Reencontros S2 Capítulo 59

Nota da Autora: Sei que não costumo deixar recadinhos por aqui, mas vamos lá  ♡  Preparem-se para um capítulo um pouco mais longo desta vez! Anne tem muitos pensamentos e reflexões, e vamos mergulhar fundo nisso com ela.

♡ 

Dizem que um tiro não dói, queria muito conversar com a pessoa que disseminou isso e desfazer esse mito, pois pelo menos em mim doeu como se meu corpo estivesse em puro fogo. Quando abracei Gustavo naquele galpão, sabia muito bem o que estava fazendo e que jamais me arrependeria disso desde que fosse feito com todo meu coração. Nunca vou saber se de fato ouvi tudo que falaram ou se foi apenas minha cabeça tentando trazer-me de volta, mas sei que ele jamais saiu de perto de mim, a voz do Gustavo ecoou em minha mente o tempo todo, mesmo fraca sentia seu toque e suas súplicas. Senti o desespero dos meus pais, aflição do Alex e senti todos os cuidados que recebi de Alice.

Acordei depois de algumas semanas completamente sedada e anestesiada, fui sentindo minha consciência voltar aos poucos e quando consegui abrir os olhos me senti grata por está viva, era como se não tivesse mais motivo nenhum para reclamar, era como se isso além de mexer com meu físico, o tiro tivesse mexido com meu coração. Todos esses dias vivi em companhia apenas da minha mente, e quando me dei conta que estava acordada nunca quis tanto minha rotina, o tédio da cidade, a preocupação excessiva dos meus pais, o grude do Gustavo, a voz alta da Alice e a proteção do Alex. Percebi que eu tinha tudo que precisava bem aqui.

Estava zonza, meu corpo estava pesado e meus olhos mal conseguiam abrir. Quando a enfermeira me viu despertar parcialmente, instantaneamente correram pessoas em minha direção e começaram a fazer testes em mim por completo. Fizeram cocegas nos meus pés para analisarem meu tato e meus reflexos, colocaram luz dos meus olhos para observarem minha consciência em questão de tempo e espaço, me fizeram falar meu nome e minha idade. Em poucos minutos o medico veio conversar comigo e me contou de tudo, todas as pessoas que passaram dias lá fora e as visitas que recebi, assim pude ver os presentes e desenhos por toda a parede.

Era surreal ver tudo aquilo, era surreal está bem. O médico me tranquilizou por hora e me pediu calma até ele comparar meus exames de antes com os de agora, mas que eu iria ficar mais calma em breve ao ver minha companhia da noite. Como se ele já estivesse familiarizado com toda a loucura da minha família, ele disse que havia aberto alguma exceções, sentia que enlouqueceram a cabeça do senhor doutor. –Fechei os olhos novamente e senti ter cochilado, até ouvir a porta abrir.

Por mais cruel que fosse não resistir a manter os olhos semifechados quando o ouvi falar comigo, mesmo sabendo que eu não responderia caso estivesse sedada. Senti seu cheiro embriagante mas não forte como se costume, era apenas o cheiro dele. Gustavo estava andando, arrumado, com os cabelos penteados e mesmo machucado estava incrivelmente bonito. Era como lembrar de vê-lo na escola sempre sentado no capô do seu carro, quando poderia imaginar que ganharia o amor do rei do basquete...

Gustavo começou a falar, conversar e contar coisas que me deixaram feliz ao ouvir, ele contou dos meus amigos e do seu pai que havia mudado para melhor, eu realmente não via a hora disso acontecer e realmente precisava ver com meus olhos. Mas naquele momento me bastava ver ele e foi o que fiz.

O ouvi falar, o vi arrumar as coisas e por fim senti seu toque. Gustavo sentou ao meu lado e com a cabeça deitada na minha cama ansiava o tocar, eu precisava o tocar. Mas foi quando o ouvi me prometer as coisas mais lindas e simples do mundo, ele prometia momentos e memorias tudo o que de fato sempre quis, o garoto prometia nunca mais sair do meu pé mesmo que custasse contratar com confeiteiro para colocar no meu lugar, e sabia que ele cumpriria tudo isso.

