(Sobre)viver sem ele s2 Capitulo 36
Após meu término com Gustavo, passaram-se algumas semanas. Ao iniciar a terceira semana separados, já não chorava todas as noites mas também não tinha cor. Meus dias eram agora um misto de vazio e nuvens cinzentas, eu saia de casa apenas esporadicamente. Após uma crise de choro na cozinha, meu pai decidiu me afastar das tarefas até que minha mente voltasse ao lugar de onde jamais deveria ter saído, eles e amigos tocaram pouco no assunto do término, e quando tocavam, era de maneira superficial.
Pergunto-me todos os dias como ele está, nossos poucos amigos em comum não me dão notícias. Sentei-me na cama e prendi os cabelos bagunçados, envolvendo-me em um abraço involuntário com os joelhos, olhei para a parede repleta de polaroides e anotações que adornavam o ambiente, ele estava em todos os locais.
O relógio marcava cinco e dez da manhã de uma segunda-feira, e eu me sentia razoavelmente bem para trabalhar sem quebrar bolos ou queimar fornadas de biscoitos. O que eu temia era sair magoada de tudo que vivi com Gustavo, sabia que não seria fácil apagar as memórias de um relacionamento vivido intensamente e feliz. Após dias refletindo sobre o incidente envolvendo meu irmão, todas as minhas teorias de resolução desmoronaram quando descobri que o pai de Augustos era, de fato, o xerife da cidade e um dos mais influentes e respeitados em sua área. Vasculhei a internet e os arquivos da cidade e não encontrei nenhum rastro do acidente envolvendo o filho do xerife, tudo estava ocultado e não havia como provar nada.
Sob o chuveiro, a água gelada escorria pela minha cabeça, misturando-se com minhas lágrimas. Sentia-me encurralada em um beco sem saída, repleto de mágoa e saudade. Minha vida mudara drasticamente em poucas semanas, e eu era forçada a recomeçar, algo que eu não sabia como fazer. Durante a semana, meus amigos vieram me visitar e tentaram mudar minha percepção sobre o erro de Gustavo, mas permaneci inflexível.
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Na cozinha, minha mãe insistia em me empurrar comida quase goela abaixo, tentando evitar que eu emagrecisse ainda mais. No entanto, estava quase impossível sentir apetite.
— Você está bem para ir trabalhar? — Ela cochichou, me abraçando por trás com um carinho que misturava preocupação e ternura. — É perfeitamente normal não estar bem. — Ela sorriu, e eu sorri de volta, apesar da tristeza que me consumia.
A sensação do abraço dela, tão quente e reconfortante, contrastava com o vazio que eu sentia por dentro. Eu sabia que minha mãe estava tentando ajudar, mas nada parecia conseguir preencher o buraco que se abrira em meu coração.
Lembro-me da noite que a contei do nosso termino, passei parte da noite chorando em seu colo e ela chorou comigo. A mesma coisa que contei aos meus amigos, contei a ela. Somos de mundos diferentes e nossas personalidades não bateram depois de um tempo, e ela acreditou explicando-me que acontece. Ela me garantiu que vou encontrar alguém melhor para mim, e que o mundo é enorme.
— Estou melhor, a vida segue e já perdi semanas de trabalho. Sei que pagar um confeiteiro não é barato. — Falei com uma frieza distante, enquanto terminava minha torrada com geleia. — Não me trate como doente, mãe. — Beijei sua testa e peguei minha mochila da cadeira.
Ela me observou com um olhar carregado de preocupação e acenou de longe.
— Me ligue se quiser conversar, venha para casa e se cuide. — Ela sussurrou, sua voz tremendo levemente.
Com o passar dos dias em casa, eu finalmente voltava a ver a rua depois de muitos dias trancada no quarto. O sol brilhava forte, e os raios de luz atrapalhavam minha visão enquanto eu caminhava pelas ruas vazias. Meus pensamentos fervilhavam, atormentados pela ideia de querer me livrar de todos os meus problemas ou simplesmente bater a cabeça e esquecer tudo. Em alguns meses, planejava enviar minha inscrição para a faculdade, acreditando que sair deste lugar ajudaria a me recuperar. Gustavo e esse maldito amor, finalmente, desapareceriam de minha vida.
