Verdades duras de ouvir ♡ capitulo 38

As obras na minha casa iriam começar em breve. Meus pais, animados com a nova gravidez, estavam à procura de um arquiteto na cidade que pudesse transformar o escritório do meu pai em um quarto de bebê fofo e claro. A gravidez da minha mãe pegou todos de surpresa, inclusive ela mesma. Na casa dos quarenta anos, uma gravidez pode ser considerada de risco, e o fato de serem múltiplos exige cuidados que precisam ser adotados o mais rápido possível.

Meus dias têm sido menos ansiosos e mais tediosos. Apesar de toda a felicidade que havia em casa, nada em mim estava completo, para minha angústia. Sentada à mesa, junto a muitos papéis, separo toda a documentação necessária para enviar via carta à faculdade dos meus sonhos.

O que me deixava um pouco mais confiante, além das minhas notas, eram minhas atividades extracurriculares: algumas ações voluntárias das quais participei e os grêmios estudantis pelos quais passei ao longo dos anos. Para mim, pensar positivo nunca foi a coisa mais fácil, visto que minha mente sempre insiste em imaginar que o pior pode acontecer. 

Apoio uma pequena pilha de papéis em cima de um envelope marrom e o abro com cuidado.

— O dia está chegando — disse minha mãe com sua voz mansa, sentando-se à mesa ao meu lado. — Venho me preparando há tanto tempo, mas não sei se é o suficiente. — bufou.

A nova senhora gestante, sentada em minha frente, tomava seu chá lentamente, observando meus movimentos. Mesmo conversando sobre isso há muito tempo, sinto que ela vai sofrer um pouco mais do que eu.

— Estou criando as famosas asas que todos os filhos precisam ter, mãe, e agora você e o papai têm mais dois no ninho — disse, entregando-lhe um sorriso rápido.

Após muito tempo pensando sobre faculdades e lugares, minha cabeça sempre me mandou ir o mais longe que pudesse, se fosse preciso para alcançar meus sonhos, mas sempre pensando em um plano B. Até poucas semanas atrás, não havia um plano alternativo; em minha cabeça, não existiam outras possibilidades além de uma das melhores faculdades do mundo. Mas eis que a vida me ensinou uma coisa importante: nem sempre as coisas saem como planejamos. Às vezes, tudo desmorona sem aviso prévio, e o que precisamos fazer é acionar o plano B.

Justamente por isso estou tentando uma bolsa em duas faculdades: uma no meu estado, onde a concorrência é menor, e outra, em meu maior sonho, Harvard. E está tudo bem. — Sorri, abrindo meu e-mail após arrumar os papéis soltos.

— Não se preocupe, ficarei bem — minha mãe tocou a barriga e fez uma careta devido aos enjoos matinais frequentes. — Pensei que, a essa altura da vida, tudo se resolvesse por e-mail. Ainda assim, vai enviar pelos Correios? — interrogou-me.

Separei os dois envelopes amadeirados e coloquei todos os documentos necessários dentro. O que acontece é que não confio totalmente no mundo digital. E se alguém preguiçoso não ler meu e-mail? Ou passar batido? Ou se meu nome lembrar alguém ruim e a pessoa não o ler? — Sorri, suspirando.

— Sim, eu fiz por e-mail. Mas podem pensar: "nossa, ela mandou das duas formas, quer mesmo entrar." A vaga é sua, Clark. — Gesticulei aspas com os dedos, e minha mãe caiu em risadas.

Se for assim preciso de mais sessenta envelopes.

— Certo, você tem razão. Aproveite sua sexta. Mais uma semana passou e você mal saiu. Vou para a escola e, depois disso, tentar controlar a euforia do seu pai. Ele não tem noção de quanto custa um arquiteto — gesticulou em minha direção, animada, fazendo-me balançar a cabeça.

— Deixe-o aproveitar, mãe. Dizem que, quando nasce, gasta-se mais — respondi, observando-a subir as escadas.

Com o celular em mãos, encarei meu papel de parede: uma foto de rosto pálido, onde Gustavo beijava minha bochecha. Foi tirada por Will em uma cafeteria. Gustavo não era apenas um rosto bonito e sentimentos; sua energia era límpida. Suas piadas sem graça sempre me faziam rir, e eu adorava vê-lo orgulhoso. Seu jeito meloso me fazia falta de uma maneira inimaginável.