Quando nossos olhos se cruzaram depois de tudo, vi seu rosto abatido e marcado pelos curativos, o que partiu meu coração ao me lembrar de como ele sofreu. Seus olhos estavam inchados e ainda mais profundos, e ao sentir que ele tremia, tremi também e naquele momento, jurei para mim mesma que nunca mais viveria sem aquele olhar. 

Gustavo deitou ao meu lado, e finalmente, minha alma aflita pôde descansar. O calor dele era reconfortante, e sua respiração ainda descompassada me acalmava. Ele adormeceu quase instantaneamente, como se não dormisse há dias, o que não me surpreenderia. 

Com meu polegar, acariciava sua mão. Ela era maior que a minha e macia, suas veias aparentes sempre me faziam sorrir, elas eram quase pedindo para serem puncionadas. Gustavo era a personificação de algo puro e transparente, ele nunca conseguia esconder suas emoções e era exatamente por isso que o amava tão profundamente e genuinamente. Por muito tempo, tive medo de me tornar vulnerável a alguém e acabar machucada — quem nunca tem esse receio? Sempre desejei que as pessoas enxergassem meu coração pelo meu olhar, pois demonstrações exageradas me deixavam sufocada e inquieta. A única pessoa que sempre conseguiu expor todos os meus sentimentos era meu melhor amigo... até o herdeiro do café aparecer, é claro.

Com certeza preciso falar sobre isso no passado, Gustavo chegou lutando contra paredes que existia em mim e sendo ele, nunca pediu permissão. Ele colocou uma armadura feita de ironia, bom humor e paciência, aos poucos as paredes foram caindo, e algo que penso e pode até não fazer sentido algum, sinto que entre mim e o Gustavo tem um espelho. Ele me enxerga em si e eu me enxergo nele.

— Passou muitas noites em claro? — encarei seu rosto com um sorriso leve. — Achou mesmo que ia se livrar de mim? Acho que falei pouco o quanto te amo. Eu realmente te amo há muito tempo, me apaixonei desde o início. — Fechei os olhos, tentando acalmar minha mente.

A enfermeira chegou poucas horas depois, e eu ainda não tinha conseguido dormir. Reconheci-a de imediato; era a mesma pessoa que cuidou de mim quando estive aqui com meu irmão e o perdi. Agora, ela estava cuidando de mim novamente, ao lado de tantas outras pessoas que eu levaria uma eternidade para agradecer. 

Quando Amy viu Gustavo deitado na cama, arregalou os olhos e gesticulou para ele descer eu logo neguei com a cabeça, ela fingiu um suspiro de estresse.

— Pode falar alto, ele dorme como uma pedra. — Eu ri, e, como previsto, Gustavo continuou em sono profundo. — Como um urso depois de comer.

Amy se aproximou e fez algumas anotações antes de se sentar ao meu lado. Ela parecia conter as lágrimas e, com um toque gentil, colocou a mão na minha testa. Anos atrás, ela me contou que nunca quis fazer medicina, sempre quis ser enfermeira, afinal ela queria mesmo era cuidar das pessoas, e fazia isso com maestria. Amy era eficiente, com uma presença calma e carinhosa, tratava todos com um cuidado genuíno.

E para completar, era uma pessoa muito bonita.

— Menina linda, como você está? Você é abençoada por tantos motivos... — Ela enxugou minha testa e ajeitou meus travesseiros, parecendo visivelmente aliviada. — Quando te resgatei naquele galpão, você estava tão mal... E esse moço aqui, tão transtornado, que por um instante pensamos que o tiro havia pegado nos dois. — Arregalei os olhos, e ela voltou a sentar, rindo baixinho. — Mas se o médico chegar, empurra ele daí. A cama do paciente é só do paciente. — Neguei com a cabeça, e ela apenas sorriu.

Amy continuou contando sobre Gustavo, suas reações, e como ele ficou por todos esses dias. Cada palavra dela apertava meu coração, como se eu estivesse revivendo tudo com ele.

— Ele é minha casa... vê-lo sofrer é tão ruim. — sussurrei, e ela concordou com um leve aceno. — É um gato, não é? Quem fez os curativos nele? Só para saber... — Olhei para Gustavo e Amy riu de novo, com meu humor torto.

