Realmente aleatório? ♡ Capítulo 46
Com meu corpo debaixo de um carro, tentava descobrir a fonte de um problema com os freios. A mecânica na minha vida se resumia a ajudar meu avô, mas, após anos de aprendizado, adquiri uma boa noção sobre o interior dos carros, especialmente os importados, que são a especialidade da nossa oficina. Felizmente, somos a única oficina que trabalha com esse tipo de carro na cidade, o que permite ao meu avô ganhar um bom dinheiro para nossas despesas. No entanto, a paixão pela mecânica nunca foi algo que eu tivesse; para mim, era apenas a lei da sobrevivência.
Se eu dissesse que minha vida é composta por grandes momentos, estaria mentindo. Nos últimos meses, tudo pareceu sair do meu controle, mudando minha forma de ver a vida. Em mais ou menos seis ou sete meses, recebi uma indenização exorbitante pela morte dos meus pais, reativei as buscas pela minha mãe ou, pelo menos, pelos restos dela, terminei um relacionamento e, para completar, fiquei com a última pessoa que eu poderia imaginar na cidade: Emma Raybell.
"Viver é adquirir experiências sobre como ser ou não ser" Essa era uma frase do meu falecido pai e apesar de eu ser bem novo, lembro-me dele falando sempre que ia trabalhar. Como um pai apegado, ele relutava em fazer viagens longas e me deixar com meus avós, já minha mãe sempre explicava que o motivo das viagens era garantir um futuro confortável para mim e realizar o sonho de aumentar a família.
Outra parte da minha mente tentava não imaginar o que meus amigos pensariam ao descobrir que passei uma noite com Emma Raybell, a pessoa mais aleatória com quem eu poderia ficar.
— Filho, os freios estão bons agora, as pastilhas novas foram a solução. Como o doutor Flinn não se importou que procurássemos as melhores peças, o carro ficou novo em folha — meu avô sussurrou do lado de fora, enquanto eu encarava suas botas marrons.
— Novo em lataria, vô! Esse carro é uma beleza. O motor é quase totalmente silencioso, vale o preço com toda certeza — falei, me arrastando para o lado de fora.
Sentado ao lado do meu avô em uma mesa pequena, anotávamos todas as peças que foram usadas no carro, junto com nossa mão de obra e o polimento cristalizado que foi feito, deixando a cor azul do carro vibrante.
— Acho que esse carro é de uma das mulheres do doutor Flinn. Por dentro, é completamente feminino e cheiroso — meu avô comentou enquanto redigia a nota fiscal.
— Ele é bígamo? — perguntei, arqueando as sobrancelhas. Não sabia que isso era permitido aqui na América. — Ele é casado com várias mulheres ao mesmo tempo?
Segundo meu avô, bigamia não era o caso do Dr. Flinn. Ele era um dos melhores médicos oncologistas da cidade e dono do nosso maior hospital, que, por acaso, tinha uma parte totalmente filantrópica. Ou seja, uma parte do hospital atendia pessoas necessitadas que não podiam arcar com os custos da saúde. Contudo, com certeza ele fez essa magnífica boa ação antes de se tornar um senhor ranzinza que só olha para os próprios pés. Segundo meu avô, ele foi abandonado pela primeira esposa, que fugiu com um amante e mesmo casando novamente algum tempo depois, todos sabem que ele é infiel e tem vários casos por aí.
— Ele era conhecido por seu coração bom, mas após ser traído, ficou irreconhecível. Quase não tem amizades e trata todos mal, nem parece um médico. Justo por isso, preciso que você leve esse carro até a casa dele. O assistente me ligou avisando que ninguém pode vir buscá-lo — suspirei, deixando meus ombros caírem.
— É rico e não tem quem busque o próprio carro — resmunguei, seguindo para tomar um banho.
— Alexander, estou velho, mas minha audição é ótima. Apenas vá, entregue, receba e agradeça — disse o senhor careca, sem humor.
S2
Pilotando um Audi A5 azul escuro, me sentia rico. É uma máquina e tanto. Agora que finalmente posso ter um carro desse, não sinto vontade de usar o dinheiro para comprá-lo. Definitivamente, o dinheiro na minha conta é sinônimo de muita dor, o que não me traz felicidade nenhuma.
O final da tarde se aproximava, e o cansaço de um dia intenso de trabalho me fazia sentir os ombros pesando, misturando-se ao cansaço mental que me fazia perder a paciência até mesmo com um sinal fechado. Meu celular tocou, e a foto de Joanne apareceu na tela.
— Oi, Anne. Sua ligação é uma honra para mim — disse, atendendo e colocando no viva-voz rapidamente.
— Oi, peixe morto! Onde você está e com quem? O que vai fazer hoje? — Sua voz nada delicada ao me chamar por um apelido que eu não sabia de onde ela tinha tirado me fez soltar uma risada.
— Está me ligando para mostrar que seu celular novo é muito bom? Eu estou indo levar um carro até a casa de um cliente e não vou fazer nada hoje. E você? — expliquei, ouvindo o silêncio dela do outro lado da linha.
