Capítulo único

As luzes dos postes passavam pelos olhos de Lisa em intervalos regulares, mas isso não era importante. O que importava era o filme que passava em
sua cabeça: Seu filho de dois anos ficaria sem mãe. As lágrimas em seus olhos não foram causadas pela dor física que sofria enquanto seu carro capotava inúmeras vezes ladeira abaixo, mas sim por saber que o menino ficaria desamparado, visto que o pai desaparecera. "Que ele seja adotado por uma boa família". Foi o último pensamento de Lisa antes de ser tomada pela escuridão.

O carro chacoalhava e o barulho de vidro sendo quebrado era irritante aos seus ouvidos. Depois de mais algumas batidas, os cacos de vidro foram arrancados da janela do motorista e o rapaz tentava em vão abrir a porta.

— Não se preocupe, moça. Vai ficar tudo bem. Eu vou cuidar de você. — As palavras flutuavam nos ouvidos de Lisa, que não conseguia entender o que estava acontecendo e nem mesmo conseguia abrir os olhos, pois as pálpebras pareciam pesar uma tonelada.

Agachado ao lado de Lisa, que estava pendurada de cabeça para baixo presa pelo cinto de segurança, o rapaz checava sua respiração e pulso, percebendo o quanto ambos estavam enfraquecendo rapidamente enquanto ela sangrava por um corte na cabeça.

— Você consegue me ouvir? — perguntou ele enquanto pensava na melhor maneira de sustentar o corpo dela sem correr o risco de causar danos à sua medula espinhal quando soltasse a trava do cinto.

Um ruído lhe chamou a atenção, então ele voltou a olhar para a moça, que murmurava alguma coisa, ainda de olhos fechados.

— Faça ele saber que eu o amo.

— Ele quem? — perguntou só para fazê-la falar, pois achava se tratar de um marido ou namorado.

— Meu bebê. Diga a ele que a mamãe o ama mais do que tudo e que vai cuidar dele lá do céu. — As palavras causaram ainda mais urgência ao rapaz, pois não queria que a criança ficasse sem a mãe.

Por um instante Lisa abriu os olhos e o rapaz viu um brilho de lágrimas nublando o tom castanho deles.

— Você mesma vai dizer. — No instante em que proferiu as palavras a respiração dela cessou e seus olhos se fecharam novamente, fazendo-o abandonar o cuidado e removê-la do carro o mais rápido possível. Fazê-la voltar a respirar tornou-se a prioridade.

Com dificuldade soltou o cinto e a segurou o melhor que pode, para que ela não caísse de cabeça no teto do carro e a colocou no chão coberto de neve para iniciar a massagem cardiorrespiratória.

— Um, dois, três, quatro. Vamos lá, por favor, não faça isso comigo. Um, dois, três, quatro. É Natal, eu não quero perder você. — Pedia ele enquanto contava e pressionava firmemente as costelas dela.

Tempos depois...

— Eu sempre vou cuidar de você.

Após os votos de Alexander, o juiz os declarou marido e mulher.

Com um suspiro profundo, Anna fechou seu livro favorito: Aconteceu no Natal.

Anos antes...

— Gostou do seu presente, querida? — Eleonor perguntou à sua filha viciada em romances.

— Adorei, mamãe! Foi o melhor presente! — disse a menina levantando do sofá em frente à lareira para beijar o rosto de sua mãe, que acabava de colocar no forno o peru de natal.

— Mas você deveria ter esperado pra abrir seu presente amanhã. Agora não tem mais presente — resmungou Eleonor, apesar de ouvir a risadinha do marido, Arthur, que cortava cenouras, pois ele sabia que ela não conseguiria esperar e por isso deixou o seu presente guardado para colocar sob a árvore de natal somente depois que a menina fosse dormir.

— Eu não me importo. O importante é que eu já li e adorei a história. É tão romântica! — exclamou a menina de forma sonhadora.

— Espero que não se importe mesmo — disse o pai de Anna.

— Eu quero me casar com Alex Carter!

— Quem é esse?! Você só tem doze anos, Anna! — exclamou Arthur, abandonando as cenouras para encarar a filha.