— Fui eu mesma, pode ficar tranquila. — respondeu ela com um sorriso sereno. — Seu "gato" e muita gente estiveram aqui, a recepção do hospital ficou lotada e barulhenta quase a semana toda, parecia até que tinha uma celebridade internada. — Ela estava tão calma que sua tranquilidade me acalmava também. — Você tem uma família enorme, acho que fiz a testagem sanguínea em mais de quinze pessoas só para alguém te doar sangue. — Ela mexeu o punho no ar, rindo.

Meus olhos arregalados a fizeram rir ainda mais, era muita informação de uma vez, e fiquei imaginando de onde surgiram tantas pessoas. Tomara que tenham, pelo menos, enchido o estoque de sangue do hospital. Amy contou sobre a rotina deles, dizendo que meus pais, Alex, Alice e Gustavo se revezavam para nunca o hospital. Aquilo encheu minha alma de gratidão e alegria, só queria poder abraçar todo mundo agora.

— Sou tão sortuda... como nunca percebi isso? Precisei quase morrer... — suspirei, e ela me repreendeu com um olhar divertido. — Quem me doou sangue, afinal? E quando meus amigos e meus pais vão chegar?

Fiz tantas perguntas de uma vez que Amy se esforçou para responder, tentando acalmar minha curiosidade de uma semana inteira de dúvidas acumuladas. Havia tantas coisas que eu queria perguntar, mas algumas respostas ela não poderia me dar. Como o que aconteceu com aquele desgraçado do Augusto e se eu finalmente poderia acertar uns socos nele.

Filho da puta.

— Calma, respire ao falar, por favor. Seu corpo ainda está sensível, e quero você no quarto. Se o médico liberar pela manhã, transferimos você, e poderá ver todas as pessoas. — Ela me explicou, e obedeci, respirando fundo para me acalmar. — Sei que duas pessoas tinham o mesmo tipo que o seu, O +. Após os testes, seu pai foi apto a doar, mas a outra pessoa não pôde. Ouvi dizer que é uma mulher loira, mas isso ficou com o banco de sangue, então não tive acesso aos detalhes.

Meus pais, ambos são o+

— Acho que essa loira é minha mãe... — Sorri, e ela concordou. — Ela está bem? Por favor, diz que sim... — Perguntei, franzindo o cenho, e ela sorriu.

— Acho que foi ela, sim. Uma das enfermeiras mencionou que só recebeu a doação de uma pessoa, porque a outra está grávida. — Ela me explicou, e eu já podia imaginar que, de fato, era minha mãe. — Ela está bem, e os bebês também, ficamos de olho nela o tempo todo.

— Você viu um moreno de olhos verdes e cabelo enroladinho? — Perguntei por Alex, sentindo meu coração acelerar com a expectativa de vê-lo. — E uma menina estilosa com os cabelos cacheados e brilhantes... — Sabia que ela devia ser a responsável pela minha trança e precisava desesperadamente de seu abraço.

— O rapaz parecia bem abalado, acho que foi no posto de enfermagem umas mil vezes esses dias. Quando chegou, estava ao lado da filha do dono, e ela também estava mal. — Filha do dono? Emma? Mal por mim? Olhei para Amy, confusa, mas guardei o pensamento. — E essa outra menina estilosa visitou você quase todos os dias e brigava com os enfermeiros para te arrumar.

Soltei uma risada instantânea. Era a Alice, com certeza. Temperamental e sempre pronta para brigar.

Finalmente, senti que podia respirar aliviada. Imaginava o tanto que todos eles tinham para falar sobre minha atitude. Meus pais também devem ter ficado muito preocupados, e, claro, causei despesas e fiz todo mundo chorar. Mas fiz o que precisava ser feito, e não me arrependo, não importa o que digam.

— Há quanto tempo estão juntos? — Amy perguntou, me tirando dos meus pensamentos enquanto aplicava outro remédio na minha veia.

Pensando bem, acho que me apaixonei por ele no Natal. Ele estava radiante, com um cheiro que ficou na minha cabeça por dias. Estava arrumado, com o cabelo cheio de gel e sapato de marca, na cozinha, comendo um dos meus bolos. Lembro que quase surtei ao saber que ele viria jantar em casa, eu sabia que seria impossível resistir àquele charme e doçura.