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Minhas mãos apertavam a massa dos biscoitos com uma força quase desesperada, o avental sujo de farinha e os cabelos presos evidenciavam o frenesi com que trabalhava desde cedo. O relógio na parede marcava sete e seis da manhã, e eu já havia preparado fornadas suficientes para o dia inteiro. Talvez, depois de uma queda tão dolorosa, pudéssemos tentar lidar com as lembranças sem chorar — ou pelo menos tentar.
Cada lugar ao meu redor estava impregnado de memórias com ele: nosso primeiro encontro naquela porta, um café naquela bancada, o jeito irreverente dele de me chamar para sair, mesmo sabendo que provavelmente levaria um fora, e o sapato de sola vermelha no Natal. — Um sorriso escapuliu dos meus lábios, mas eu o prendi de imediato.
Seu sorriso passava pela minha mente de forma lenta e dolorosa, e sua risada ainda ecoava em meus ouvidos, transportando-me para a festa de Maryn Condor no primeiro dia do ano, onde ele me afastou de uma briga com seu jeito protetor e dominante. — Olhei para a fôrma de urso ao meu lado, a massa repousando em um banco, e a imagem dele sentado ali, forçando-se a tomar um café que detestava, me invadiu novamente. — Suspirei profundamente, os ombros pesados, e mexi o pescoço para estalar.
Era ridículo como ele ainda estava presente em todos os lugares, mesmo na sua ausência. Era ridículo o quanto sua risada ainda ecoava em meus ouvidos. E era completamente ridículo o vazio que ele deixava, não importava quanto tempo passasse.
Há dias venho aprendendo sobre viver sem uma pessoa que me fez sentir viva depois de muitos anos, sempre li sobre isso em livros antigos e por vezes duvidei das moças que perdiam seus amores por um casamento arranjado por seus pais ou por a morte precoce em guerras. Pensava como podia sofrer tanto por alguém sendo que vários a cortejavam, os livros em minha estante devem dizer: Você leu mais não acreditou não é.
Ouço batidas fortes na porta de trás, e assusto-me saindo de pensamentos distantes. Reluto em ir abrir a porta, não queria arriscar vê-lo pois não me sentia forte o bastante para encarar seus olhos castanhos. -Ando em círculos, ouvindo as batidas já mais lentas.
— Deixe que eu atendo, suas encomendas não vão esperar, filha. — Meu pai apressou-se para abrir a porta, e eu me escondi rapidamente para não ser vista. — Está bem.
Ele foi até a porta de ferro, e mesmo me esforçando, não consegui ouvir o que se passava lá fora. Com cuidado, coloquei a cabeça para fora e avistei um rapaz moreno fazendo as entregas, provavelmente substituindo Gustavo. Percebendo minha curiosidade evidente, o senhor grisalho começou a falar em um tom mais alto.
— Trevor, é esse o seu nome, certo? — O senhor soltou uma risada ao ver o rapaz assentir. — Antigamente, quem nos trazia as encomendas era outro rapaz, não lembro do nome dele.
A tentativa do senhor de colher informações era clara, sua voz intencionalmente alta para me permitir ouvir.
-Gustavo, ele saiu da fábrica senhor. Acho que não sabe, ele era filho do dono. Peguei as rotas dele permanentemente. -O rapaz simpático orgulhoso de seu emprego, sorriu entregando a nota ao meu pai. -Obrigado.
Com a mão sobre o coração, senti-o estremecer ao saber que Gustavo havia saído da fábrica. Engoli em seco e me encostei na parede, tentando processar a informação. O rapaz de farda marrom seguiu em direção ao caminhão e, com rapidez, deu ré e se afastou. Meu pai passou por mim e, instintivamente, puxei sua blusa.
— Obrigado. — Suspirei, e ele me puxou pelo braço em silêncio até seu escritório. — Ainda não é fácil. — Sorri, e ele segurou minha mão com firmeza.
Sentamos em silêncio, ele atrás da mesa e eu à sua frente, olhando para minhas próprias mãos. Sabia que eu era o motivo do assunto, mas não sabia o que dizer, pois nada parecia adequado.
— Em duas horas você preparou biscoitos suficientes para dois dias inteiros. Semanas atrás, fiquei realmente preocupado com você. — Com os cotovelos apoiados na mesa, ele me olhava com uma expressão grave.
