02. Taehyung
Desde o meu primeiro dia nesse lugar, é a primeira vez que me sinto bem. Os desmaios e os sonhos são bem desgastantes. Acaba nos prendendo em um ciclo de desorientação. Mas essa bebida fez o problema desaparecer, a tontura e cansaço se foram. Respiro fundo e alto. Song Min sorri.
— Sei como é a sensação. Lembro bem a primeira vez que senti esse alívio. — conta, enquanto devolve as coisas para o seu devido lugar. — Acontece por causa da nossa energia. No mundo real ela é forte, estável e brilhante, mas aqui ela é mais crepitante e imprevisível. A bebida ajuda a estabilizar, como se estivéssemos no mundo humano.
Agora que estou recuperado, olho a caverna com mais atenção. A direita tem uma tábua de madeira, equilibrada sobre duas pedras, sendo usada como uma mesa provisória. Vidrinhos e sacos, então organizados com precisão, junto com a casca de coco e galho que usou no improviso. Estranho ele ter tantos vidrinhos, mas nem mesmo um copo.
A esquerda tem um colchão simples, mochila e um casaco. Ao lado vejo os restos de uma fogueira, não parece ser recente. Song Min senta no colchão e puxa a mochila para o colo. Abre e começa a dispor na sua frente, no chão da caverna, diversas folhas, galhos, pedras, de diferentes tipos e tamanhos, separando-as em grupos. Parece estar fazendo algum tipo de inventário.
— Ér... — minha hesitação faz com que ele me encare. — Valeu... sabe, por me salvar.
— Não esquenta, cara.
Faz um gesto com a mão, dispensando a conversa, como se não fosse algo que valesse a pena ser comentado.
Pega uma das pedras do chão e ergue na altura dos olhos, avaliando-a minuciosamente. É redonda e lisa, tem um tom forte e opaco de vermelho, como se tivesse sido tingida com vinho. Song Mim assente para si mesmo, em um sinal silencioso de aprovação, e coloca a pedra de volta no lugar. Tem mais umas três como essa.
Me aproximo um pouco mais. Dou mais uma boa olhada nos outros itens, mas não reconheço nenhum. Ou talvez conheça e só não consigo me lembrar.
— O que é tudo isso?
— Ingredientes.
— Para quê?
— Poções, encantos... coisas assim. Alguns são para a bebida que você tomou.
— Quais exatamente?
O canto da sua boca se erguem em um sorrisinho ao ouvir meu tom hesitante. Ele ergue o olhar do papel onde está fazendo algumas anotações.
— Quer mesmo saber? Falei sério quando disse que é mais gostoso se não souber.
Balanço a cabeça devagar, confirmando. Ele aponta para algo mais ao canto direito e me estico para ver melhor. Um pó acinzentado, acumulado dentro de um vidrinho de tamanho médio. Franzo a testa e olho de volta para Song Min.
— Parece poeira.
— São cinzas de rato.
Viro a cabeça tão rápido que meu pescoço poderia quebrar. Song Min ri. Meus olhos arregalados imploram para que ele desminta o que acabou de dizer.
— É brincadeira, né?
— Eu bem que queria que fosse.
— Ratos? Até aqui?
— Você ficaria surpreso com os lugares por onde esses bichinhos passam.
Sua cabeça tomba um pouco para o lado e ele me analisa com atenção. Está tentando conter o sorrisinho e parecer sério.
— Tudo bem aí, cara?
— Acho que vou vomitar.
— Não vai, não. Teria que ter um sistema digestório pra isso, sabe? — tagarela e anota algo no papel. — Teria que estar vivo, essas coisas.
— Mas a sensação é bem real.
— Logo passa. — Ele olha de mim para os ingredientes, como a expressão de quem está prestes a contar algo engraçado. — Quer saber sobre os outros?
— Acho melhor absorver essa informação primeiro. Podemos continuar depois?
Song Min concorda com um aceno rápido, já devia estar esperando por essa resposta. Sua atenção volta para a pilha de ingredientes, analisando-os e fazendo anotações.
