas das florestas nos limites de Aquatick. Mesmo atrás do vidro, podia sentir seu aroma forte de vida e natureza.
Suspirando, fecho as cortinas novamente.
Já sentia falta de casa.
Contudo, não importava. Eu tinha ido muito longe agora e não iria chorar como uma garotinha que se perdera dos pais. Eu era forte; era capaz. Já tinha dezoito anos, afinal. Chegara o momento de começar a me comportar como uma mulher.
Porém, mesmo repetindo tudo isso a mim mesma, não pude deixar de pensar em todas as coisas familiares que me lembravam do lugar onde eu crescera: o hábito de tocar o elegante, preto e lustroso piano na sala de música logo depois de terminar um bom livro, dedilhando as melodias que me vinham à mente e me faziam lembrar de cada detalhe lido nas páginas; o imenso Crystallis, o belo e sempre cheio rio no qual eu fora banhada ainda bebê e nos tons de branco e azul-celeste que pintavam as paredes do meu quarto, ondulando um no limiar do outro como as ondas e a espuma do mar.
Instantaneamente, me sinto melhor e muito mais leve. Não estou deixando essas coisas para trás. Cada uma delas está marcada em um lugar especial dentro de mim.
Antes que eu possa verdadeiramente ficar em paz com a ideia, sinto a carruagem parar abruptamente sob meus pés. Alguns minutos se passam e estou prestes a bater no teto do veículo a fim de perguntar o motivo da parada quando o lacaio abre a porta e me estende uma mão enluvada, seu corpo se dobrando em uma reverência rápida e cheia de graça.
— Chegamos ao seu destino, minha princesa. — diz ele, quando aceito sua mão.
E é ao pôr meus pés no chão de cascalho que ergo os olhos para um enorme arco de madeira fincado no chão, com os seguintes dizeres pintados em letras escuras e relevadas:
Campo Elementar: Acampamento para Jovens Elementais
— Ou simplesmente Acampamento Elemental, como somos popularmente conhecidos. — a voz ritmida de uma mulher chega até meus ouvidos, e desvio minha atenção da placa pintada para a pessoa parada bem debaixo do arco que delimita a entrada do acampamento. — Me chamo Aquarine, mas pode me chamar de Aqua. Sou uma das líderes da Instituição e fui designida como sua tutora. É um prazer conhecê-la, Senhorita Waterbloom. — Então estendeu uma bela mão cheia de anéis na minha direção.
Tentanto não parecer completamente perdida, aperto sua mão de imediato e sinto uma energia boa perpassar por minha pele assim que meus dedos tocam os dela. Sorrio, subitamente mais confiante. Nós, da Água, somos muito sensíveis às energias que exalam das outras pessoas.
— Igualmente, Aqua — respondo.
Apesar de ter usado a palavra tutora, Aqua não tinha a menor cara de professora. De pele negra semelhante a minha e de cabelos claríssimos – ainda que nem de perto de um branco translúcido como o meu, – trançados em um penteado que eu reconheci como sendo uma representação da espinha de um peixe e um terno bem cortado de seda rosé puxado para o dourado, estava mais para uma nobre rica com tino para negócios do que qualquer outra coisa.
— Venha, não temos tempo a perder. — ela se virou, cruzando as mãos atrás das costas e caminhando para o interior do Acampamento. — Preciso mostrar suas acomodações o quanto antes, para que não perca o almoço.
— Mas as minhas malas...
— Não se preocupe, querida. — ela me olhou por cima do ombro, com um sorriso de quem sabia das coisas. — Enquanto esperava na carruagem, seu lacaio deu sua bagagem aos nossos funcionários para que pudéssemos adiantar o trabalho. Todos os seus pertences já estarão em sua instalação quando chegarmos lá.
Incerta com toda a rapidez, viro-me para o cocheiro e o lacaio que me trouxeram até aqui.
— Obrigada pelo trajeto seguro. Voltem com cuidado. — digo, acenando com a cabeça para indicar agradecimento e dispensa ao mesmo tempo.