— Desculpe, pai... — Sussurrei, deixando uma lágrima escorregar. Limpei-a rapidamente e senti sua mão em meus cabelos. — Estou bem, vou voltar ao normal aos poucos, sabe...
Após alguns minutos de silêncio, ouvi-o suspirar. Ele se apoiou na cadeira, inclinando-a para trás. Com as mãos entrelaçadas sobre a barriga, meu pai me observava, ainda sem falar nada. Talvez ele não soubesse como consolar a filha, ou soubesse que palavras não eram suficientes para aliviar a dor.
— Tentei acreditar quando você me disse que terminou por causa das personalidades, mas, sinceramente, não acredito. — Meu pai continuou, sua voz carregada de preocupação. — Já estava sabendo que o Baker pediu demissão da fábrica, fui comunicado sobre o novo entregador, o que me leva a crer que ele está tão mal quanto você.
Demissão? O que se passa em sua cabeça? Como pode largar tudo dessa forma? Senti um aperto no peito ao ouvir suas palavras. A realidade de que Gustavo estava passando por uma dor semelhantes a minha tornava a situação ainda mais dolorosa.
— Talvez ele esteja lutando para encontrar um caminho, assim como você — acrescentou meu pai, tentando encontrar um ângulo positivo na situação. — Não foi quem tomou essa decisão, mas as vezes, as pessoas fazem escolhas erradas quando estão desesperadas. Posso procurar saber como ele está, se quiser.
— Não quero saber sobre ele, Albert, me poupe das informações... — interrompi, fazendo-o rir. — É sério, não quero. — concluí friamente.
Levantei-me da cadeira, temendo ter sido fria demais com meu pai, mas mascarar sentimentos não era algo em que eu fosse boa, e ele me conhecia melhor do que ninguém.
— Tudo bem, já é crescida para saber sobre seus sentimentos. Irei desculpar seu erro hoje, mas tenha cuidado com a quantidade das receitas, caso contrário, é melhor se afastar para encarar suas dores e parar de fugir delas se escondendo atrás das portas. — Suas palavras duras me fizeram suspirar, e apenas me retirei do ambiente.
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Meu dia corrido e cansativo havia chegado ao fim, sem pausas para comer a tarde passou rápido. Os últimos clientes saiam satisfeitos da padaria, crianças sorridentes brincavam com seus biscoitos que meu pai os davam de graça a fim de não perde-los. Sentada em uma mesa distante com uma caneca de café gelado nas mãos peguei-me mais uma vez lembrando-me de momentos aleatórios assim como fiz nas ultimas semanas. Seus olhares penetrantes encarando-me indiscretamente e chamando-me de sereia em irritavam. Lembranças do seu desabafo em minha casa tarde da noite após me ensinar a jogar basquete em vão, me fazia bem. Suas lagrimas passavam em minha mente em câmera lenta a fim de me torturar, e de fato torturava.
Bebia meu café gelado lentamente, observando meu pai trancando as portas e fechando as cortinas. Realmente, a noite havia começado a aparecer. Pronta para ir embora, peguei minha mochila e caminhei até a saída.
— Irá direto para casa? — meu pai sussurrou ao me ver saindo.
Seu sorriso me fez sorrir também. Sabia que ele queria me ver bem e estava dando o meu melhor, mas ainda não era o suficiente.
— Talvez sim, chegarei lá, pai. Não se preocupe, estou bem melhor. — Entreguei-lhe um sorriso e saí pela porta, dando de cara com a rua movimentada.
Meu celular vibrou desesperadamente no bolso da minha jaqueta, e o peguei, já andando em passos lentos.
— Oi, Ross, sumido. — Atendi a ligação de Alex, que respirou aliviado.
Degluti seco e encarnei minha atriz interior para não preocupá-lo.
— Sua voz está bem melhor. Quer fazer algo hoje? Podemos ver um filme ou apenas não fazer nada juntos. O que acha?
Minha encenação deu certo, aparentemente.
— Claro, quero você e a Alice em minha casa assim que eu chegar. Irei andando devagar para tomar um ar, quando chegar aviso.