— Sentimentalmente acho que há muitas vidas, chega a ser assustador. Mas, oficialmente, estamos juntos há quase sete meses. Pode parecer pouco na contagem dos homens, mas parece muito mais, sabe? Passamos por muita coisa... — Comentei, e fiz uma careta ao notar seu olhar atento no meu curativo.

— Olhando de longe, parece que vocês estão juntos há muito mais tempo, e essa questão de tempo realmente não importa. Vejo uma intimidade grande entre ele e sua família. — Ela sorriu, e eu assenti. — Vai ver, quando menos esperar, terão se passado dez anos juntos. Ame com toda a intensidade que puder. — Ela se levantou e me cobriu com o lençol. — Tente dormir um pouco, descanse.

Amy acariciou meus cabelos com um sorriso gentil antes de sair. Ela me visitava de meia em meia hora, eu podia até contar. E, como ela mesma disse, o sono começou a bater. Acomodei-me mais perto do meu namorado, sentindo sua respiração tranquila contra o meu braço saudável. Era uma maneira perfeita de adormecer.

S2

Abri os olhos e olhei ao redor, percebendo que estava em outro lugar. Mexi-me levemente e notei que minha corrente estava de volta em meu pescoço, afinal Gustavo sabia o quanto ela significava para mim, mas ele já não estava mais na cama comigo, o que me fez imaginar que deve ter sido expulso. 

O quarto em que eu estava agora era amplo, com a luz suave e baixa. Ainda havia alguns aparelhos ao meu lado, conectados a mim, e uma mesa maior ao lado com alguns itens pessoais deixados para mim.

Meus pais cochilavam no sofá próximo, e por alguns instantes, os observei em silêncio. Minha mãe estava com a barriga visivelmente maior, apoiada no ombro do meu pai, que parecia exausto e com os cabelos desarrumados. A imagem deles ali, exaustos e vulneráveis, me tocou profundamente, eu podia sentir a dor que haviam passado, sendo que essa não era a primeira vez que enfrentavam algo assim e naquele momento jurei a mim mesma que lhes daria muitos motivos para sorrir. 

Sabia que meu pai provavelmente não abria a padaria há dias, sem conseguir dormir à noite, e estaria gastando o que talvez nem tivesse, apenas para me ver bem novamente.

— Pai... — sussurrei, com a voz embargada, e o vi abrir os olhos lentamente.

Ele conteve a euforia ao me ver acordada e, com um toque gentil, chamou minha mãe, deslizando a mão pelos cabelos dela. Ambos se levantaram, e eu não consegui conter as lágrimas. O alívio e o amor que senti ao vê-los me fizeram chorar intensamente, era como se, naquele instante, o medo que eu mantivera preso finalmente pudesse sair. 

Tudo o que eu queria era abraçá-los e senti-los por perto, vivos, comigo.

— Meu amor, filha!— sussurrou meu pai, acariciando meu rosto com a voz embargada. Minha mãe segurou minha mão com força, um gesto que transmitia toda a preocupação que guardava em silêncio. — Como senti medo de perder você.

Meu pai me tocava trêmulo, sua risada se misturava com lágrimas e estava vermelho como um tomate. Um senhor tomate.

— Anne, você está viva, minha filha. — Minha mãe sentou-se ao meu lado e apoiou a cabeça em minha mão, a voz embargada. — Minha filha, que medo eu senti. Meu Deus, senti tanto medo... senti tanto a sua falta. 

Toquei seus cabelos macios enquanto ela apertava minha mão com força.

— Sinto muito por fazê-los sofrer, eu amo vocês — sussurrei. — Mas segui meu coração... Eu ia perdê-lo, não podia perder ele. — Uma lágrima escorreu, e meu pai a limpou gentilmente.

Ele se sentou ao lado da minha mãe, e quando olhei para seus olhos azuis, vi que também chorava, o rosto avermelhado, mas com um sorriso suave surgindo em seus lábios.

— Está se desculpando por quê, meu amor? — Minha mãe se inclinou, enxugando o rosto com um lenço. — Você está viva, foi forte... e isso nos fez perceber o quanto somos abençoados.