— Vou te ensinar aos poucos sobre os ingredientes. E depois é só ensinar como preparar a bebida, como acabou de ver, preparar é a parte fácil. — Ele anota algo novamente. — Você deveria descansar um pouco.
— Não quero tomar muito do seu tempo. Você parece estar no meio de algo. — Indico o papel com o queixo e ele encolhe os ombros enquanto analisa uma das folhas com mais cuidado.
— Não estou com pressa e Sang Woo ainda deve estar procurando por nós. É mais seguro ficar aqui.
Uma das pedras chama a minha atenção. É preta com a superfície tão lisa e polida que a luz de fora reflete nela. Tento pegar, mas Song Min dá um tapa na minha mão antes que eu encoste.
— Por que ele está atrás de nós?
— Por causa das nossas auras.
— Que auras?
— Essa energia ao nosso redor — ele faz um arco no ar de um dos seus ombros até o outro. — Isso são as nossas auras.
Olho com atenção para Song Min. Entretanto, mesmo me concentrando ao máximo, não vejo nada de especial ao redor dele. Nenhuma energia, nem nada do tipo. Só a parede cinzenta e rabiscada da caverna.
— Não vejo aura nenhuma.
Ele para o que está fazendo e me encara, a testa franzida. Primeiro, acredita que estou mentindo, tenho que jurar — várias vezes — que não estou. Quando finalmente acredita, me enche de perguntas que não faço ideia das respostas porque não lembro de nada. Nem sobre mim, sobre como morri e nem sobre quem eu era antes.
Reconheço as coisas, mas não me lembro com precisão. Como se eu tivesse acesso às minhas memórias através de um vidro embaçado. Por exemplo, me lembro como se escreve e me lembro de como é uma escola, e também lembro que foi nela que aprendi a escrever, mas não lembro quem me ensinou, nem mesmo seu rosto.
É estranho.
— Está certo, está certo — Faz um sinal de pare com a mão para que eu fique quieto, quando começo a me irritar. — Vamos do começo, então. Sabe a quanto tempo está aqui?
Penso um pouco. Não tenho uma noção correta do tempo, por causa dos desmaios e do tempo que eu ficava fora do ar. Mas parece ser bastante. De todo modo, tento chutar baixo.
— Uma semana, acho. É difícil saber ao certo quando você apaga toda hora.
Ele puxa um pano de dentro da mochila e o usa para pegar aquela pedra que chamou minha atenção. Sem, hesitar estende a pedra na minha direção e ordena:
— Pegue.
— O quê? Por quê?
— Pegue logo. Depressa. — Diz empurrando na minha direção.
Estou prestes a dizer que não parece seguro com ele oferecendo assim, mas Song Min praticamente joga a pedra no meu peito. Pego ela no ar. Abro a mão e mostro para ele, ela reluz bem no centro da palma da minha mão. Ele não dá muita importância.
Seus olhos vão para o topo da minha cabeça, descendo pela lateral do rosto até o meu ombro. Como se observasse algo além de mim. Fica tempo demais em silêncio, o suficiente para me deixar preocupado. Sua expressão não me oferece nenhuma pista do que está pensando.
Até que, sem nem me explicar o que está acontecendo, ele puxa a mochila e começa a guardar tudo nela, novamente. Rápido. Praticamente jogando tudo ali dentro. Nem de perto dá forma organizada como antes.
Entra em um estado de pânico, como se estivesse acontecendo um terremoto. Embrulha a pedra na minha mão em um pano e joga dentro da mochila antes de fechá-la e levantar. Song Min agarra meu braço e me puxa para cima.
— De pé. Anda.
— O que foi? — questiono.
— Aqui não é seguro.
— Você deu a entender que era.
— Isso foi antes.
— Antes do quê? — Insisto.
Falta pouco para que eu perca a paciência e devo ter passado isso no meu tom de voz. Song Min para o que está fazendo e fica de frente para mim.
— Antes de eu descobrir que você está vivo.