— O celular é bom mesmo, e eu acabei de sair da padaria. O Gustavo furou comigo hoje porque está preso em uma reunião na fábrica.
A menina tagarela falava quase em pausas para respirar, com certeza, ela tinha mudado bastante.
— Entendo, você quer minha companhia porque seu amor te deixou? — brinquei, mas, obviamente, a menina do outro lado da linha não percebeu meu tom.
— Claro que não! Você está surtando, Alexander? Nunca fiz isso, mas hoje eu tinha compromisso e não tenho mais, que inferno! — ela respondeu, visivelmente indignada.
Minha risada era instantânea ao vê-la muito brava, ela estava muito brava mesmo.
— Anne, estou brincando! Podemos nos ver hoje, mas não posso demorar, pois estou muito cansado. Se eu dormir na sua casa sem querer, vou arrumar uma inimizade com seu namorado — expliquei, tentando ser honesto.
Essa é a pura verdade. Sei que ele ficaria chateado, afinal mesmo amigo, sou um homem.
— Não me deixe brava! Quando você terminar seus serviços, te espero em casa. Estou com saudades. Até mais! Irei desligar, estou na rua — disse ela, e antes que eu pudesse me despedir, a menina apressada desligou.
Ao entrar em uma rua quase vazia que parecia familiar, reiniciei o GPS e ele indicou exatamente o mesmo lugar. Percorri a rua quase até o final e senti uma imensa vontade de voltar, peguei a nota fiscal e procurei o nome de quem contratou o serviço, passei o olhar por todo o papel e apertei os olhos.
— Flinn... Raybell — li e soltei um enorme suspiro. — Droga, a vida está de sacanagem ou o que? — Bati no volante e me arrependi de imediato.
Era é a casa da Emma, e provavelmente esse senhor que contratou nosso serviço é seu pai. Parado na porta da mansão, procurei coragem para entrar. Porém, precisava receber, e teria que deixar o que aconteceu no fundo do baú..
Ao parar na entrada da casa, o segurança se aproximou e mostrei a nota fiscal, o que me deu acesso livre até a porta principal, que já conhecia. Há semanas, tentava me convencer de que o que aconteceu entre nós foi um erro de duas pessoas bêbadas e com os corações feridos, era isso.
Ao me aproximar da enorme entrada, ouvi vozes estridentes — gritos finos e a voz de um homem, provavelmente nervoso. Fechei a porta do carro devagar e me aproximei da porta para bater. Bati lentamente, receoso de incomodar, e minutos depois uma senhora séria e bem vestida apareceu, encarando-me dos pés à cabeça.
O que os ricos têm com a aparência das pessoas?
— Boa tarde, estou aqui para entregar o veículo ao Doutor Flinn — falei, fazendo-a abrir mais a porta para me dar passagem.
— Me chamo Jennifer, sou a governanta, e chamarei o Doutor. Entre para aguardar — ordenou a senhora, sem esperar por um sim ou não.
Relutante, entrei, tentando não ser percebido e para minha sorte, os gritos não vinham do ambiente principal. Sentei-me no enorme sofá de couro branco, por ordem da governanta, que parecia não se importar que eu ouvisse os gritos histéricos, provavelmente da Emma e seu pai, no andar de cima.
— Com certeza você se importa muito com sua esposa, tanto que tem mais algumas namoradas. Não posso julgar você por ela estar aqui pelo seu dinheiro... — gritou a loira, e um barulho de algo caindo no chão me assustou.
Mais alguns gritos ecoaram por a escadaria e não pude ouvir muito bem.
— Você nunca terá respeito por ninguém, sua menina inútil. Fala tanto da sua madrasta e usa meu dinheiro da mesma forma — gritou uma voz masculina, e ouvi passos rápidos na escada.
De longe, vi Emma descer as escadas rapidamente, com o cabelo preso em um rabo de cavalo e uma roupa comum, nada comparada ao que costumava usar.
— Doutor, alguns dos seus pacientes sabem que você chama sua filha de inútil? Ou que ficou com raiva dela porque sua esposa fugiu com o amante? — disse ela, com a voz trêmula, enquanto seu pai descia atrás dela com pressa.
Sentado no sofá, permaneci estático. Ouvir uma briga familiar de quem não conheço era completamente constrangedor. Mas, ao vê-lo segurá-la pelo braço, me assustei. Meus olhos arregalados não me deixavam mentir.
— Devia ter te mandado para o internato há muitos anos — disse o homem de meia-idade, loiro, levantando a mão para atingi-la e Emma nem se quer piscou.
Não podia crer no que estava presenciando. Parte do que meu avô sabia era, de fato, verdade: ele não parecia ser uma pessoa boa a ponto de ajudar os necessitados.
— Bate, não é isso que você sempre faz quando está com raiva? Não se preocupe, nunca contarei a ninguém que o médico filantropo bate na filha por não ter superado a ex-esposa — Emma disse, tão vermelha quanto um tomate.
Nesse momento, não consegui me conter. Levantei-me do sofá apressado e tosse alto, fazendo a menina de olhos verdes e inchados me encarar em pânico.
— Com licença, Doutor Flinn, sou da oficina e trouxe o Audi A5 — falei, me aproximando sem receio. — Aqui está a nota! — estendi a mão em sua direção.