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Saindo dos correios, finalmente havia enviado minhas inscrições. Esse dia era aguardado por mim há muitos anos, e preparei meu coração para isso. Agora, precisava me preparar para a carta que iria chegar. Parei na porta do estabelecimento e respirei fundo; o céu alaranjado anunciava que a noite chegaria em breve. Meu celular vibrou, sinalizando uma ligação.

— Oi, amigo! Desculpa por não ter respondido sua mensagem — falei, enquanto segurava o celular apoiado no meu braço e fechava minha bolsa com o fecho quebrado.

Havia ignorado Alex por puro descuido, após uma fila quilométrica que me fez perder a tarde toda. 

— Precisamos sair para comemorar! A Alice conhece alguém que vai dar uma festa hoje — ele disse, fazendo uma pausa antes de soltar um longo suspiro. — Mas você não está no clima, né?

Conhecendo-me como ele conhecia, sua afirmação estava correta. Minha cabeça estava longe de festas ou comemorações, mas devia isso a mim mesma pelo dia de hoje. Com ou sem Gustavo, a vida precisava andar, ou ao menos rastejar, assim como os filhotes de tartaruga que chegavam lentamente ao lindo mar.

— Claro, vamos — soltei uma risada, que soou mais como um esforço do que uma verdadeira felicidade.

Alex parecia animado com minha resposta, deixando claro que não esperava por ela. A ligação foi finalizada quando seu avô o chamou. Estiquei a mão para a via movimentada, e um táxi parou em poucos segundos.

Antes de qualquer comemoração, precisava resolver algumas questões que estavam me angustindo há semanas. Por sorte, uma colega da escola me ajudaria nesse dia. Meu olhar percorreu as ruas movimentadas, e um filme começou a se desenrolar em minha mente.

Coisas que vi quando ainda estava com Gustavo começaram a fazer sentido aos poucos. Lembro-me de sua reação ao ver Augusto ao meu lado e do tom ameaçador que o ruivo dirigiu a ele. Tempo depois, quando Gustavo entrou em uma crise de ansiedade, acabei lendo uma mensagem em que provavelmente Augusto o mandava deixar de ser herói. Pensamentos como esse tiravam meu sono à noite. Meu coração dizia para seguir em frente e acreditar, enquanto minha mente insistia em me mostrar o erro que cometi.

Parada em frente ao departamento de trânsito, sentia-me como se estivesse em um filme de missões especiais. Com o cachecol que minha mãe me presenteou ao redor do pescoço, coloquei meus óculos escuros, mesmo sendo quase à noite. Precisava entrar no ambiente sem deixar claro que estive ali, arrumei minha roupa e empurrei a porta de vidro lentamente.

O ambiente cheio e gelado me fez perceber o quão caótico estava o trânsito na minha pequena cidade, logo não conseguia imaginar como seria o resto do mundo. Senhores brigando por multas injustas e um homem algemado sentado em uma cadeira azul despertaram minha curiosidade; eu queria saber o que ele fizera para estar nessa situação.

Aproximei-me do balcão, e uma senhora fardada me olhou com uma expressão de poucos amigos, talvez apenas por causa dos óculos escuros, que não faziam sentido em um local sem sol. Em silêncio, ela me observava, e não consegui despejar as palavras que haviam soado tão bem na minha mente. 

 Passei a mão nos cabelos e sorri nervosamente.

— Posso ajudá-la, senhorita? — a senhora me olhou por cima de seus óculos, apoiando os cotovelos em sua mesa bagunçada, sem mostrar qualquer simpatia.

— Ahm, gostaria de falar com Ralph Condor — sussurrei, fazendo-a puxar uma longa respiração. — Por favor.

— CONDOR, É PARA VOCÊ! — a senhora gritou, sem cerimônia, assustando metade do ambiente, que se calou de imediato.

Com várias pessoas olhando para nós, me perguntava por que havia decidido usar óculos escuros e um cachecol. Afinal, todos perceberam bem minha presença. Bufei, baixando a cabeça.

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Em uma sala pequena, o senhor me pedia para ficar à vontade. O pai de Maryn Condor trabalhava no departamento de trânsito, em uma patente relativamente alta, o que lhe dava acesso livre a tudo que envolvia carros e estradas.

Com um pequeno papel em mãos, relutava em buscar algo que havia acontecido meses atrás. Alex conseguiu, no mesmo dia do meu quase atropelamento, a placa do veículo, e sem perceber, havia a tirado do bolso do homem. A placa anotada em uma letra quase ilegível me dava esperanças de saber, de fato, quem foi o responsável, ou se tudo não passara de um acaso.

— Em que posso te ajudar, Clark? Minha filha falou muito bem de você — disse ele, simpático.