Alex permaneceu em silêncio por alguns segundos, e seu suspiro me fez sorrir.
— Tudo bem, mantenha o celular ligado.
Após uma curta conversa, desliguei a ligação e permaneci andando rumo à minha casa, tentando parecer o mais normal possível diante de como passei a semana. As ruas, um pouco mais movimentadas que o normal, me faziam seguir o caminho tranquilamente. Andando pela calçada, meu coração parou por alguns segundos ao vê-lo sentado no capô do seu carro brilhante, em frente a um bar mal frequentado. Com garrafas de cerveja ao chão, ele bebia uma atrás da outra sem perder tempo.
Estática, o observava às escondidas, como uma adolescente admirando algo de longe. Ele, com seus cabelos desgrenhados e sua calça rasgada nos joelhos, chamava a atenção de garotas com pouca roupa que passavam por perto. — Bufo ao perceber uma delas apontando para seu carro. Ao acabar a cerveja, visivelmente bêbado, jogou a garrafa ao chão e pulou do capô em um único movimento, entrando no bar, sendo encarado por duas meninas.
Preciso ir embora, sua vida não é problema meu, você foi apenas um acaso do meu coração.
Alguns passos à frente, tentei esquecer de tê-lo visto. Caminhei em passos rápidos, mas um barulho de vidro quebrando da rua me assustou. Parada, permaneci estática por receio de me virar. O que precisava fazer era ir para casa e viver normalmente, como tenho feito nas últimas três semanas. Ouvi gritos de homens e, ao me virar, avistei Gustavo sendo jogado ao chão por dois homens enormes, senti minhas pernas tremerem. Baker levantou cambaleando e socou o rosto de um deles com toda a força que havia em seus punhos cerrados, foi nessa hora que meu estômago revirou e coloquei para fora todo o café que havia tomado minutos atrás. — Agachada, passei a mão em minha testa, que estava cheia de gotas de suor frio.
Encarando a cena de longe, me sentia quebrando em milhares de pedaços. Via Gustavo sendo jogado no chão por um dos homens novamente, e gritos faziam pessoas se juntarem ao seu redor. Aparentemente, todos estavam com álcool na cabeça e não percebiam a gravidade da situação. Limpei a boca com minha própria blusa e corri o máximo que pude em sua direção, já que estava distante.
Ofegante, me aproximei do círculo formado por curiosos e empurrei quem vi pela frente até chegar ao centro da briga. Pessoas curiosas gritavam sem se preocupar em apartá-los.
— Saiam da frente, preciso passar. — Puxei um garoto pela camisa e ele me olhou assustado. — Saiam. — Empurrei uma mulher que me olhou torto.
O dono do bar, nervoso, tentava apartar a briga sozinho, mas era inútil. Gustavo, com a boca inchada e o supercílio cortado, me fazia sentir mais vontade de vomitar devido ao meu sistema nervoso abalado. — Me joguei no chão em sua direção e segurei seu corpo mole, já sem forças, tentando levantar-se mais uma vez.
Os homens, três vezes maiores que eu, junto com seu amigo, tentaram puxá-lo pela camisa, e eu lutei para impedi-los. O puxei para mais perto de mim, como se o guardasse entre meus braços finos. Nesse momento, não senti medo algum, apenas encarei aqueles que desejavam machucá-lo.
— NÃO TOQUEM NELE! — Empurrei o braço do homem à minha frente e ele se conteve, espumando de raiva. — Gustavo, acorda. — Balancei seu rosto, e seus olhos entreabertos pareciam não me enxergar.
Meu corpo tremia e o balançava com destreza, a fim de acordá-lo.
— Não se mete, moça, não queremos te machucar. — O homem raivoso tentou puxá-lo mais uma vez, e eu empurrei seu braço com mais força, fazendo-o apertar as próprias mãos.
— Pode me machucar então, ele não. — Protegi o rosto de Gustavo, que já estava com rastros de sangue, o cobri com meus braços. — O que está esperando? — Encarei o homem musculoso, e ele sorriu.
Os homens andavam em círculos, e assumindo o risco de me machucar, permanecia ao lado de Gustavo, protegendo-o com meus braços. Ele estava quase apagado, provavelmente por conta do álcool, e não fazia nada além de gemer tão baixo que mal podia ouvir.
