L1|| I. Se Você Não Voltar, Eu Te Busco

Sentada a beira de meu leito ouço um barulho estranho, como de tecido se rasgando em baixo volume. Assusto ao ver algo vaporoso surgir e crescer a minha frente e numa tentativa de fuga, caio no chão.

— Caliandrei... — o vulto me chama sem boca mas com clareza. — Não tenha medo, fada de Adaris. Não lhe farei nenhum mal. Acredite, venho até você pois quero o seu bem.

— M-meu bem? — pergunto. Minha magia, mesmo fraca já coça em minhas palmas, pronta para ser usada em minha defesa caso eu precise.

— A magia que tem agora correndo em ti não me fará nada. Não é suficiente. — a sombra invasora diz e eu posso ouvir meu coração bater mais forte em resposta. Mesmo com ela jogando essa verdade em minha cara, não abaixo a mão. — Sua pífia magia tem raízes nesta terra, não? Olhe a sua volta. Lhe parece esta uma terra forte?

Mesmo sabendo que a resposta é não, olho a minha volta. Do topo de meu leito-árvore, uma de muitas aqui em meu mundo, posso claramente ver: Adaris é a mais pura decadência. Fraca, instável, sem cor, sem vida.

Esse é meu mundo. Eu sei bem onde vivo.

— Acreditaria se eu dissesse que nem sempre Adaris foi assim? — ela retoma minha atenção.

— Quem é você? — repito com um pouco mais de firmeza.

A Sombra se aproxima, movendo-se sinuosamente. O medo me domina mas não fujo, fico aonde estou.

— Mesmo que eu lhe responda, você não entenderia. E não posso lhe mostrar minha face neste momento. Deve saber que minha magia, assim como outras deste tipo são proibidas em Adaris. Não quero que Garou saiba que estou aqui. Mas se ouvir o que tenho a dizer, prometo que me conhecerá.

Medo e curiosidade dançam dentro de mim. Meus dedos querem tocar a movente Sombra a minha frente então meu braço se estende por si só e a toca. O vapor escuro envolve minha mão lentamente, formando círculos sobre minha pele. Um ar quente e vivo, lateja minhas veias e por pouco quase me queima.

Retraio minha mão. Jamais vi ou senti algo assim.

— O que você quer?

— Te ajudar. Te ensinar o que precisa saber para recuperá-la. — eu não digo nada e ela continua. — És tão jovem, Caliandrei. É também uma das poucas fadas de Adaris que ainda vivem aqui, correto? E se eu disser que houveram muitas outras como você? Que Adaris era uma terra verde e deslumbrante, berço de criaturas fantásticas e suas magias?Talvez eu deva te mostrar...

Meus olhos se fecham contra minha vontade. Dentro deles, vejo o mesmo lugar aonde estou, mas absolutamente diferente.

O horizonte não é mais roxo escuro, mas verde e laranja em diferentes e brilhantes tons. Flores, plantas, árvores, pedras, água! Todos os elementos, seus sons, odores e essências pintam e cantam a paisagem harmoniosa de Adaris. Há Fus, Ndales e Herberas ao montes, assim como Tátires e Elfos. E fadas! Com suas asas coloridas pairam no ar, cultivando os grandes lírios onde se formam e nascem! Eu nunca vi um desses lírios antes, apenas ouvi falar que existiam, pois não mais se criam fadas, já que se precisa de magia e esta nos é escassa no momento.

As cores e o calor da visão quase me cegam. Eu sempre senti essa verdade dentro de mim, mas jamais imaginei que essa Adaris realmente existiu pois nasci no meio de sua época de escuridão.

Por mais lindo que seja, não posso me deixar iludir. Relutantemente, me nego a olhar mais. A imagem se desfaz e quando os abro novamente, o mundo no qual vivo está como sempre esteve.

Sem vida.

— Isso foi real, Caliandrei. Esta era Adaris antes de Garou se apoderar dela. Guendri...

— Você conhece Guendri?

Guendri, o deus e gerador de Adaris e todas as espécies que aqui vivem, é alguém que só ouvi falar o nome. Infelizmente nunca o vi, apesar de ter ouvido que era costumaz vê-lo apreciando o mundo em que criou, confraternizando com sua criação. Mas ele desapareceu. E até mesmo para quem o conheceu, é dificil saber quando voltará; Para muitos que nunca o viram, é mais difícil ainda acreditar até mesmo que existiu.

Mas não para mim.

— Antes de Guendri partir, ele deixou uma de suas maiores criações aqui para que protegesse Adaris e mantivesse seus eixos mágicos durante sua ausência.

— Garou é a maior criação de Guendri? — Até onde sei, ele é nossa proteção e regente.

— Não. A Última Ordem Regencial de Adaris é matriarcal. Guendri deixou fadas que criou com seu próprio sangue para proteger seu reino e as chama de Filhas. Não um elfo. E você precisa encontrá-las...

Ouvi rumores das Filhas de Guendri uma única vez em toda minha existência. Nunca pude confirmar pois ninguém que restou em Adaris as viram para saber se era verdade. Fadas mais fortes que a própria guarda de Adaris composta por Valkírias, criadas pelo próprio Guendri para substituí-lo em uma possível ausência. 

Mas não passam disso: lendas. 

— Garou sempre foi nosso líder, todas as valkirias o seguem e obedecem suas ordens. Elas não fariam isso se ele não fosse o escolhido Regente. 