— Ele é o protagonista de Aconteceu no Natal. Ele é lindo e... aiai... ele é perfeito — respondeu ela, fazendo o pai suspirar de alívio.

— Ninguém é perfeito, Anna, e esse rapaz não existe.

— Eu sei, mamãe. Eu não sou mais criança — reclamou Anna, revirando os olhos.

— Infelizmente... — Eleonor resmungou para si mesma antes de completar: Um dia você vai encontrar
o seu próprio Alex. Por enquanto saiba que nós amamos você. Agora vá tomar banho antes que o jantar fique pronto.

— Eu também amo vocês, mamãe, e sinto tanto a sua falta. — Uma lágrima escorreu pela bochecha de Anna após relembrar o último Natal que passou
com seus pais enquanto acariciava com cuidado o livro que era tão importante para ela, pois além de ser o último presente que ganhou de sua mãe, continha a história de Alexander Carter, o seu amor platônico de infância.

Terminando seu chá, Anna depositou
a xícara na lava louças e se dirigiu ao quarto principal, que antes pertencia aos seus pais, e se preparou para dormir.

***

A noite lá fora estava fria e a neve caia sem parar. Estava nevando muito mais do que o esperado. Apesar disso, a casa estava quentinha e Anna dormia profundamente sob seu edredom macio e quentinho, com seu gato preto e gordinho enrolado próximo à sua cabeça.

Na sala, a lareira recém apagada deixava cinzas caírem da chaminé, espalhando-se pelo assoalho, bem como uma brisa suave, porém gélida. As luzes da árvore de natal, que Anna desligara antes de dormir, se acenderam de repente e um suave tilintar de sinos começou a soar.

Anna se revolveu na cama, como se sentindo a energia vital se espalhando pela casa – ou talvez ela só estivesse com frio – o que importa é que ela não
acordou e, após se reacomodar tranquilamente sobre o travesseiro, seu sono se aprofundou novamente.

— Ahhhhhh! — Minutos depois Anna acordou com um grito agudo e sentou na cama, pois foi pisoteada pela pequena baleia peluda que ela chamava de gato, e deu de cara com os olhos amarelos do animal encarando-a tão próximo que lhe fez dar outro grito. — Tiger, você quer me matar?! — O miado do gato dizia que ele não estava nem aí se sua cuidadora morreria ou não, pois ele parecia tão assustado quanto ela.

Foi então que Anna se deu conta do suave tilintar que vinha da sala e arregalou os olhos, competindo com os do gatinho assustado. — Não seja covarde, é claro que esse barulho não vem daqui — ela falou sem muita convicção e levantou para vasculhar a casa.

Seguindo na ponta dos pés e segurando um sapato como arma, Anna avançou pelo corredor seguida de perto por Tiger, que parecia também seguir na ponta das diminutas patas.

— Tiger, você fez xixi no chão? — Anna perguntou ao gato ao ver uma pequena poça d'água no chão da sala e recebeu do animal um olhar que lhe devolvia a pergunta, com cara de desaprovação.

O gatinho então tomou a dianteira e seguiu destemidamente as pequenas poças que faziam uma trilha da lareira até a cozinha.

— Tiger, cuidado — sussurrou Anna, carregando o sapato em posição de ataque.

Depois de se aproximar de uma das pequenas poças a cheirou já com
o pequeno nariz enrugado e ficou surpresa ao perceber que não tinha nenhum odor. Parecia água, o que não fazia sentido algum. Anna então também seguiu a trilha molhada e ficou ainda mais confusa ao ver que o pote de cookies estava aberto. Ela nunca deixava o pote aberto, pois odiava cookies moles.

— Acho que o próprio papai noel veio
procurar os cookies já que eu não deixei sob a árvore pra ele — ela falou para si mesma e prendeu a respiração com o pensamento que lhe veio à mente.

— Não seja ridícula, Anna! Acho que você está bebendo muito café. Papai noel não existe e esse é mais um natal solitário. Pelo menos dessa vez você tem o Tiger.

Desistindo de tentar entender o que acontecera Anna fez um chá e ficou contemplando a neve cair enquanto torcia para que não nevasse tanto a ponto de impedir que ela fosse comprar o necessário para preparar a sua solitária ceia de Natal.

