CINCO

O LUGAR ONDE FAZÍAMOS NOSSAS refeições era basicamente um imenso deque de madeira com colunas se erguendo em cada ponta de sua extensão, entrelaçando-se em cima e formando um telhado alto sobre nossas cabeças. Por conta da falta de paredes, tinha-se a sensação de se estar ao ar livre, mas apesar de todo o estilo informal, todas as mesas e cadeiras tinham sido muito bem postas, forradas com toalhas de linho branco e vários talheres e louças à disposição. Vasos enormes de flores estavam posicionados nos centros das mesas, adicionando uma pitada de elegância ao espaço e deixando um leve aroma primaveril no ar.

— Pérola! — me viro ao som do meu nome sendo chamado e localizo Rosalina acenando de uma das mesas. Ela se levanta de seu assento e vem até mim, um sorriso amigável no rosto. — Você está ótima!

Olho para baixo, encarando o vestido de tafetá verde-água sem alças e de comprimento apenas um pouco abaixo dos joelhos que escolhi. Em suma, é bastante simplório, tendo como único detalhe chamativo a fina faixa de brilhantes que circunda a minha silhueta. A saia não possui um  volume grande o bastante para que me deixe desconfortável e as sapatilhas brancas de tiras prateadas que estou usando são a parte mais delicada da minha vestimenta.

— Eu não sabia se o jantar seria formal ou não. — digo, tentando obter alguma informação sobre como as atividades em conjunto funcionavam por aqui.

— Não se preocupe. — Rosalina balançou a cabeça, caminhando de volta ao seu lugar fazendo com os dedos um gesto para que eu a seguisse. — Costumamos usar o que queremos durante as refeições. Só estamos bem vestidos hoje porque é o código de etiqueta requerido para dar as boas vindas aos recém chegados.

— Mera formalidade, então. — eu digo, quando paramos em frente a mesa onde ela estava sentada.

Lá, haviam mais duas outras pessoas, às quais fui imediatamente apresentada:

— Rapazes, esta é Pérola. Pérola, estes são Markan — indicou um garoto de cabelo acinzentado e rosto angelical. — E Isaac. — então fez um floreio na direção de um rapaz de olhos bonitos e cachos de um preto azulado que despontavam sobre suas orelhas.

— Prazer em conhecê-los. — digo, com um sorriso sem mostrar os dentes e um rápido aceno de cabeça.

— O prazer é nosso. — diz o de cabelo cinza. — E a propósito, esqueça que algum dia ouviu a palavra 'Markan' ser relacionada a mim. Esse nome é de longe o meu único defeito. Mark, eu prefiro. Soa mais jovial, né?

Dessa vez, meu sorriso é aberto.

— Tenho que concordar com você... Mark.

— Viu só, Lina? — disse ele, olhando para Rosalina, que revirou os olhos. — Não é tão difícil assim me fazer parecer descolado.

— A culpa não é minha se você não gosta do seu nome e quer fazer com que as pessoas te chamem de outro jeito.

Enquanto eles entravam em uma daquelas discussões que só as pessoas que eram amigas há muito tempo podiam ter, o rapaz de cabelo escuro se levantou de seu lugar e puxou uma cadeira para mim.

— Não precisava ter se incomodado. — eu disse, baixinho, sentindo meu rosto esquentar um pouco.

Isaac meneou com a cabeça.

— Você é o motivo de termos um jantar especial esta noite. — ele respondeu, sua voz suave como uma pétala de rosa fazendo cócegas em meus ouvidos. — O mínimo que posso fazer é ajudá-la a sentar-se à mesa. Não que você precise, é claro. — completou, com um sorriso de canto de boca extremamente atraente.

Eu quase pude me ouvir suspirando.

— Eu soube da confusão com Eydam. — Isaac falou, bebendo uma taça de um suco que eu presumi ser de amora pelo cheiro. — O chalé dele virou um belo aguaceiro.

— Acabou acontecendo. — eu disse, encolhendo os ombros, me sentindo meio envergonhada. Será que esse maldito confronto com o idiota do príncipe do Fogo me perseguiria durante toda a minha estadia aqui? — Contudo, foi apenas um acidente.

— Acidente ou não — ele continuou, balançando a taça entre os dedos. — Você fez algo que eu queria fazer há muito tempo. Sou de um Clã que é responsável pela manipulação das chuvas e sempre quis descer um temporal em cima do Cérebro de Fósforo.

Arregalei os olhos, surpresa e divertida.

— Cérebro de Fósforo? — sacudi a cabeça, subitamente mais à vontade. — De onde você tirou isso?

Ele deu de ombros, sorrindo.

— Digamos que eu sou bom com apelidos.

— É mesmo. — Mark concordou, aparentemente tendo encerrado seu debate com Rosalina. — Foi ele quem deu a ideia de abreviar meu nome.

— E o meu. — a Controladora da Terra adicionou, com o rosto corado.