A multidão se desfez após os homens entrarem no bar, visivelmente irritados. Sentada no chão com Gustavo, senti minhas lágrimas escorrerem. Um senhor com um pano pendurado ao ombro se aproximou e se agachou em nossa direção, ele suspirou ao encarar meus olhos cheios de lágrimas e apenas bufou.
-O leve para casa, faz quase um mês que ele vem aqui todos os dias paga contas enormes e não para de se meter em brigas. Os irmãos Rash estavam o poupando há dias, não se preocupe com a conta de hoje. -O senhor levantou e tocou em meu ombro gentilmente.
— Lugar de merda. — Encarei a porta se fechando e voltei a olhar para Gustavo. — Como você vem parar nesses lugares? Não sabe ser rico? — Empurrei sua cabeça, e sem instintos ele apenas gemeu. — Acorda, Gustavo, você não é problema meu, vou embora agora. — Passei minha blusa em sua testa sangrando, o fazendo resmungar de dor.
Procurei os pertences em seus bolsos, encontrando a carteira no bolso traseiro e o celular no bolso dianteiro. O peguei, e ao desbloqueá-lo, nossa foto no papel de parede fez-me suspirar. Com a tela do celular em pedaços, ele não respondia ao meu toque. Ou seja, estava sem celular. Não pude ligar para absolutamente ninguém. Merda. — Peguei meu celular e abri a caixa de mensagem do Alex.
Ross, irei me ocupar por agora. Podemos marcar para amanhã?
Enviei a mensagem para Alex, temendo sua curiosidade. Com esforço, tentei ajudá-lo a levantar e literalmente o joguei no banco do passageiro do seu carro bagunçado. Inclinei-me e passei o cinto de segurança, afivelando-o, e pude sentir seu cheiro forte que tanto sentira saudade. — Sentei-me no banco do motorista e fechei os vidros.
Tudo bem, Anne. A Alice também se ocupou, amanhã faremos algo de certeza.
Alex respondeu sem perguntar o motivo, e me senti aliviada por não precisar explicar.
Com a cabeça apoiada no banco, chorava sem controle. Meu estômago embrulhado insistia em colocar algo para fora, sem ter. — Abri a porta do carro e vomitei somente água. Após semanas sem notícias suas, o vejo sem emprego e jogado no chão sangrando, aquilo me matava.
— Mary... — Gustavo se mexe e sussurra ao soluçar. — Mary...
Sua voz grossa fez meu coração palpitar de imediato, e o encarei.
— Baker, sou eu. Pode me ouvir? — Pulei do banco e o encarei. Gustavo voltou a dormir e, ao se mexer, bateu a cabeça no vidro.
Falando sozinha, me sentia frustrada.
— Pode... — Segurei sua cabeça, apoiando-a no banco novamente, e senti sua respiração em minha bochecha. — Pode não se machucar? — Passei minha blusa novamente em sua testa, o fazendo segurar minha mão.
Retirei sua mão quente da minha, seu toque me causava sensações nas quais precisava esquecer. Peguei a chave do carro e o liguei, minhas mãos tremiam por nunca ter dirigido após tirar minha carteira de motorista. Hoje precisarei vencer meu medo de uma vez por todas. -Fechei os olhos e dei partida no carro que o garoto tanto estimava.
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O asfalto úmido brilhava sob as luzes da cidade, e eu tentava manter as mãos firmes no volante, apesar do tremor que dominava meus dedos. O carro parecia um monstro poderoso embaixo de mim, e cada curva e cada freada pareciam um desafio imenso. Meu coração batia acelerado, e a respiração estava curta, como se o simples ato de dirigir fosse uma prova de coragem.
Gustavo estava ao meu lado, dormindo em um silêncio perturbador, e sua presença era o único pensamento que me mantinha em movimento, ele precisava de mim. A ideia de deixá-lo ali, vulnerável, sem ajuda, era algo que eu não podia suportar, então forçava-me a manter os olhos abertos, a me concentrar na estrada, mesmo quando as lágrimas ameaçavam obscurecer minha visão.
— Só mais um pouco, é só dirigir, você sabe fazer isso... — sussurrei para mim mesma, tentando acreditar nas minhas próprias palavras. — Só mais um pouco, por ele.