— É uma honra. Fique bem, Vossa Alteza. — eles dizem, em uníssono e reverências sincronizadas, já preparando-se para partir.
Meus lábios querem pedir para que me levem de volta.
— Senhorita Waterbloom? — Aqua me chama, arrancando os meus últimos fiapos de esperança. — Devemos entrar.
E sem mais despedidas, a sigo pela ponte de madeira, tentando com todas as forças não olhar para trás ao ouvir o som dos cavalos se afastando.
* * *
O Acampamento Elemental era como um labirinto: cheio de curvas, árvores altas e lugares de aparência uniforme. Dispostos cerca de dez metros de distância uns dos outros, haviam vinte chalés. A maioria eram, em si, apenas construções simplórias e sem personalidade, mas cinco dentre eles possuíam estruturas diferentes e bandeiras coloridas fincadas na terra diante deles.
Notando minha curiosidade, a mulher de cabelos trançados limpou a garganta, assumindo a postura de uma antiga e conceituada guia pouco antes de começar sua explicação:
— Você em breve verá que não temos muitos alunos. Somos reservados e selecionamos apenas os melhores candidatos de nossa lista de inscrição, por isso a maio parte das nossas instalações está inativa. — disse Aqua, apontando então para o primeiro chalé: — A bandeira branca é a do nosso pupilo do Ar e a prateada é a da Geada. À direita, verde-cintilante, é da Terra. Azul-marinho, Tempestades. Mais ao norte, por último, você verá uma bandeira vermelho-rubi, do...
— Fogo. — completo, sentindo arrepios erguerem os pelos em meus braços.
Aqua parece achar graça.
— Já conheceu algum Dominador das Chamas, senhorita Waterbloom? — indagou, curiosa.
— Oh, não, não, claro que não — me apresso em dizer. — Nunca tive o despra... Digo, a oportunidade.
— Então fico feliz em dizer que o Reino do Fogo, Firefall, tem seu filho sob nossa tutela vai fazer dois anos.
Sinto meu desconforto aumentar ligeiramente.
— Quer dizer que o príncipe do Fogo está aqui? — questiono, abismada. —Não um Dominador qualquer, mas o próprio príncipe em pessoa?
A minha tutora assente com a cabeça, prosseguindo com sua caminhada.
Conforme nos aproximamos da bandeira escarlate, me sinto mais e mais consciente de mim mesma do que jamais estive. Como se estar perto do meu elemento rival reafirmasse a magia da Água em meu sangue.
— Bem, é aqui onde você ficará — disse Aqua, indicando um chalé alto de madeira branca, com um bastão de ferro erguendo uma bandeira azul-celeste que oscilava firmemente ao vento. Senti meu corpo se aquecer ao ter a lembrança de meu quarto no castelo bem vívida na mente.
Talvez aqui não fosse tão diferente de casa, penso, com um sorriso.
— De novo não — ouço a mulher ao meu lado murmurar, em um tom consternado.
— O que está acontecendo? — indago, preocupada.
— Veja por si mesma — disse ela, erguendo o queixo para uma enorme fumaceira se erguendo a apenas alguns metros de distância de nós.
Sigo seu rastro, e minha testa se enruga ao perceber onde ela tem início.
No chalé do Fogo.
— É um incêndio! — grito, tentando obter uma melhor visão da situação para descobrir se a estrutura já estava comprometida. — Temos que apagá-lo antes que se espalhe para os outros alojamentos!
— E você acha que consegue fazer isso? — Aqua perguntou, arqueando uma de suas delineadas sobrancelhas esbranquiçadas.
Olhei para ela, surpresa.
Estou aqui por não conseguir controlar meu dom como deveria e sem mais nem menos recebo uma missão para conter fogo? Sem nem uma aula prévia ou conselho antes de partir para ação? Um belo método autodidata este que temos aqui.
E um que estou prontíssima para aceitar.
Correndo na direção do chalé do Fogo, avisto as chamas brilhando em seu interior e junto as mãos em concha. Separando-as lentamente, um globo de água se cria e toma forma entre meus dedos, crescendo a medida que minhas palmas se distanciam uma da outra.