— Nunca tive um apelido. — falei, olhando para Isaac. — Alguma sugestão?

Ele parece pensar por um segundo e então abre a boca para dizer:

— Girino Branco. Você sabe, por causa do cabelo.

Engasgo. Mark e Rosalina olham para um ponto acima da minha cabeça ao mesmo tempo que Isaac fecha a cara. Nem mesmo preciso me virar para saber quem é o estraga prazeres metido a engraçadinho.

Eydam tem um timbre de voz particularmente incomum.

— Eu acho que você não foi convidado à esta conversa, Cérebro de Fósforo. — disse o garoto sentado ao meu lado. — E também acho que já é grande o suficiente para saber que é um mau hábito se intrometer nos assuntos dos outros.

— E você quer saber o que eu acho, Broswood? — Eydam pergunta, e sinto uma lufada de calor nas minhas costas quando ele põe as mãos sobre o encosto da minha cadeira. — Perdão, não o que eu acho. O que eu tenho certeza é de que em nenhum momento pedi a sua opinião. Agora, se me der licença, eu e a senhorita Waterbloom temos um pedido de desculpas mútuo a fazer.

Tendo dito isso, ele puxa minha cadeira, fazendo com que eu me levante no ato, pronta para mandá-lo ir à merda. Entretanto, cometo o erro de olhá-lo nos olhos primeiro e me perco por um segundo na intensidade deles. Eydam possuía íris de um azul que eu só havia visto antes ardendo em meio às chamas.

E todo mundo sabia que as chamas azuis eram as mais quentes.

Felizmente, o meu fascínio dura pouco, pois como o imbecil narcisista que é, o Príncipe do Fogo interpreta meu silêncio da maneira errada:

— Eu sei que sou bonito, Girino, mas faça o favor de não babar. — ele diz, abotoando o paletó do terno risca de giz que está usando.

— Falando em favores, por que você não me faz um e vai para o inferno? — rebato, com raiva.

Ele estreita os olhos, se inclinando na minha direção e dizendo em voz baixa:

— Você não sabe o quanto eu adoraria te devolver o favor que você me fez hoje mais cedo no chalé, mas para a sua sorte, Aqua está de olho na gente e eu não quero levar mais uma bronca por sua causa.

Sigo discretamente o seu olhar e me deparo com a instrutora de pele escura e cabelos esbranquiçados nos observando no centro do salão, cercada de algumas pessoas que provavelmente deviam ser os outros professores. Eles claramente também estavam de olho em nós.

— Não sei porque tenho que te pedir desculpa. — eu disse, com um sorriso artificial colado no rosto. — Eu já disse que não foi de propósito.

— Ah, querida, o tapa que você me deu com certeza não foi sem querer. — o príncipe do Fogo sorriu de volta, suas palavras pingando sarcasmo.

— Você me chamou de escória.

— Eu estava com raiva e ensopado.

— E isso explica alguma coisa?

— Explica muita coisa.

— De onde venho as pessoas não destratam umas às outras como você fez sem um motivo suficientemente bom para isso.

— Você...

— Eydam, por favor. — uma voz mais ao fundo o chama.

Ele se vira e eu avisto uma garota de cabelo castanho na altura dos ombros e um lindo e branco casaco de pele pendendo pelos antebraços vir em nossa direção. Ela tem olhos que só posso descrever como afiados, de um azul gelo quase translúcido de tão claro.

Suponho que esta seja Nevasca.

— Eydam. — ela repete, quando chega até ele, um sorriso apaziguador em seu rosto sardento. — Você não vai querer levar mais uma advertência, vai? Será a segunda vez essa semana e  isso só vai servir para prejudicar o seu desempenho. Você só precisa aguentar um pouquinho e pedir desculpas para essa... — ela deixa o resto da frase no ar ao me notar de pé ali, mas não se dá ao mínimo trabalho de ser cordial. — Essa menina.

Essa menina tem nome, sua mal educada. — eu disse, sem me conter.

— Do que foi que você... — ela começou, mas então foi cortada:

— Fique fora disso, Nevasca. — Eydam retrucou, parecendo irritado por tê-la se intrometendo. — Seja lá quantas advertências eu for receber, não te diz respeito.

— Mas...

Fique fora disso.

Parecendo magoada e ofendida, ela passa por nós bufando, seus sapatos ecoando no piso de madeira conforme se afasta.

— Ela é a sua namorada? — pergunto, achando graça de toda a ceninha que se desenrolara na minha frente. — Vocês dois combinam. Têm o mesmo temperamento surtado.

— Alguém já te disse que você precisa aprender a segurar a língua?

— Tantas pessoas me disseram isso que está além de mim contabilizar. — confesso, respirando fundo. — Quer saber? Vamos acabar logo com isso. Se tenho que fazer esse pedido estúpido de desculpas, então que seja rápido.