Já sem os óculos, sentei-me em uma cadeira à sua frente, explicando um motivo qualquer que me convencesse a procurar por uma placa em seu sistema.

— O senhor sabe, precisamos confiar em nossos parceiros, mas tenho certeza de que vi uma mulher naquele carro junto ao meu namorado e o carro não era o dele... — falei, fingindo tristeza enquanto balançava o pequeno papel. — E como a Maryn disse que o senhor poderia ajudar, desde que isso ficasse entre nós, resolvi vir até aqui. — Expliquei, fazendo-o lamentar.

Mesmo minha atuação sendo completamente duvidosa, pedi um favor a Maryn ao lembrar onde seu pai trabalhava. Com a ajuda de Alice, fomos até sua casa, e por conta da amizade delas, aqui estou. Lancei meu problema, esperando alguma ajuda.

— Compreendo, ajudarei. Desde que isso não saia daqui, para analisarmos o sistema é preciso um protocolo extenso, e infelizmente ciúme ainda não é uma opção para se protocolar. — disse o senhor, soltando uma gargalhada que me deixou aliviada, logo entreguei-lhe o papel.

Com certeza, minha consciência pesa por mentir descaradamente para pessoas que têm boas intenções, mas preciso fazer isso não só por mim. Preciso saber se realmente sou ameaçada por Augustos ou se foi um acidente causado por alguém aleatório. Lembro-me com clareza da reação de Gustavo ao saber do ocorrido, fechei os olhos e senti algumas peças, de fato, se encaixarem.

Sentada, apertando as mãos, esperava por uma resposta do sistema, que parecia demorado. O relógio marcava seis da tarde e meu estômago avisava que estava vazio. Enquanto aguardava, o senhor Condor começou a falar sobre acidentes em estradas, e relutei ao perguntar sobre o do meu irmão. Mesmo sabendo de muitos detalhes, algo poderia ter passado batido em seu caso.

— O senhor ficou sabendo de um acidente que ocorreu na rodovia que liga a cidade vizinha quase dois anos atrás? — perguntei, puxando conversa com o senhor, que era bem falante. — Soube por alto em uma palestra na escola. — Completei, fazendo-o suspirar.

Ele explicou muitas coisas que já conhecia: foi um acidente envolvendo dois carros, alta velocidade e vítimas sem socorro. Segundo minhas pesquisas, não havia nada que ligasse o nome de Augustos ao caso, ou mesmo a participação do xerife nas investigações, o que me deixou ainda mais frustrada.

— Esse caso foi o primeiro que não conseguimos resolver. Eu participei de todas as investigações, mas foi em vão. O carro que estava na contramão desapareceu; não havia câmeras ou testemunhas. Infelizmente, para a tristeza da família, o caso foi arquivado anos atrás — explicou ele, visivelmente frustrado.

Meu peito apertou, e tentei manter uma expressão calma diante do assunto. Ele sabia apenas o que nossa família conhecia. O crime foi totalmente coberto, sem deixar pistas ou pegadas.

— É, mas espero que um dia o culpado apareça — sorri, disfarçando minha tristeza.

— Se um dia aparecer, ele terá uma conta alta com a justiça — bufou, cruzando os braços. — Achei... — balbuciou, fazendo meus olhos se arregalarem. — Esse carro pertence a Augustus Miles, você conhece?

Ao ouvir seu nome, meu coração disparou. Era real, eu estava na linha de frente das ameaças de Augustos, e ele não fez questão de ocultar isso, sabendo que ninguém iria denunciá-lo. Com a mão na cabeça, sentia a dor crescente.

— Não acredito.. — lamentei, deixando-o confuso. — Confundi o amigo do meu namorado com uma mulher. — Tapei os olhos com a mão ao escutar a risada rouca do senhor à minha frente. — Talvez por causa dos cabelos compridos. Que vergonha! — minha expressão triste parecia ter o convencido.

Tinha algo nas mãos e, ao mesmo tempo, não tinha nada; nada que eu pudesse fazer, ainda.

— Agora pode ficar despreocupada. Só peço que não comente isso por aí!— ele se apoiou na mesa, pedindo minha descrição.

Não se preocupe, senhor Condor, jamais o prejudicaria.

— Isso jamais sairá daqui. Se puder, também não comente com a Maryn os resultados da busca... — franzi o cenho, quase implorando. — É um pouco... na verdade, é muito vergonhoso. — Falei, e ele gesticulou um zíper na boca, indicando que guardaria segredo.