Cada semáforo, cada desvio era um teste, mas eu tinha que continuar. Eu estava fazendo isso por ele, o medo não poderia me consumir.
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Com o carro parado em frente ao portão da mansão do café, a lembrança da última vez que estive ali, quase um mês atrás, veio à minha mente. O portão se abriu, trazendo-me de volta ao presente, e entrei, parando na porta principal, onde Mary abriu a porta às pressas.
Desci do carro, e Mary veio em minha direção, completamente pálida. Ela se aproximou, já entre lágrimas, e pegou minha mão.
— Querida, o que houve? — Acalmei-a com um abraço e escutei-a suspirar. — Gustavo, o que aconteceu?
— Vamos tirá-lo do carro, te explico tudo lá dentro. — Sussurrei, apontando para Gustavo, deitado no banco do passageiro. — Me ajude, vamos carregá-lo.
Mary abriu a porta larga, e com os braços apoiados em nós, carregamos Gustavo, que estava sem seus sentidos em ordem. Sem prestar atenção ao ambiente ao meu redor, concentrei-me apenas em levá-lo para o quarto e sair o mais rápido possível dali.
Após subirmos as escadas com dificuldade, entramos no quarto de Gustavo, relativamente arrumado e com seu cheiro impregnado. Com ele deitado na cama, retirei seus tênis e suas roupas, completamente molhadas por algo que parecia cerveja, o deixando apenas de cueca e o cobri com seu edredom. Fechei as cortinas, deixando o ambiente escuro, e sentei-me ao seu lado.
— Nada pode ser forçado, do sentimento ao esquecimento. Deixarei as lembranças boas em algum lugar do meu coração. Eu te amo tanto que me assusta, sinto tanto sua falta...— Falei, com a mão sobre seu peito, sentindo seu coração bater freneticamente.
Mary trouxe um recipiente com água morna, toalhas limpas e uma caixa de primeiros socorros para tratar de seu filho. Sentada ao lado de Gustavo, meu corpo relutava em deixá-lo naquela condição. Insistia para minha mente lembrar da sua omissão e me deixar ir embora, mas de nada adiantou.
— Mary, pode me deixar fazer isso? — A senhora me olhou e consentiu, colocando a toalha de volta na água. — Eu te encontro lá embaixo e explico tudo. — Completei.
— Tudo bem, querida. Qualquer coisa, você me chama. — Mary se afastou, me enviando um doce sorriso, ainda preocupado.
Acompanhei Mary até a porta e acendi a luz. Passei os olhos pelo quarto de Gustavo, que parecia estar do mesmo jeito que o vi quase um mês atrás. Virei-me e me assustei ao ver minha foto pendurada em frente à sua cama, ele realmente havia pendurado meu rosto gigante na sua parede.
Espremi a toalha, antes mergulhada em água morna, e passei-a em sua mão suja de sangue e areia. Repeti o processo na outra mão, que não estava tão machucada quanto a dominante. Enxaguei a toalha, e uma água avermelhada saiu com facilidade, passei a toalha por todo o seu tórax, sem machucados, e subi até seu pescoço.
— Se machucar-se assim, irá ficar feio em breve. — Sussurrei para mim mesma. — Nunca terminou com ninguém antes?
Não, eu sabia.
Com delicadeza virei seu rosto em minha direção e o limpei precisando enxaguar a tolha mais de uma vez por seus machucados em puro sangue. Com o dedo indicador enrolado na toalha, limpava seus lábios e antes seco, se tornou rosa novamente.
Com seu rosto limpo, analisei seus machucados e apliquei um remédio alaranjado indicado por Mary com auxílio de um cotonete. Gustavo franzia o cenho ao sentir o ardor do remédio, mas nada dizia devido ao seu sono pesado misturado ao álcool.
Assustei-me quando Gustavo me abraçou pelo pescoço, fazendo-me ficar parcialmente sobre seu corpo, minha cabeça deitou em seu peito e ouvi as batidas do seu coração, fechei os olhos e sentia o braço dele pesado em cima de mim por algum tempo, mas não tempo o bastante para me fazer permanecer. Desconfiada de seu sono, levantei do seu peito e mexi em seu olho, abrindo-o, e para meu alívio, ele realmente estava dormindo. Soltei-me do seu braço pesado e levantei-me da cama, cobrindo-o por completo.
