🥇 Quem De Entre Eles?
Meliora tinha recuperado fragmentos do seu vazio ao reconhecer Renya à porta da guilda. Eram difusos, mas vívidos, espalhados pela totalidade da sua estadia em Nova Tirrent. Hoje não seria tarefeira se a mais baixa não a tivesse apresentado à profissão.
Mas a humana não estava sozinha. Pelas reações, os dois homens com ela eram parte dos cacos que faltavam no puzzle de Meliora. Puzzle esse que, aparentemente, estava em risco de permanecer inacabado: para seu terror, um nome que não lhe era estranho tinha desaparecido há dois dias.
De súbito, bílis trepou pelo esófago de Meliora, obrigando-a a recolher a um canto para a expulsar. Mal dormira. Tivera febre o dia anterior. Os tremores ainda não tinham cessado. E agora as náuseas e os vómitos. Mais ridículo do que a sua figura naquele momento, era não saber se tudo derivava de sintomas agressivos da gravidez para a qual não se lembrava de ter contribuído ou da abstinência de uma droga que não tinha ideia de consumir.
Poderia adivinhar o que lhe teria passado pela cabeça nessas alturas, mas queria poder recordá-lo. Assim como queria outra dose de Ster.
Céus, o impulso!
Pensou noutra coisa. Ou tentou. A verdade é que não conseguia.
Queria ter dormido uma noite em paz. Queria não se sentir a desfalecer. Queria ter cura avançada em vez de afinidade à porcaria do plasma. Queria ter mantido celibato a vida toda. Queria...
— Está tudo bem?
Meliora olhou o interveniente de soslaio, limpando a boca sem um pingo de elegância. Era um rosto sem nome, que ela ignorou prontamente. Endireitou-se, fitando para lá dele. Hesiod amparou-a.
— Diziam?
Renya recapitulou. Foram a Zivera e voltaram. Todos, menos Kitsla. Vinha atrás, tinham a certeza. Até não terem. E estava há demasiado tempo sem dar sinal de vida para ser normal.
Preocupados, os três iam à guilda contratar alguém para encontrar Kitsla. Depois de os ouvir, Meliora impediu-os novamente de entrar. Ela era tarefeira, podia aceitar a requisição. Além disso, precisava de garantir que mais nenhuma tonalidade lhe fugia das mãos antes de conseguir pintar a escuridão que lhe eram os últimos 4 anos. Podia ser irracional, mas um medo profundo do fenómeno se repetir nos restantes viajantes, deixando-a para sempre incompleta, apoderou-se dela.
Por isso, a Haviz aceitou o encargo, mesmo sem pedido formal ou recompensa estabelecida.
— Tens a certeza, Ora? Como é que vais encontrar alguém que não recordas?
O grupo olhava Hesiod, que olhava Meliora. Ela fez o sinal universal de irmãs mais velhas para pedir silêncio, sem argumentar que um desconhecido poderia fazê-lo na perfeição. A única diferença entre ser ela ou um qualquer tarefeiro, é que não só os estaria a ajudar a encontrar o amigo como também tentaria encontrar as respostas que precisava. Todos saiam a ganhar. E ela sempre conseguira lidar com o multi-tasking, pelo que não haveria conflito de objectivos.
Hesiod, como bom irmão mais novo, amochou.
— Onde é que estavam quando falaram com ele pela última vez? — perguntou, instigando o grupo a sair dali.
Precisava de mais informações. E de andar. Tinha sido essa a salvação da mãe nas suas oito gravidezes, poderia ser para ela também. Se é que algum do seu mal estar se devia à recém-descoberta gravidez.
Renya colocou-se a seu lado, os homens seguindo as duas mulheres pelas ruas de Nova Tirrent a um passo confortável. Ela explicou que, ao entrarem na cidade, tinha olhado sobre o ombro para encontrar Kitsla a espreitar uma banca de bugigangas. A humana tinha comentado a situação de maneira jocosa, salientando a apetência do homem para se endividar por coisas que não valiam a pena. Todos se riram, incluindo o visado. Depois, com um "eu já vos apanho" da parte dele, os três continuaram a andar, confiando que assim seria.
Nunca lhes passou pela cabeça que não o tornariam a ver.
— Será que ele voltou a casa sem vos informar? — questionou Hesiod.
Os companheiros de Renya apressaram-se a defender o carácter do amigo e as circunstâncias invulgares do desaparecimento, ultrajados com a insinuação. Soltaram também informações sobre a viagem e possíveis inimigos de Kitsla, para convencer o gigante do seu erro.
Enervada, Meliora decidiu corrigir a trajetória, para que pudessem passar pela dita banca. Era um sólido ponto de partida e um motivo para os calar. A cabeça não aguentava tanto falatório exaltado.
Subiram a rua, cortando pela Viela Torcida para chegarem à Praça de Todos os Destinos. Não era a Haviz a liderar o caminho, mas Hesiod reparava que a irmã, mesmo distraída, se desviava de obstáculos como se o corpo soubesse por onde ia, mesmo com a amnésia.
Meliora tentava refletir sobre o que ouvia, apesar da miríade de distrações que a acometiam. Mas o latejar ritmado da sua mente a forjar uma linha de raciocínio saiu furado: era só barulho e peso e incómodo, nada de ideias brilhantes. Estava demasiado barulho ali, não estava?
— Cuidado!
A granada detonou antes que o grupo se pudesse preparar para não inalar o fumo. No meio da cortina de gás, Meliora sacou da arma, lutando para controlar a vontade de bolsar. Aquilo não ajudava às náuseas.
Vultos passavam para trás e para a frente. Mesmo sem ver, ela podia ouvir os golpes trocados e o par de disparos de manopla, provavelmente à queima-roupa. Pareceu-lhe ouvir o brandir de lâminas também. Com a arma em riste, procurou inimigos, acabando por se deter. Era toda tremeliques, numa instabilidade incaracterística, e não queria acertar o alvo errado. Porém, o seu medo não se concretizou: quando deu por si, estava desarmada, os braços torcidos e as costas contra um peito avantajado.
A luta cessou. Correu uma aragem. No meio dos vultos caídos ou imóveis nas posturas de combate, um deles sobressaía pelo à vontade.
— Kitsla! — gritaram.
Meliora nem fez caso, não percebendo se o interpelado era vítima ou culpado da confusão. Estava demasiado vidrada em quem caminhava para si.
— Adso — deixou escapar, sem saber o porquê. Tinha aquela única palavra na língua, mas nada na mente.
— Olá de novo, Meliora.
E algo primitivo, bem no fundo da sua intimidade, estremeceu.
998 palavras
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