O senhor Condor sorriu de forma compreensiva, como se entendesse a gravidade da situação. Aquele pequeno acordo me trouxe um alívio momentâneo, mas a ansiedade ainda martelava em minha mente. Sabia que, independentemente do que descobrisse, teria que lidar com a verdade sobre Augustos e a ameaça que ele representava

— Pode deixar, Clark. Sou o último a querer me meter em assuntos pessoais!— disse ele sorrindo em minha direção.

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Deitada na cama já arrumada, com meu fone de ouvido apenas de um lado, encarava o pequeno papel com a placa do carro. Para meu desespero, algumas coisas começaram a fazer sentido. Imagino se ele tinha a intenção de me machucar ou apenas me assustar. Diante dos fatos, posso ter certeza de que quem souber do que sei jamais estará seguro, incluindo o Baker.

Levantei-me da cama e peguei a pequena caixinha florida na qual guardava coisas que significam muito para mim. Uma flor murcha, uma pulseira do Gustavo e um bilhete. Peguei sua pulseira e a cheirei. O seu cheiro forte havia impregnado o couro de ótima qualidade; sorri, foi minha única reação.

Minha mente estava mais confusa e perturbada do que nunca. Era como escolher entre a razão e a emoção: um erro e o perdão, o amor e a desilusão. Mas, infelizmente, todos os piores sentimentos caem por terra ao meu coração ao lembrar do quão ele me fez bem, mesmo sendo completamente imperfeito.Hoje, ao ter a confirmação de quem tentou me machucar, algo em mim foi despertado. Por instantes, me peguei pensando se, ao Gustavo cometer seu primeiro erro, eu tivesse criado uma desconfiança trazida de quem ele era no passado. Respirei fundo, encarando parte da parede lotada por fotos nossas.

Parte da reflexão nos traz verdades duras sobre nós ou sobre outras pessoas, reflexões essas que talvez nossa mente estivesse mascarando. Meu jeito realista, vulgo pessimista aos olhos das pessoas, nunca me deixou olhar primeiro com meus sentimentos. Minha mente sempre passou na frente, buscando exatidão. Mas isso não durou muito quando conheci Gustavo; ele chegou derrubando meus muros e meu jeito duro de ser. Tornei-me uma pessoa melhor ao seu lado, por mais difícil que fosse admitir isso neste momento.

Batidas na porta me tiram do transe, e guardo a caixa rapidamente.

— Entra. — Falei, produzindo vento em meus olhos para as lágrimas secarem.

Alice e Alex chegaram fazendo barulho. A energia deles exalava por todo o ambiente, me fazendo esquecer os problemas e aflições. O casal arrumado conversava sobre a quantidade de festas que iriam ter na faculdade. Eles também haviam feito suas inscrições hoje. Na faculdade, dizem que são os momentos de nossas vidas que mais vivemos. Espero por isso.

— A festa de hoje é algo pequeno e não vai durar a madrugada toda. Uma colega minha vai embora para a Europa e quer se despedir dos mais chegados. — Alice explicava, me fazendo prestar atenção.

— Vamos mesmo assim, não precisamos virar a noite. Apenas beber algo discretamente... — Alex falou animado, encarando minha rua vazia da janela. — Animada, Anne?

— Sim, prometo me esforçar mais. — Falei, remexendo as sobrancelhas de uma forma que o fez sorrir.

Contei-lhes sobre as faculdades nas quais me inscrevi e o porquê de ter tentado uma em nosso estado. A faculdade de Luisiana é bem renomada, mesmo não chegando aos pés de Harvard. Existem cursos de todas as áreas e um campus bem grande, o que me deixava animada.

— Mesmo não tendo nada a ver com o assunto, fui visitar o Baker semana passada. — Alex sussurrou, fazendo-me olhá-lo de imediato. — Mas sei que não quer saber, deixaremos assim. — Bufei internamente, sem conseguir soltar uma palavra.

Não tem nada a ver com isso; no fundo, admiro a amizade que eles construíram ao longo do meu namoro. O que poderia ser algo que gerasse ciúme ou inimizade se transformou em apoio. Mesmo dadas as circunstâncias, Alex, em nenhum momento, julgou as atitudes tomadas por Gustavo, ainda procurando ver seu lado. E não me surpreende, ele é assim desde a nossa infância.

— Ainda bem que sabe, Ross, vamos? — Levantei-me da cama, arrumando minha roupa, enquanto Alice me mandou um sorriso forçado. — Chegar tarde não é legal. — Empurrei Alex pelos ombros com dificuldade.