Apertei meu nariz para inibir um possível choro e saí do quarto rapidamente.
— Preciso de força, preciso de força. — Falei repetidamente para mim mesma ao fechar a porta do quarto. Enxuguei uma lágrima que insistiu em escapar e desci rumo à cozinha.
A casa silenciosa não parecia ser habitada; o corredor escuro dava-me a sensação de que o pai de Gustavo não estava em casa. Entrei na cozinha e encontrei Mary sentada à mesa, enxugando o rosto com um guardanapo.
— Está tudo certo com ele. — Sussurrei, fazendo-a me encarar.
A senhora com seu rosto inchado, gesticulou pedindo-me para sentar ao seu lado na mesa mediana. Mary suspirava e parecia escolher palavras ela estava visivelmente triste e não escondia.
— Obrigada por trazê-lo. Ele mesmo me avisou que terminaram, e sei que você não tem mais obrigação de ajudá-lo. Onde ele estava? — Sua voz baixa me fez sorrir e eu a encarei.
— Estava passando por uma rua perto da minha casa e o vi bebendo. Ele acabou se envolvendo em uma briga e eu o tirei de lá.
Mary olhou para suas mãos apoiadas na mesa, sem saber o que comentar. Então, ela sorriu, assoando o nariz.
-Estava tão aflita, faz semanas que tudo que entra naquele moleque é álcool. -Ela encarou garrafas de Whisky em cima da pia me fazendo arquear as sobrancelhas. -Parece que ele não quer reagi, diz que a culpa foi dele. -Mary pausa suas palavras.
-A culpa não foi dele, foi minha. Eu que terminei. -Murmurei fazendo-a me encarar.
— Ele me disse isso também, que a culpa foi dele. Mas não importa. Mesmo que a culpa seja dele, me diga se quiser que eu faça algo. Eu ajudarei. Fazia dias que ele estava estranho, chorando à toa. — Mary declarou, deixando-me curiosa.
Apoiei meus cotovelos na mesa e a interroguei.
— Antes do nosso término ele estava assim? — Perguntei, e ela consentiu. Lembrei-me de suas mudanças de humor repentinas semanas atrás.
— Assim não, mas estava bebendo, e no dia da sua festa na galeria de arte ele passou o dia no sofá se lamentando. Depois, o vi bem e pensei que tudo fosse melhorar. — Ela enxugou o nariz e suspirou.
Abracei a senhora ao meu lado, que parecia estar tão triste quanto nós. Acariciei seus cabelos e ela sorriu.
— Ele vai ficar bem, Mary, eu também vou. Assim como a felicidade passa, a dor também passa. — Beijei sua testa e a encarei.
Era disso que eu me convencia todas as manhãs.
— Resolvam isso, conversem, e tudo ficará bem. — Suspirei ao ouvir suas palavras e pedi sua atenção.
-Pode me fazer um favor? -Pedi levantando-me, a fazendo consenti. -Não o diga que eu estive aqui, apenas o diga que ele chegou e você cuidou de tudo. As coisas serão mais fáceis assim. -Declarei, fazendo-a concordar.
Ela me acompanhou até a porta, e peguei minha mochila em seu carro estacionado. Mary pediu que o motorista me levasse para casa em segredo, e assim ele fez.
De dentro do carro, acenei para Mary, que me observava ir embora da porta larga. Mais uma vez, saía por aquele portão, deixando meu coração para trás. Ver ele hoje, depois de todos esses dias, ver como está, me deixa ainda mais confusa. Como ele pode simplesmente se entregar assim? Deixar sua vida nas mãos dos irmãos Rash? Como pode ser tão imbecil a ponto de não sentir pena do próprio fígado?
Encarei minha blusa suja com seu sangue e minhas mãos machadas com o remédio alaranjado. O cheiro do seu quarto ainda impregnava minhas narinas, o que inexplicavelmente acalmava meu coração atordoado.
Minha cabeça é a razão, a angústia e a revolta. Meu coração é o amor, o toque, o cheiro. Dentro de mim há uma guerra, uma batalha que me fere e me desgasta a cada segundo.
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