Senti a mão dela no meu rosto e solucei, aos poucos me dando conta de tudo. Era como se a ficha estivesse finalmente caindo, e eu pudesse ver quantas pessoas ficaram ao meu lado durante aqueles dias intermináveis, enfrentando chuva ou sol. Dizem que, muitas vezes, só damos valor às coisas quando as perdemos, mas mesmo sem perdê-los, eu senti esse valor de forma profunda. Percebi o quão rica sou, e não tem nada a ver com dinheiro.

— Eu amo vocês, amo vocês demais. — Com minha mão boa, os toquei, e meu pai me abraçou forte. — Me desculpem por fazê-los sofrer, por vê-los chorar, por noites em claro, por tudo... — Enxuguei os olhos, e minha mãe acariciou minha testa, me tranquilizando.

— Nada de choro, já passou e estamos bem agora. O que importa é o hoje, e você foi tão corajosa. Vocês dois foram corajosos e tem muita gente ao seu lado, Anne. Todos os dias o Gustavo estava aqui com você, sem faltar um dia sequer, e deu justiça ao seu irmão. Ele é um ser iluminado e somos gratos por ele está a salvo.  — Minha mãe falou com ternura, me acalmando, e pude respirar fundo sem deixar que as lágrimas voltassem.

Com calma, eles me explicaram como tudo aconteceu durante esses dias e o que houve naquele fatídico dia. Contaram-me que Augustos também foi baleado e estava preso, e que Gustavo conseguiu reunir todas as provas de que precisávamos, embora eles não soubessem como ele havia conseguido. O simples pensamento de tudo aquilo fazia minhas mãos suarem, aquela noite foi a mais agoniada e traumática que já vivi. A cada momento, o ruivo deixava claro que ia nos matar — e hoje, ao ouvir meus pais, percebo o quanto isso quase se tornou realidade.

Minha mãe me contou que o pai de Gustavo está ainda muito abalado, e eu poderia imaginar isso tanto quanto imaginava Mary, eu queria tanto vê-la. O Nicholas havia colocado funcionários em nossa padaria e alguém no meu lugar, o que me deixava aliviada e grata. Ele era um homem de coração bom, apenas não sabia como se expressar com o filho, mas creio que tudo mudou segundo Gustavo. Minha família recebeu todo apoio por parte dos Baker e dos meus amigos, minha mãe me mostrou seu celular cheio de chamadas de Alex, Alice e muitas de Gustavo.

— Precisamos conversar muito, mas tem uma pessoa que precisa te ver com urgência. — Meu pai beijou minha cabeça e se afastou. — Vou ficar ali fora, e passaremos o dia aqui. Você verá muitas pessoas.

Meus pais saíram do quarto, e pude notar a relutância da minha mãe em me deixar, mas, segundo eles, havia pessoas que precisavam garantir que eu estava viva. Não fazia ideia de como estava minha aparência, mas isso era o que menos importava agora. Só queria ir para casa, me jogar na minha cama bagunçada e tentar encontrar paz depois de tudo. Depois de algum tempo, ouvi duas batidas suaves na porta.

— Pode entrar. — Falei, e a porta se abriu.

O pai do Gustavo entrou com Mary ao seu lado. Ele não estava de terno como de costume; suas roupas casuais e o rosto sem barba o faziam parecer mais jovem. Sorri para Mary, que deixou uma lágrima escapar. Ambos se sentaram ao meu lado, e um silêncio carregado tomou conta do ambiente.

— Pensei tanto no que dizer durante todos esses dias... mas agora, não sei por onde começar. — Nicholas falou com uma tristeza que fez sua voz soar quase inaudível.

Mary colocou a mão em seu ombro e pediu para falar.

— Obrigada por salvar a pessoa que eu mais amo. Ele é tudo o que tenho depois da minha tia idosa, que, como diz Gustavo, está "à beira da morte" desde sempre. — Ela soltou uma risada triste, e eu apertei sua mão. — Quando ele me falou de você, todo animado e saltitante, eu sabia que você viria para somar na vida dele... só não imaginava que seria de um jeito tão intenso. — Ela acariciou meus cabelos, e Nicholas assentiu, com uma expressão de gratidão misturada à dor.

Ver o pai e a governanta do Gustavo ali, me agradecendo de coração, foi um momento que me comoveu profundamente.