— Sua cabeça dura, muito dura. — Alice me abraçou, passando o braço em volta do meu pescoço de modo brincalhão, com seu jeito loquaz de ser.

Seguimos sem tocar mais no assunto, como meus amigos presumiam que eu gostaria, ou perceberam isso depois de incontáveis vezes que tentei deixar claro. Respirando fundo, mantive-me calada durante todo o caminho no banco de trás. Alex sabia mexer com meu psicológico de modo certeiro e de fato acertou em cheio.

Estava ainda mais ansiosa por notícias suas, notícias que acalmariam meu coração aflito como num passe de mágica. Encostei-me ao vidro do carro, e os olhos verdes do meu amigo me encaravam pelo retrovisor, tentando me convencer a mudar de ideia.

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Chegamos à casa mediana sem demora. Alex parou o carro literalmente rente à porta, e não reconheci os rostos que conversavam no gramado enfeitado, que não estava muito cheio. Alice, como sempre, conhecia muitas pessoas e tinha assunto com quase todas, o que nos fez reconhecer alguns rostos em meio à pequena multidão.

Lily, a amiga de Alice, estava prestes a se mudar junto aos pais para a Suíça. Depois de muitos anos de treinamento na ginástica artística, seu talento foi reconhecido e uma academia de ginástica lhe ofereceu uma oportunidade de mostrar seus mais profundos dons.

— É um prazer conhecê-la, Anne. Pena que é uma despedida. — A menina alta me abraçou mais forte do que eu esperava. — Sintam-se em casa; na cozinha, tem bebidas com ou sem álcool.

Pessoas correndo nos fundos da casa mostravam uma festa divertida na piscina, detalhe que Alice deixou passar batido.

— Te desejo sucesso em sua nova vida. Vai se sair muito bem! — Falei, soltando-me de seu abraço. — E com certeza vamos pegar alguma bebida para animar.

Após uma longa conversa com Lily, percebi que compartilhávamos a mesma opinião sobre talentos que ficam ocultos em nossa cidade. Se não fosse por seu namorado postar um vídeo dela praticando, ela não seria notada tão cedo.

Andamos em direção à cozinha, que estava lotada de pessoas atrás de algum tipo de álcool, e salgadinhos de queijo estavam espalhados pela mesa. Alex, com sua água em mãos, fazendo algum tipo de dança esquisita, escolheu não beber, o que me deixou aliviada. Já Alice encheu um copo vermelho com gin tônica e rebolava ao ouvir sua suposta música da vida, latina. 

Abri a geladeira e escolhi uma cerveja aleatória, certificando-me de que estava fechada.

— Joanne em festas... — Uma voz rente ao ouvido me fez saltar, fazendo-me bater a cabeça na geladeira. — Desculpa o susto. — Sai de dentro da geladeira, acariciando minha cabeça sem jeito.

William se aproximou após me assustar e colocou seu copo gelado em meu lugar machucado. Seus cabelos loiros, molhados da provável festa na piscina, me fizeram pensar de onde ele tinha saído, já que não o vi se aproximar. Minha careta ao sentir o copo gelado fez com que ele sorrisse.

— Oi, Will. Quanto tempo... — Estiquei minha mão em sua direção e tentei observar disfarçadamente ao meu redor.

Que ele não esteja aqui! A essa altura dos meus sentimentos, não sei o que faria.

— Quanto tempo mesmo. — Ele apertou minha mão rapidamente e virou minha cabeça em sua direção de modo brincalhão. — Estou aqui e ele não está, se essa é sua preocupação. Sinto muito por vocês... — Disse ele.

Envergonhada, tentei disfarçar, e obviamente não obtive sucesso. Mas já sem ter o que fazer, o loiro sorriu, pegou a cerveja das minhas mãos e a abriu em um golpe só, com auxílio do seu anel. Arqueei as sobrancelhas, surpresa por seu feito, e remexi o corpo ouvindo uma música que gosto.

— Não estou preocupada... — Sorri, virando a garrafa de cerveja e bebendo uma grande quantidade. — Como está? — Sussurrei, mandando um sorriso e, sem me responder, Will me puxou pelo braço.

Sem entender, segui-o rumo a uma parte mais vazia da casa, onde paramos de frente um para o outro. Will parecia buscar palavras para falar, após balbuciar algumas vezes e nada sair. O loiro passou a mão em seus cabelos molhados de modo impaciente e gesticulou em minha direção.