— Engana-se. Se Garou fosse o Regente, Adaris não estaria nesta situação precária, nem a magia tão fraca que seus habitantes mal podem sentir ou praticá-la. — diz a Sombra.

— Garou diz que estamos assim por causa do abandono de Guendri, que nos deixara e não deveriamos esperar por ele, pois se foi e levou a magia com ele. 

— Garou mente.

— E você não? 

— Me arrisco e muito ao vir até você, pequena. Certamente, nunca viu algo como eu. Sabe qual é a punição para intrusos, não? Ademais, não há mais tantas fadas ou outros seres restantes para quem eu possa oferecer ajuda. Ou mais importante, que seriam capazes de cumprir com os passos necessários para a mudança. Mas vi em você, Caliandrei, uma oportunidade de colocar tudo em seu lugar. Se não acredita em mim, pode me testar.

— Como? 

— Pode começar por exemplo, com o que sei sobre Garou. Sabia que ele conhece pessoalmente uma das filhas de Guendri? Não só a conhece como a mantém viva aqui, em Adaris.

Meu choque é audível. Isso é uma absoluta insanidade! Garou jamais faria isso, jamais mentiria para nós!

— A-aonde? 

Algo dentro de mim me instiga a querer saber mais.

— Você o serve na corte, não? — ela indaga e eu me pergunto como ela sabe tanto sobre mim. — Elfos tem variados níveis de poderes telepatas. E é assim que ele a esconde de todos. Sozinha, desmemoriada e sem razão para sua existência além de agradá-lo e o satisfazer. Digamos que ao tentar se livrar das Filhas, Garou se apaixonou por uma, apagou sua memória e a manteve para si.

— Então, se ele a tem aqui em Adaris como você diz, por quê os eixos mágicos ainda estão desalinhados? 

— Porquê a que ele mantém em cativeiro não foi a escolhida por Guendri para Regenciar. Quando ele as criou, as fez diferente para que pudesse escolher ao longo de seus treinamentos a mais capaz de Regenciar seu mundo. E mesmo ele não a escolhendo para ser Regente, ela foi treinada para liderar a guarda-regencial, possui excelentes habilidades de combate. Para provar que digo a verdade, te direi aonde encontrá-la. Mas com uma condição.

Uma súbita curiosidade e vontade de saber se essa é mesmo a verdade, me toma. 

Mesmo com medo, aceito a oferta.

— Qual condição?

— Após encontrar essa Filha, você precisa interpelar pela outra. E não será tarefa fácil pois terá que procurar em um outro mundo. 

— Não podemos sair de Adaris, é proibido.

— Ainda quer seguir as regras de quem mente para você? Encontre a que Garou esconde e eu virei até você. Quando entender que digo a verdade te darei o necessário para encontrar a outra. — sem saber se hesito ou não ela reforça a oferta. — Mais uma prova que lhe darei para que acredite em mim: nas costas da fada que encontrar haverá uma marca entre suas asas. É uma marca de Guendri e somente suas filhas o tem.

Depois que a Sombra partiu, eu debati várias vezes se deveria mesmo procurar.

Nos dias seguintes, vasculhei entre as grutas escuras ao extremo nordeste de Adaris, atrás do castelo e corte de Garou, sem deixá-lo saber que eu o fazia. 

Demorou dias e dias mas por fim, encontrei um lago de águas cristalinas. Um lugar frio e escuro, com cortante silêncio. 

E para minha surpresa, lá encontro uma fada despida de vestimentas e memórias, o corpo perfeitamente esculpido de uma amazona, de pele ricamente negra e olhos incrivelmente verdes. 

Entre suas asas, uma marca fluorescente. 

Me aproximo dela cautelosamente e tento conversar. Ela não sabe nem seu próprio nome, mas de acordo com a Sombra, Guendri lhe nomeou Alexandrai. Eu lhe disse isso e muito mais: tudo sobre mim, sobre Adaris, o pouco que eu sabia sobre Guendri e sua irmã, e a mais importante verdade sobre o elfo que na verdade a aprisionava ali, Garou.

E após alguns outros encontros entre nós, ela passou a confiar em mim. Assim como eu confiei nela, resolvendo assim também acreditar na sombra.

Convencida e revigorada com a possibilidade de uma nova Adaris onde todos possam viver livres em sua magia, ao me reencontrar com a Sombra, concordei em fazer o necessário para recuperar a verdadeira Regente.

Ela me diz que a Regente está no mundo humano. Já ouvi falar que existem outros mundos, mas nunca estive em nenhum deles. 

— Não tenha medo, pequena. Os humanos são seres peculiares, mas amigáveis em sua maioria. Há também outros seres de Adaris vivendo normalmente lá após terem sido expulsos daqui por Garou. — a sombra tenta me encorajar. — Se não fosse capaz de fazer isso, eu não viria até você. Apenas peço que mantenha meu nome e a magia que te darei sob o mais absoluto segredo. Como já te disse, corro riscos ao vir até você. Mas se fizer tudo como digo, dará tudo certo.

E assim aceitei. 

Eu sempre soube dentro de mim que sempre houve algo melhor para Adaris e agora eu sei que é verdade. Nem mesmo quando entendi o quanto poderia me custar resgatar a regente pensei duas vezes. 

Eu precisaria de magia, pois a minha é pouca. 

Eu precisaria enganar Garou. E isso não seria nada fácil.

Mas não importa. O futuro de Adaris não tem preço. Alguém precisa fazer algo, e esse alguém sou eu.

Mesmo que isso custe a minha vida.

E se esse é o preço... eu não tenho medo de pagar.

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