Mary contou sobre das vezes que se preocupou com Gustavo, das vezes que sentiu medo de perde-lo e de como criou como filho. A mãe do Gustavo morreu quando ele tinha apenas doze anos, mas Mary começou a trabalhar para o Baker após o casamento dos patrões. Ela era muito mais que uma funcionaria e todos sabiam disso, ela fazia parte da família como se possuísse o sangue dos Baker.

— Tudo isso me fez perceber o quanto perdi, o quanto perdi tempo. — Nicholas me olhou fixamente, sua voz carregada de emoção. — Nunca vou poder te pagar pelo que fez, nem se eu vendesse tudo que possuo. Não existem palavras que possam expressar minha gratidão por você ter arriscado sua vida. — Ele apertou minha mão com força, sincero, deixando cair as barreiras que sempre mantinha erguidas.

Nicholas, mesmo sendo sério e reservado, sempre foi gentil comigo, buscando conversar e se abrir, especialmente nas poucas vezes em que jantamos juntos. Ele sempre aconselhou Gustavo, especialmente sobre nosso relacionamento, e fazia isso sem reservas, na minha frente, como quem realmente queria o melhor para nós dois.

— Eu amo ele, e essa é uma das poucas certezas que tenho. — Olhei nos olhos dele e falei com o coração. — Eu o salvaria quantas vezes fosse preciso. Gustavo sempre fez o melhor por mim, me ajudou a mudar e a enxergar a vida de uma forma que antes eu não via. Vocês não precisam me agradecer, de verdade. — Sorri, sentindo que era isso mesmo; eles não me deviam nada.

— Obrigado por salvar a pessoa mais importante para mim, por ir atrás dele e por não acreditar naquela carta. — Nicholas suspirou, e o peso de suas palavras foi intenso. — Eu sei que fez isso por amor... Eu daria qualquer coisa para salvar Madeline, até carregaria o câncer dela se pudesse.

— Pode fazer qualquer coisa por mim, sogro? — perguntei, vendo-o assentir rapidamente e pegar o celular, preparado para comprar o que fosse preciso.

Mary se aproximou, e eu lhe pedi um favor. Ela trouxe um pequeno pote branco e colocou em minhas mãos. Eu o segurei, hesitando por um instante, mas sentindo que aquilo era o certo.

— O que quer, querida? — Mary perguntou, o rosto carregado de preocupação.

Ela era tão doce e prestativa, e, por um momento, desejei que Madeline, onde quer que estivesse, soubesse que eu tinha aqui uma "sogra" incrível, uma mulher que cuidava e amava Gustavo como uma mãe.

-Quero te pedir para continuar assim Nicholas... –Encarei minha mão e fiquei sem jeito. –Você é um bom pai, nunca vi o Gustavo tão feliz apenas por você usar um short. –Degluti. –De todo amor que puder a ele, mesmo que precise voltar ao trabalho em breve. Vê-lo feliz, irá ser minha recompensa. –Falei, calmamente e abri o potinho branco.

Nicholas segurava o choro, mas os olhos vermelhos e marejados entregavam seus sentimentos.

— Não se preocupe, senhorita Clark, não é tarde demais. Mesmo com o tempo perdido, farei o meu melhor para compensá-lo. Quase o perder foi como se tudo perdesse o sentido... Todo aquele império deixou de importar. — Ele olhou para Mary, que apertou seu ombro num gesto de apoio. Ele retribuiu o gesto com um sorriso melancólico.

Peguei o potinho com a bala que quase tirou minha vida e o coloquei na mão de Nicholas. Era estranho ter aquele objeto ali comigo, mas o médico me disse que, ao segurá-lo, eu entenderia minha força. E agora, meu coração insistia em passá-lo a ele.

— Isso era para o meu filho... — Nicholas murmurou, analisando a bala. Fechou a mão com força, contendo uma emoção que quase transbordava. — Você é corajosa, minha querida. Salvou-o com bravura. — Sua voz era um sussurro enquanto ele apertava o potinho.

— Na verdade, salvei a todos nós, Nicholas. Porque viver sem ele, para nós três, seria o mesmo que morrer. — Sorri, deixando uma lágrima escapar, e bati levemente na cama, tentando aliviar o clima. — Chega de lágrimas! Estamos todos vivos, e em breve faremos uma festa na piscina. Ah, e tenho que dizer, sogro, adorei o visual novo! — Olhei para sua camisa florida e assenti, sorrindo. — Quantos anos, mesmo? Trinta?