— Se é para ser justa, não deve falar comigo nem com o Josh. Não vou me meter nisso, mas provavelmente, daqui a algumas horas... — Ele olhou para seu relógio e fechou os olhos, pensativo. — Pode encrencar ainda mais seu coração.

Encrencar meu coração? O que Will quer dizer com essas meias palavras? 

Passei a mão em minha testa, que já estava suando.

— Seja direto. — Falei, fazendo-o arregalar os olhos. — Por acaso também acha que é fácil estar no meu lugar, em meio a toda essa merda? — Bebi mais um gole da cerveja, deixando-a pela metade.

Dizem que, quando estamos tristes, o álcool bate mais forte. Não sei se era isso que estava acontecendo ou se eu só queria soltar palavrões. Will não pareceu se importar com o meu jeito de falar e apenas soltou um longo suspiro.

— Pergunte ao seu ex-namorado se foi fácil guardar isso. Porque, para mim, foi um inferno. Aproveita e pergunta também como é a sensação de ser ameaçado, mas uma dica, isso tira a paz de qualquer pessoa. — Me deixando sem palavras, Will se afastou sem esperar uma resposta. — Tente ver além da sua própria dor, talvez você ainda não tenha perdido tanto. Você é uma boa menina, caso ninguém tenha te falado ainda: seu irmão não foi a única vida em jogo, olhe ao redor, não seja egoísta.— Will completou, desaparecendo em meio à multidão.

Encostei-me à parede, bebendo o resto da cerveja enquanto meus pensamentos corriam a mil. Senti meus olhos se encherem de lágrimas e respirei fundo, completamente angustiada.

— Tentar ver além da minha própria dor? Egoísta? — Suspirei, jogando a garrafa de vidro na lixeira ao meu lado.

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Para minha surpresa, a noite passou mais rápido do que eu esperava. Fazendo muitas coisas que nunca tinha feito, tentava mascarar minha dor com tequila e algum tipo de dança latina que Lily tentava me ensinar. Conheci algumas pessoas que estudaram comigo e com quem, por timidez, eu nunca havia trocado uma palavra, o álcool, de fato, me fazia falar mais. Mexendo a cabeça de um lado para o outro, mantinha os olhos fechados, tentando expulsar as palavras de Will da minha mente.

Meus amigos, cheios de energia, dançavam no meio da pista iluminada por um globo de luz colorido, e muitas pessoas estavam molhadas. Alice me ensinava passos de dança de seu país natal, e eu tentava acompanhá-la a todo custo.

— Vamos, Anne, dois para lá e um para cá. — Alex inventava uma coreografia que não tinha nada a ver com a música.

Isso me rendeu muitas risadas, sinceras.

— Ah, é difícil! Minhas pernas são duras e curtas. — Remexi-me, fazendo Alice gargalhar. — NÃO RI DE MIM! — Gritei, rindo também da minha própria vergonha.

— Sinto muito, eu sou a única que sei fazer os passos certos. — Alice passou por nós dançando e riu da nossa cara por não acertarmos nada. 

Fiz uma careta para ela e ganhei um sorriso sincero em troca.

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Por algumas horas, esqueci toda dor, saudade e medo que meu coração vinha carregando há semanas. As palavras de Will ecoavam na minha mente, junto ao efeito do álcool, que pela primeira vez entrou no meu corpo em uma quantidade considerável.

Sentados na calçada, ainda em frente à casa, Alice tentava se recuperar do enjoo causado pelo excesso de bebida e pelo balanço exagerado da cabeça. Com baixa tolerância ao álcool, em poucas horas de festa, a garota de cabelos cacheados encostava a cabeça no ombro do Alex, claramente bêbada.

— Vi você conversando com o Will, o que houve? — Alex cochichou, tirando-me de pensamentos distantes. — Ele falou sobre o Baker?

Olhei para ele, lamentando ter que explicar algo que nem eu mesma entendi. Receber notícias vagas era pior do que não saber de nada. A única coisa que Will conseguiu foi plantar uma enorme interrogação na minha cabeça, que já pensava além do necessário.

Exausta com os saltos ao meu lado e a cabeça zonza, expliquei a Alex o que aconteceu na cozinha. Ele me olhou calmamente, sem expressar nenhuma emoção ou opinião. Mesmo sabendo de coisas que eu não sabia antes, temia contar-lhe tudo, então decidi guardar para mim o que descobri no departamento de trânsito.

— O que mais você precisa ouvir, Anne? — Alice levantou a cabeça, sussurrando com a voz manhosa. — Desculpa por acabar com a festa antes do fim, mas eu não sou tão "paz e amor" assim.