— O quê? Como assim? Tem certeza? — As perguntas se embolam umas nas outras enquanto vou de chocado a esperançoso. Song Min assente e analisa minha aura mais uma vez como se para confirmar que não está louco. — Como você tem certeza?
Pergunto, mas ele já voltou a organizar suas coisas indo de um lado para o outro, juntando folhas, minerais, embalando e colocando em sua mochila. Entro na sua frente quando ele se vira o impeço de passar. Sem muito esforço, ele me empurra para o lado.
— Não temos tempo agora.
— Você pode ter se enganado — insisto, seguindo atrás dele. — Como alguém vivo pode vir parar aqui?
Esbarro nele quando para do nada. Me olha por cima do ombro, pouco amigável, exigindo espaço. Dou dois passos curtos para trás, mantendo alguns centímetros de distância entre nós. Ele me dá as costas novamente e volta a organizar suas coisas.
— O limbo é diferente do mundo dos vivos. É pura energia. — explica. — Por isso todos aqui são sensíveis a ela. É assim que vemos auras com tanta clareza. É como uma energia instável tremulando ao nosso redor. Mas a sua é diferente. — Ele olha para trás e encara um espaço vazio sobre a minha cabeça. — A energia da sua aura é forte, brilhante e vívida.
— E por isso acha que estou vivo?
— Sim e não. — Ele joga algo embalado com folhas dentro da mochila. — E eu não acho, tenho certeza.
— Então me explica! Por que nesse momento tá parecendo mais uma brincadeira de mau gosto.
Song Min suspira e senta no chão, agora de frente para mim. Ele estende a mão pedindo que eu faça o mesmo e obedeço. Assim que sento no chão da caverna, ele continua:
— Todos vieram parar aqui por um motivo: ultrapassaram a linha. Se envolveram demais no assunto dos vivos. Não importa se seus motivos são bons ou ruins, se você se envolve demais vem parar aqui. Mas o que você faz no mundo dos vivos deixa uma marca na sua aura.
— Uma marca? Tipo um símbolo? — Outra vez ele ignora minha pergunta e continua falando como se eu não tivesse dito nada.
— É um pouco complicado de explicar, mas de modo resumido, se o que te trouxe aqui foi algo ruim, como ter matado alguém, sua aura é densa e opaca. Se o que você fez no mundo dos vivos foi algo bom, como salvar um parente ou algo assim, sua aura é brilhante. Mas...
— Então a minha pode ser somente porque fiz algo bom no mundo dos vivos?
— Não. — corrige, visivelmente irritado com as minhas interrupções. — Quando cheguei aqui, minha aura era como a sua, brilhante como um farol. Mas com alguns dias essa energia se estabiliza. A sua não se estabiliza, porque mesmo estando aqui você ainda está ligado ao seu corpo. Você ainda está vivo. Por isso, não consegue ver auras e a pedra do limbo não desestabiliza você. Entende?
Assinto. Finalmente conseguindo assimilar todas as informações. Pelo menos agora, tenho uma ideia do que aconteceu comigo. No mundo dos vivos, eu fiz algo bom, mas como passei dos limites, vim parar aqui.
— Mas porque minha alma não estava no meu corpo? — questiono, mas quando ergo o rosto, Song Min já está longe, enfiando mais coisas na sua mochila.
— Não sei, mas é o que vamos descobrir. Não sabemos quando suas memórias vão voltar e, no momento, não podemos depender delas. — Ele fecha o zíper da mochila. — Vamos ter que trazer elas de volta à força e descobrir uma forma de te mandar de volta antes que seja tarde demais.
Me ponho de pé assim que o vejo levantar e pendurar a mochila nas costas.
— Como assim tarde demais?
— Você está vivo, por enquanto. — Ele me alerta. — Sua alma é ligada ao seu corpo, mas você está em uma dimensão e seu corpo em outra. — Ele pega um graveto do chão e quebra ao meio, para exemplificar. — E se essa ligação romper, acabou.
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