Quando minha esfera d'água está grande o suficiente para encharcar uma pequena multidão de pessoas, miro na abertura da janela pela qual a fumaça está saindo e toda a água que reuni a atravessa com a força de um jato.
As chamas que antes queimavam lá dentro se apagam, e uma pesada nuvem de vapor sobe.
— Parabéns, Senhorita Waterbloom. — Aqua me parabeniza, sua voz se tornando mais alta conforme seus passos a aproximam de mim. — Você conteve o fogo em um piscar de olhos. Achei que tivesse um grave problema para controlar seu dom.
Encaro minhas mãos.
— Eu também — sussurro, chocada com a minha própria proeza.
Contudo, não tenho tempo para assimilar a sorte do que acabou de acontecer, porque a porta do chalé é escancarada e uma densa camada de vapor branco se assoma acima de nós, ocultando a pessoa atrás dela.
Mas não por muito tempo.
Um rapaz ruivo sai em meio a névoa de ar quente, sem camisa e descalço, calças escuras de algodão pendendo de seus quadris. Sinto meu rosto corar com força e sei que não é por causa da temperatura: eu nunca vi um homem seminu antes.
E nesse aqui, em especial, há muita coisa para se ver.
O príncipe do Fogo é magro, mas cada parte de seu abdômen é modelada por um contorno de músculos rijos e com longas veias percorrendo sua pele.
Desvio o olhar de seu corpo, me sentindo uma pervertida. E então cometo meu primeiro erro.
O olho nos olhos.
E apesar de sua afinidade com as chamas, a coloração de suas íris é de um azul tão profundo quanto o das gélidas águas do oceano.
Engulo em seco.
Sua expressão também não é nada calorosa.
Nariz reto, maçãs do rosto altas e lábios pressionados em uma linha fina e impassível.
Noto os punhos cerrados de cada lado de seu corpo.
— Foi você quem fez isso? — ele me questiona, sua voz causando arrepios em minha nuca e braços. Seu timbre é rouco e possui um sotaque levemente arrastado. Entretanto, essas são apenas características. O que me desarma é o tom raivoso contido nela.
— Isso o quê? Você quer dizer, apagar o incêndio? — começo, esclarecendo bem o que aconteceu aqui. — Se é a isso que se refere, então sim, fui eu.
Ele me encara durante um segundo, olhando-me de cima a baixo antes de soltar o ar pela boca em um som de puro desdém.
— Eydam. — Aqua adverte.
O príncipe do Fogo – Eydam, – não faz nenhuma menção de tê-la ouvido enquanto caminha em minha direção. A cada passo, seus cabelos molhados e tronco úmido parecem secar, fumaça quente se erguendo ao redor dele, que para a pouquíssimos centímetros de distância de mim.
Meu coração bate com força no peito.
— Então quer dizer que você mal chegou e já quer arrumar confusão, não é mesmo? — ele disse, em voz baixa. — Inundando o meu chalé com todo esse aguaceiro podre.
Fico boquiaberta.
— Confusão? Eu estava tentando ajudar! — me defendo, indignada. — Suas instalações estavam pegando fogo!
— E no que isso te diz respeito? Não foi em você que eu pus fogo, foi? Sua escória da água intrometida.
O ultraje que me atravessa é tanto que faz com que eu leve sem nem pensar a mão de encontro ao rosto dele. Não costumo ser adepta da violência, mas ser chamada de escória por alguém que nem me conhece é mais do que posso permitir.
— Pérola — Aqua tenta alertar, — Não faça isso!
É tarde demais.
Assim que meus dedos encostam na pele de Eydam, um grito fica entalado em minha garganta.
O contato queima.
Agarro minha mão, lágrimas inundando meus olhos ao contemplar a queimadura de segundo grau por toda a extensão dos meus dedos até a palma. Arde e dói como o inferno.
O príncipe a minha frente pisca, e juro que faíscas laranjas voam no azul escuro de seus olhos.
Dou um passo para trás, mordendo o lábio para não gritar. E falho miseravelmente.
Grito tão alto que pássaros alçam vôo no céu.
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