Visivelmente melhor, Alice se levantou dos braços de Alex e gesticulou na minha direção, repetindo parte da minha conversa com Will.

— Tudo bem, conversaremos depois. — Alex acariciou sua cabeça, mas ela recusou o gesto. — O álcool não pode ter voz.

Com a cabeça encostada nos joelhos, Alice, inegavelmente bêbada, começou a chorar, nos deixando confusos. Suas lágrimas descompassadas quebravam o silêncio, e ficamos estáticos. Estávamos com ela o tempo todo, mas não percebemos nada de errado acontecendo. Preocupado, Alex se aproximou, mas nenhuma palavra foi dita. O único som que cortava o silêncio eram os soluços dela.

Levantei-me e gesticulei para Alex dar-me espaço, sentando-me ao lado dela. A essa altura, o álcool já não fazia mais efeito em mim, com minha mente totalmente focada em Alice. Nunca a tinha visto chorar assim, sem motivo aparente.

— Quer ir para casa? Você pode dormir comigo e me contar amanhã o que aconteceu. — Sussurrei, passando o braço pelos seus ombros frágeis.

Nada era dito, Alice se fazia em um silencio cruel, nos deixando preocupados.

— Não quero ir a lugar nenhum. — Ela disse, levantando-se da calçada.

Encostada no carro, Alice esfregava os olhos, tentando limpar a maquiagem borrada com a própria blusa.

— Então ficaremos. — Falei, lançando-lhe um sorriso. — E vamos aproveitar o resto da festa. — Saltei em sua direção, na tentativa de animá-la.

Mas Alice suspirou, sem nenhuma animação, segurando meu ombro e parando meus movimentos.

— Para, você não está aqui de verdade, então para de fingir. — Suas palavras me fizeram murchar. — Eu estou chorando por você, por toda essa merda. Você não está feliz de verdade, e me sinto inútil. — Alice despejou sua sinceridade, deixando-me séria.

Degluti seco, já sem saliva. Alex, ansioso, se aproximou dela, tentando acalmá-la novamente.

— Não podemos nos meter. — Ele beijou sua bochecha, fazendo-a sorrir. — Infelizmente, cada um com suas escolhas.

Eu sabia o motivo do choro de Alice, e sua aparente tristeza. Ela, como sempre, vinha tentando me animar há semanas.

— Eu só quero que você seja feliz. — Alice se aproximou, segurando meu rosto com as mãos, percebendo que eu segurava as lágrimas. — Que tipo de amiga eu seria se não te dissesse o quão burra e egocêntrica você está sendo? O que está feito, está feito, e o Andrew não vai voltar. Mas você está se destruindo por dentro, emagrecendo, e mesmo sabendo que o Gustavo não tem culpa de nada, insiste em culpá-lo à toa.

Alex me entreolhava provavelmente concordando com Alice, mas sem dizer uma palavra.

— Eu não quero culpá-lo, ele é a única pessoa que me faz sentir inteira. Eu errei, tá bem? — Soltei-me de suas mãos e voltei a sentar na calçada. — Toda essa merda do passado, minha mente está cheia e bagunçada. Eu acordo de madrugada, como sem fome, sinto falta dele, não quero viver sem ele. Sinto falta dos sorrisos... — Em um impulso de raiva, atirei meus saltos para o meio da rua, sem remorso.

Alice se sentou ao meu lado e Alex se agachou na minha frente, segurando minhas mãos frias. Depois de tantas semanas mascarando a dor, eu estava prestes a colocar tudo para fora, sentada na calçada de uma casa aleatória. Apertei os lábios, tentando forçar as lágrimas, mas em vão.

— Chore, coloca tudo isso para fora agora, e eu te conto tudo o que sabemos. Se você não se abrir agora, desistiremos. — Alex apontou para ele e Alice, tentando me acalmar.

Senti o abraço apertado de Alice, com o cheiro familiar de limão, e finalmente chorei tudo o que pude em poucos minutos.

— Eu fui vê-lo por um único motivo. — Levantei a cabeça e senti o polegar de Alex secando minhas lágrimas. — No começo, eu relutava em gostar dele, mas não deu. Ele mostrou a quem quisesse ver o quanto gostava de você. Ele não teve medo do Augustus ou das consequências. — Meu queixo tremia, mas o olhar sério de Alex me confortava.

Alex contou como o encontrou em casa, debaixo de cobertas, e meu coração apertava ao ouvir as palavras duras, mas verdadeiras, do meu melhor amigo.