***

"Peru, arroz, brócolis... O que eu vou fazer de sobremesa?" Anna pensava enquanto percorria os corredores do mercado e depois começou a correr, pois acordara tarde e o mercado estava prestes a fechar, afinal era Natal.

Quando já estava colocando as compras no carro deu por falta do ingrediente principal.

— Cadê o meu peru?! — gritou, pois tinha certeza que havia pego a ave. — Só pode ser brincadeira!

— Moça, você precisa de mais alguma coisa? Vamos fechar em cinco minutos!— gritou um rapaz que passava pela porta.

— Eu vou! Preciso de outro peru porque o meu saiu voando!

— Então venha logo caçar o seu porque eles estão em extinção no estoque.

Anna fechou o porta malas e correu de volta até a entrada do mercado em busca do peru foragido.

— Cuidado! — gritou um outro rapaz, que viu Anna escorregar no gelo enquanto passava perto do carro dele.

Minutos depois Anna voltava a si só para se deparar com um sonho e sorriu feito boba apesar da dor atrás da cabeça, onde certamente teria um galo em breve.

— Você está bem?

— Eu morri e fui pro céu... então não poderia estar melhor... — respondeu ela, passando a mão pela barba rala daquele rapaz tão bonito e exibindo um sorriso bobo.

— Eu fico lisonjeado, mas preciso mesmo saber se você está bem e você precisa sair do chão gelado. Sem esperar resposta, ele passou um braço por baixo da cintura de Anna e a ajudou a levantar.

— Eu acho que bati a cabeça com muita força, porque acho que estou ficando louca. — Ela franziu o cenho enquanto olhava admirada os cabelos castanhos caídos sobre a testa, os olhos cinzentos a encarando e pele bronzeada como se não estivessem em pleno inverno.

— Porque você acha isso?

— Porque você é igualzinho a ele.

— Ele quem?

— O meu... — Anna se lembrou a tempo de que pareceria louca se falasse que ele era a cara do seu amor literário e emendou: — amigo. Você é muito parecido com ele... Você é tão lindo quanto ele e...

O rapaz abriu um sorriso convencido ao ouvir o elogio de Anna, o que a deixou corada.

— Eu fico muito feliz em saber que você me acha lindo. Elevou o meu ego. E essa sua amizade... é colorida? — indagou ele, elevando uma sobrancelha de maneira sexy.

— Sim... Quero dizer, não! — Anna corou ainda mais com a pergunta, tirando do rapaz uma risada gostosa, que a fez se derreter um pouco mais.

— Eu estava brincando. Não precisa
ficar assim. Você está bem mesmo?

— Estou. Obrigada pela ajuda... — Enquanto esperava que ele lhe dissesse o seu nome, Anna ouviu o som da porta metálica do estabelecimento sendo fechada sem que ela comprasse o peru. — Lá se vai a minha ceia — murmurou para si mesma.

— Alexander, mas pode me chamar de Alex, se preferir. — Alex estendeu a mão e exibiu outro sorriso radiante enquanto Anna arfava.

— Não é possível. Isso é uma piada, não é? Como você sabe sobre ele?! — Anna gritou, confusa entre a surpresa da semelhança e a dúvida pela coincidência.

— Como eu sei o quê sobre quem? —indagou o rapaz, confuso e ainda com a mão estendida no ar.

— Você é médico também? — ela indagou finalmente devolvendo o cumprimento do rapaz e sem deixar de perceber o quanto sua mão era macia e bem cuidada.

— Sou enfermeiro... Você está mesmo bem? — Enquanto perguntava, Alex puxou de volta a mão e usou as duas para massagear o couro cabeludo de Anna em busca de alguma lesão provocada pela queda.

Subitamente ela lembrou da estranha noite que tivera, desde o soar suave de pequenos sinos, à fuligem em frente à lareira e às poças de água que iam dela até o pote de cookies abertos na cozinha.

— Era neve derretida... ele pegou os cookies... — Os olhos arregalados de Anna deram lugar a um amplo sorriso. — Você é real, não é? Você realmente está aqui... ele pegou os biscoitos e trouxe você pra mim... Porque você demorou tanto, Alex? — Ela voltou a acariciar o rosto do rapaz enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas.