— Querida, mesmo que pareça oitenta, ele só tem quarenta e um. — Mary riu, e eu arregalei os olhos sem disfarçar, o que fez Nicholas rir também. — Acredita que ele foi com Gustavo numa loja para jovens?

— Mary, não me exponha assim! — Nicholas balançou a cabeça, rindo. — Eu só levei Gustavo para espairecer e acabei comprando essas blusas coloridas. A moça da loja disse que era a última moda. — Ele abriu os braços, exibindo a camisa. — Mal sabiam distinguir quem era o pai e quem era o filho!

Sua risada rouca encheu o quarto, e todos rimos juntos, sentindo o peso do momento se perder entre nossas risadas. Pela primeira vez, vi o senso de humor de Nicholas sem as camadas do terno preto e da seriedade e foi então que entendi, o porquê de Gustavo estar tão feliz nos últimos dias: seu pai era um bom homem, alguém que merecia um pouco de alegria na vida.

— Só se for moda havaiana ou festa latina! — Mary brincou, com um brilho nos olhos. — Essa camisa chega antes dele nos lugares!

A verdade é que a camisa tinha cores vibrantes, chamativas e alegres, um reflexo de um lado de Nicholas que finalmente se permitia ver.

Eles conversaram sobre tudo, sobre o futuro e ele nos contou que a fabrica está indo bem mesmo sem sua presença, o que o deixa tranquilo para planejar o que fazer durante o dia. Animado ele contou que após minha saída faremos uma festa em sua piscina pois nunca foi usada por ele. Nicholas parecia está vivendo sua vida novamente e aproveitando a moda colorida, nosso assunto foi cortado quando a enfermeira Amy entrou em perceber Nicholas.

— Anne, como está hoje? A recepção está lotada de novo, acredita? — A enfermeira que entrou no quarto corou ao perceber os pais de Gustavo presentes. — Desculpem entrar assim, sou a enfermeira Amy.

Amy sorriu um pouco sem jeito, mas Nicholas e Mary a cumprimentaram com simpatia.

— Ela está se recuperando bem, senhorita Amy? — Nicholas perguntou, focando a atenção nela.

Amy sorriu, e consentiu em direção a Nicholas. 

—Está sim, muito bem! —A enfermeira afirmou.

— Amy, esse Nicholas, o pai do gato e ela é a Mary, pessoa maravilhosa que o ajudou a criá-lo. — Sorri e notei a expressão confusa de Nicholas. — Sogro, eu chamo seu filho de gato.

Por um momento, vi um brilho de orgulho no olhar de Nicholas, e mesmo sabendo que Gustavo se parecia mais com a mãe, deixei que ele aproveitasse o momento. Amy se aproximou e me deu a medicação, anotando cuidadosamente cada detalhe em sua prancheta, parecia um trabalho repetitivo, mas ela explicou que era essencial. 

Nicholas fez várias perguntas, e Amy respondeu a todas, enquanto eu observava a interação com um sorriso.

— Vou ao toalete. — Mary piscou para mim antes de sair. — Querida, trarei um bolo enorme e várias comidas. Precisamos dar espaço para outras visitas! — Ela beijou minha testa e saiu discretamente.

Nicholas, tão envolvido na conversa com Amy, sequer percebeu a saída de Mary.

— Mais tarde vou retirar sua sonda, e começaremos a caminhar, já passou muito tempo deitada. Se precisar, aperte o botão vermelho para chamar ajuda. — Amy se despediu com um sorriso, e foi só então que Nicholas percebeu que Mary não estava mais no quarto.

— Certo, Amy, vou esperar ansiosa. E, sogro, Mary saiu faz alguns minutos... Não viu? — Nicholas corou e rapidamente mudou de assunto.

— Eu... — Ele apontou para a porta, meio sem jeito. — Vou procurar um café e conversaremos em breve, minha "nora maravilha." Obrigado por tudo, faremos a maior festa que essa cidade já viu! — Ele abriu os braços com entusiasmo, enquanto Amy se preparava para sair.