— Coloque na sua cabeça que ele não podia arriscar a vida do pai, da Mary, dos amigos e a dele mesmo para contar algo sem provas. E ninguém faria isso, nem você. — Alice sussurrou. — Tudo foi bem planejado, acobertado, e ao invés de abandoná-lo, você devia agradecer por, depois de dois anos, ele ter colocado nas suas mãos o que você mais queria. — Completou Alice.

Com a mão cobrindo minha boca, eu engolia o grito, sentindo-me egoísta. As palavras dos meus amigos atingiam meu coração como um golpe, fazendo-o estremecer dentro do peito.

— Eu sei disso, mas... — Tapei os olhos, tentando desabafar. — Acho que usei só a cabeça, só pensei na minha própria dor. Sou tão burra, sou tão egoísta... ele nunca vai me perdoar. — Bati na minha própria cabeça, fazendo Alex segurar meu punho.

A dor era insuportável, maior do que eu jamais imaginei. Era como se eu tivesse esquecido como viver sem o garoto de ego nas alturas e cabelos desgrenhados.

— Para com isso. Vocês dois já estão machucados o suficiente. Ninguém aqui... — Alex abriu os braços, gesticulando para o ambiente ao redor. — Ninguém está dizendo que ele não errou. Ele errou, sim. — Ele cutucou meu ombro, me fazendo encará-lo. — Mas você não foi burra, você apenas sofreu e ainda sofre. Mas se continuar ignorando seu coração, vai perder duas pessoas: o Andrew e o Gustavo.

Alice puxou a chave do carro do bolso do Alex e a posicionou na frente do meu rosto, me assustando.

— Faça sua escolha. — Olhei para o chaveiro com um coração pendurado, enquanto Alex arqueava as sobrancelhas na minha direção. — Eu, o Alex, os garotos, você e ele. Somos seis pessoas tentando dar um jeito em toda essa merda e trazer paz ao seu irmão. O coração da pessoa que você ama ainda está batendo, não está? — Alice falou com seriedade.

Limpei meus olhos com as mãos e, em um impulso, peguei a chave. Alice sorriu e me envolveu em um abraço imediato, e Alex nos abraçou, fazendo-me chorar ainda mais. Eu sentia meu corpo tremer, mas um alívio cortava minha alma, preenchendo-a de esperança. Então é isso? As pessoas precisam te atingir com palavras duras para que seu coração volte a bater?

— O Gustavo me pediu para cuidar de você quando fui à mansão. Ele disse que precisava ir embora por um tempo, algo sobre fugir da própria mente para encontrar uma solução. — Alex sussurrou, fazendo minhas pernas fraquejarem e meu coração disparar.

— Ele não pode ir embora. — Levantei-me de repente, assustando Alex, que também se levantou. — Para onde? Que horas? — Comecei a andar em círculos, desesperada. Isso não podia estar acontecendo.

As palavras de Will ecoavam em minha mente sem parar: "Não vou me meter nisso, mas, provavelmente daqui a algumas horas... Pode encrencar mais ainda seu coração." O sentimento de angústia me deixava paralisada, mas de uma coisa eu tinha certeza: eu não podia deixá-lo ir embora.

— Daqui a algumas horas... — Repeti para mim mesma, tentando encontrar respostas. — Alex! — Antes que eu pudesse continuar, ele segurou meus ombros e arqueou as sobrancelhas.

— Pegue esse carro e vá até a casa dele, faça o que seu coração manda. Não era isso que seu irmão sempre te dizia? — Ele sussurrou, me fazendo concordar. — E prometa a si mesma: nunca mais pensar só em você.

Soltei-me das mãos dele e o abracei o mais forte que pude. Em seguida, abracei Alice, a menina cacheada que, após tudo o que eu precisava ouvir, estava com o rosto inchado de tanto chorar.

— Eu te levo até ele, já que você bebeu. — Uma voz vinda de trás me fez virar, e, surpresa, o encarei. — Preciso me redimir pelo que aconteceu anos atrás, e se isso vai te fazer feliz, te levo até ele. — Michael surgiu do escuro, balançando a chave do carro pendurada em seu dedo indicador.

Meus amigos o encaravam junto comigo. Se alguém tivesse me contado, eu jamais teria acreditado. Alice me empurrou em direção ao seu primo, e, relutante, ouvi a tosse dele.

— Você vem? — Perguntou ele, apontando para o carro.

S2

Gente linda, as emoções estão a flor da pele não é? Chega um momento em nossa vida que precisamos escolher entre a razão e a emoção.

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