A expressão de Alex mudou de divertida para preocupada. — Eu vou te levar pro hospital agora — disse ele, levando Anna cuidadosamente até a porta do carona do seu carro.

— Não. Eu estou bem. — Ela tentou se desvencilhar.

— Você está claramente delirando e me confundindo com alguém. Vamos. Vai ficar tudo bem. Eu vou cuidar de você. — Ao ouvir as palavras Anna arfou novamente.

Enquanto sua imaginação lhe dizia que papai noel realizara o seu grande desejo e lhe trouxera Alex, seu amor literário, seu lado racional lhe dizia que isso era impossível e que não se passava de uma grande coincidência exacerbada pela solidão que sentia. Aquele Alex era um rapaz tão lindo quanto o seu Alex e por coincidência tinha o mesmo nome, trabalhava na mesma área e tinha as mesmas características físicas, mas não passava disso. Decidida a manter sua saúde mental, Anna resolveu que era hora de deixar aquela ilusão ir.

— Eu estou bem agora. Me desculpe pela confusão.

Após caminhar de volta até o seu carro Anna sentou atrás do volante e olhou para a estrada à sua frente, hesitando em dar a partida e deixar para trás aquele rapaz que era a representação de um dos seus maiores sonhos.

Uma batida na janela a fez olhar para o lado para encarar novamente aqueles olhos que enchiam à sua imaginação desde os seus doze anos.

— Eu estava me perguntando se tem muita gente com você, porque se não tiver... bem... vocês podem vir jantar com a minha família. — Ao ver que ela nada falava, Alex completou: — Eu notei que você acabou ficando sem peru.

— Eu agradeço de verdade, mas não quero incomodar. Natal é uma festa familiar — ela respondeu após abrir a janela do carro.

— Não tem problema. Minha família adora uma bagunça. Eu só preciso saber quantas pessoas são pra avisar pra aumentarem a comida e os lugares à mesa. — Garantiu ele, já começando a discar o número de casa em seu celular.

— Na verdade sou só eu. Bem, eu e o Tiger.

Alex parou o que estava fazendo e a encarou. — Você ia passar o Natal sozinha com um... tigre?

— Eu vou passar o Natal sozinha com o meu gato. Não é grande coisa — respondeu ela, dando de ombros.

***

Enquanto ria de mais uma piada do patriarca da família Carlton, Anna percebia que era grande coisa. Era na verdade muita coisa. Ela sentia falta daquele calor humano, ao menos no Natal. E percebeu que o Alex real podia até dividir o nome e a aparência com o Alex literário, mas ele era muito mais divertido. Também percebeu que por mais que lesse o quanto o Alex literário tinha um sorriso arrebatador, uma voz profunda e um cheiro extremamente sexy, nada se comparava ao sorriso encantador que continha um dente levemente torto que lhe conferia um um toque de realidade, ou à voz profunda que desafinava quando falava mais alto, ou ao cheiro que causava um desejo de abraçar e nunca mais soltar. O Alex literário era sexy e confiante. O Alex real também era sexy, mas tinha o sorriso de um menino levemente tímido e um brilho travesso no olhar.

Lisa já não era mais tão apaixonada pelo Alex literário. Em apenas um dia ela estava se apaixonando perdidamente pelo homem de carne e osso que estava sentado ao seu lado dando pedaços de peru ao seu gato.

***

— Eu posso ligar pra você amanhã? — Podemos sair pra tomar um café ou ir ao cinema... talvez? — O olhar confiante deu lugar a um hesitante ao ser encarado de volta.

— Eu adoraria, Alex.

Após ambos recolherem seus casacos o casal se encontrou sob o visco e imediatamente a sobrinha de Alex os lembrou da tradição.

— Vocês vão ter que se beijar!

— Não podemos contrariar uma criança no Natal... — Alex zombou, segurando suavemente o queixo de Anna enquanto se aproximava para um beijo, mas antes perguntou: — Qual é o seu maior desejo, Anna?

— Ele já se realizou — a moça explicou enquanto pensava no que sua mãe lhe dissera tantos anos atrás: "— Um dia você vai encontrar o seu próprio Alex". — Aconteceu no Natal.

*** Fim ***

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