Nora maravilha? Como a Mulher Maravilha? Tive que me segurar para não rir e apenas assenti.

— Amy, mostre ao meu sogro onde ficam as comidas, por favor. — Sorri para ela, que arregalou os olhos. — Ele pode acabar se perdendo aqui, este lugar é enorme.

Amy assentiu, e Nicholas, ainda sorrindo meio sem jeito, abriu a porta para que ela passasse, fazendo questão de acompanhá-la.

Apoiei minha cabeça na cama e encarei o teto, tudo aos poucos estava se encaixando e parecia tomar um novo rumo dentro e fora de mim. De fato não queria Nicholas achando que tem alguma divida comigo, não quero em vangloriar ou ser a heroína. Apenas fiz o que meu coração mandou e estava aliviada, aos poucos havia deixado de ser quem um dia fui, a menina que recusava seguir o coração. 

Tudo que eu mais queria daqui para frente era ser a melhor versão de mim que pudesse, a mais corajosa e fiel aos meus sentimentos, pois percebi que é exatamente dessa forma que sinto-me completa. –A porta abriu com tudo me assustando e encarei meus amigos.

-JOANNE CLARK NUNCA MAIS FAÇA ISSO COMIGO POR FAVOR. –Alice falou com sua voz alta e correu a minha direção. Alex tapou o rosto tentando esconder suas lagrimas ainda na porta do quarto.

Alice me envolveu em um abraço apertado, beijando meu rosto e verificando se eu estava bem. Ela estava completamente colada a mim, e deixava claro que não pretendia me soltar tão cedo. Com o braço que podia mexer, apertei seu corpo e percebi Alex parado à nossa frente, me observando.

— Obrigada por cuidar de mim, mas chega de cantar aquelas musicas estranhas, hein?— brinquei, sorrindo e apertando Alice mais uma vez.

Alice sempre tinha o hábito de cantar enquanto me arrumava e mesmo dormindo, de uma forma eu a ouvia entoando músicas estrangeiras e meio esquisitas que ela adorava.

— E você, não vai vir me abraçar? — chamei Alex, que logo correu até a cama e se debruçou ao meu lado. — Senti tanto a falta de vocês. Alex, olha aqui, olha pra mim. — Seus olhos verdes estavam tomados por lágrimas, e Alice o confortava, acariciando suas costas com carinho.

Ele ergueu o olhar para mim, e eu lhe dei um sorriso reconfortante. Era bom tê-los ali comigo, unidos naquele momento.

-Como eu ia fazer em você? Como ousou a quase me deixar? Não sabe que somos uma pessoa só... –Ele enxugou as lagrimas e apertou minha mão. –Se fizer isso de novo... puta merda Joanne. –Ele estava bravo e feliz.

Alex teve uma crise de riso entre lágrimas, e em poucos minutos estávamos todos rindo sem motivo aparente. Acho que foi nesse instante que a ficha finalmente caiu, e o desespero e alívio se misturaram, nos deixando vulneráveis e, ao mesmo tempo, unidos.

Olhei para cada um deles e senti o peso e o conforto de todo o amor no olhar dessas pessoas. Me perguntei, por um momento, se realmente era merecedora de tanto afeto. Sabia que, ao longo da vida havia cometido erros, sido egoísta, e muitas vezes priorizado meus próprios sonhos acima de tudo. Quando terminei o colégio, minha única meta era enviar uma carta para a faculdade, fugir para o mais longe possível e mergulhar no anonimato de uma cidade grande.

Hoje, porém, meu desejo se transformou. Claro que ainda queria alcançar meus sonhos, mas agora eu sabia que queria essas pessoas ao meu redor, todas as que faziam meu mundo mais colorido e completo. Aquelas particularidades que cada um tinha eram pedaços de um lar que não imaginava querer antes. Como dizem, nosso lar é onde o coração está, e o meu estava aqui, com eles. 

Encarei a faixa que cobria meu braço e atravessava meu tórax, sentindo a gratidão misturada à dor física. Alice, sempre elétrica, tagarelava sobre tudo o que acontecera nesses dias, enquanto Alex tentava, em vão, convencê-la de que nenhum de nós era surdo. Era um caos, e eu sabia que era exatamente onde queria estar.

Deixem a ☆ please

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