Eydam deu um passo para o lado, como se para abrir o caminho para mim. Então, com um gesto arrogante que beirava o deboche, ele estendeu o braço e indicou o espaço vazio no centro do salão aberto.

— Depois de você, querido e adorado Girino.

Dou-lhe um dos meus mais brilhantes – e mais falsos – sorrisos e, sem nem hesitar, ando a passos firmes até onde os instrutores estão reunidos. Eydam é silencioso atrás de mim, mas ainda posso saber que ele está vindo.

Definitivamente, a única coisa em que concordamos é em não prolongar esse momento humilhante de nossas vidas.

— Com licença — eu digo, ao ver Aqua conversando com um dos professores. — Eu e Eydam gostaríamos de nos retratar sobre a confusão desta tarde.

Se virando para me encarar com um belo sorriso no rosto, a mulher de pele negra e cabelos brilhantes indica o homem ao seu lado com a mão.

— Olá, Pérola. Fico feliz de ver que se sente melhor. Deixe-me apresentá-la para Estevan, nosso Controlador do Fogo.

— É uma honra. — digo, acenando brevemente com a cabeça para o senhor de meia idade de cabelos pretos um tanto grisalhos e olhos dourados que pareciam me avaliar com atenção. — Então, Aqua, eu gostaria de...

— Sim, sim, claro! Venha aqui. — e sai me puxando pelo braço, capturando de uma bandeja uma taça de um líquido azul vibrante com os dedos. De repente, tirando de sabe-se lá os mares onde uma colher de prata, ela bateu o talher contra o vidro, na clara intenção de despertar a atenção de todos os presentes. — Senhores e senhoritas. Estamos reunidos nesta bela noite para darmos as boas vindas à nossa nova integrante do Acampamento Elemental, a Princesa Pérola, de Aquatick.

Uma considerável salva de palmas veio em resposta, sendo dada por Rosalina, Isaac e Mark, além dos demais instrutores presentes. De seu assento em uma das mesas vazias, Nevasca apenas encostou as mãos uma na outra, sem se preocupar em ao menos fingir polidez.

Céus, o que essa menina estava fazendo aqui? Ela tinha era que ser mandada para uma instituição de boas maneiras!

— Como vocês bem sabem, é importante lembrar dos valores que pregamos em nosso lar. — Aqua prosseguiu, assim que as palmas cessaram. — Não somos muitos, mas somos como uma família. Prezamos pelo bem estar e bom comportamento de todos os nossos pupilos, além, é claro, de garantir que cada um de vocês saia daqui pronto para assumir seus deveres para com o seu Dom. Nesta terra, as diferenças de todos são aceitas e quaisquer maus entendidos são resolvidos. Sabendo disso, o senhor Scarfiery e a senhorita Waterbloom gostariam de deixar claro que o episódio que ocorreu hoje cedo foi completamente isolado e que não voltará a acontecer.

Nesse momento, ágil e soturno como um corvo, o Príncipe do Fogo surge ao meu lado, adotando o semblante de alguém com um talento genuíno para fingir culpa e arrependimento:

— Gostaria de emitir oficialmente o meu pedido de desculpas à Senhorita Waterbloom. — diz ele, olhando para a curta fileira de instrutores atrás de nós e então para mim. — Começamos com o pé esquerdo, mas não quero que continuemos desta maneira. Peço que me perdoe. — e estendeu a enorme mão em minha direção.

Olho de sua palma estendida ao seus olhos azuis cobalto. Quanto cinismo, penso, antes de apertar sua mão. Eu também sabia atuar.

— Eu que peço que me perdoe, Senhor Scarfiery — pronuncio cada palavra lentamente, esperando que o tom soe o mais sincero possível para algo que é claramente artificial. — Não deveria ter batido no senhor.

— Você não é a primeira e nem será a última. — diz ele, ainda segurando a minha mão.

— Presumo que o senhor esteja certo. — respondo, tentando soltar de seu aperto que agora já dura tempo demais.

— E estou — pontuou, me soltando e se afastando em seguida.

— Muito bem — Aqua diz, animada e totalmente alheia a tensão que se instalou no ar repentinamente. — Vamos dar início ao nosso jantar!

Quase no mesmo instante, todo o burburinho de conversas retorna e até mesmo uma agradável música de fundo começa a tocar.

Olho em direção às mesas e vejo o trio com quem conversei minutos atrás acenar amigavelmente para que eu retorne e me junte a eles. Isolada em seu mau humor, Nevasca permanece sozinha.

Em vão, procuro ao redor, mas Eydam já se foi. Um tanto indelicado da parte dele não ficar nem ao menos sentado por alguns minutos à mesa, apesar de não me surpreender. Sacudo a cabeça, repreendendo a mim mesma. A falta de tato dele não era problema meu.

Não querendo perder mais tempo pensando sobre sua estranha ausência, caminho sorrindo de volta aos meus possíveis novos amigos.

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