O homem alto completamente vestido de branco me encarou com seus olhos pretos e tomou a nota das minhas mãos com voracidade, logo ele pegou sua carteira e contou algumas notas.
— Certo, aqui está. Confira, não quero problemas depois — disse ele, me entregando uma quantia em dinheiro.
Emma se afastou em passos largos, evitando meu olhar.
— Aqui tem mil, sobra cem. O valor foi novecentos dólares, senhor! — expliquei, entregando nota de dólar, mas ele recusou.
Observei a porta, a menina realmente havia saído, quase em lágrimas. Cada um com seus problemas, não preciso me envolver.
— Pode ficar com a gorjeta — ele disse, sem a mínima educação, dando-me as costas e indo em direção à porta atrás da filha.
— Acontece que não trabalho para uma lanchonete — respondi, surpreendendo-me com minha própria raiva, ele parou e voltou em minha direção. — O serviço foi feito, aqui está seu troco — disse, colocando o dinheiro sobre um aparador repleto de fotos antes de sair em direção à porta.
Não tenho paciência para pessoas sem educação, um médico desses não me interessa.
Sigo em direção à porta, sentindo a cabeça doer instantaneamente, essa dinâmica entre pais e filhos de gritar e bater estava completamente fora da minha realidade. Não que minha infância como órfão tenha sido perfeita, mas sempre acreditei que uma conversa poderia resolver muita coisa, e fora que bater em uma mulher é uma covardia inacreditável, não importa o grau de parentesco.
Ao abrir a porta, dei de cara com Emma, encostada no carro, com os braços cruzados.
— Preciso da chave e do dinheiro, por favor — Emma esticou a mão, enquanto seu pai saía de casa, quase quebrando tudo.
Eu estava no olho do furacão.
— Para onde você pensa que vai? O carro foi presente da sua mãe, mas eu paguei para arrumar os freios, para sua sorte — gritou o senhor, fazendo minha cabeça pinicar. Tive vontade de gritar também.
Emma, com a mão esticada, me fez entregar a chave e o dinheiro, que estava em sua mão inchada com um corte mediano.
— O carro é meu, e o dinheiro do conserto... — Emma abriu a mão de seu pai sem medo e colocou o dinheiro com voracidade. — pega e compra uma bolsa nova para uma de suas amantes, assim elas não abrem a boca.
— Volte aqui agora! — Seu pai puxou seu braço, mas ela se soltou com agilidade, encarando-me.
Estava preso no meio de uma briga entre duas pessoas que mal conheço, sem conseguir sair.
— Pode me tirar daqui? triplico o preço do conserto — Emma me encarou, com os olhos vermelhos e consenti ao vê-la chorar.
Ela jogou a chave em minha direção e abriu a porta do lado do passageiro. Em pé na porta do carro relutei em entrar ao sentir a mão pesada do homem ao capô do carro, ele realmente estava exaltado.
— Onde pensa que vai com esse mecânico? — ele gritou, fazendo Emma balançar a cabeça em sua direção.
Tentei não me ofender, mas a frustração estava me dominando. Eu estava estressado com tudo aquilo e com o fato de uma pessoa que se diz boa para a sociedade não respeitar ninguém. Antes que eu pudesse responder, a risada da loira me interrompeu, e eu a encarei.
— Vou para o inferno, seu imbecil. Quer ir junto? — Ela respondeu com raiva, e eu arregalei os olhos. — Nossa, como eu queria que você tivesse metade do caráter desse mecânico, mas nunca terá. E quanto aos freios do carro, não precisava ter trocado. Se eles não funcionassem, eu entraria de cabeça em algum poste e não precisaria mais olhar para mim e lembrar dela.
Emma entrou no carro, e eu a segui, aliviado por finalmente sair daquela casa.
S2
Sobre a vida estar de sacanagem, eu já havia percebido, mas aquilo era demais para minha cabeça. Sem rumo, pilotava o carro com Emma ao meu lado, imersos em um silêncio ensurdecedor. Desde a nossa saída, ela não havia dito uma palavra, e eu também não sabia o que dizer. O que eu iria falar? "Como vai?" Sabia que, por pior que fosse, ela estava longe de estar bem.
— Pode parar em uma loja de conveniência? — Sua voz rouca ecoou pelo carro, e eu consenti.
Após alguns minutos, parei em frente a uma loja de conveniência pequena. Emma saiu do carro rapidamente, sem dizer nada.
Com as mãos no volante, apoiei a cabeça que doía incessantemente.
Não sabia o que falar, para onde ir ou o que fazer diante de tudo que havia ouvido. Minha avó sempre dizia que ninguém nasce ruim, e o que me incomodava era pensar no que poderia ter feito Emma se tornar quem ela era. Às vezes, achamos que nossa vida é péssima ou sem solução, mas, em algum lugar do mundo, alguém está passando por algo ainda mais complicado.
Emma se aproximou do carro minutos depois, com uma pequena sacola de papel e abriu a porta, fazendo-me levantar a cabeça.
Dirigi por mais alguns minutos e parei em frente ao nosso pequeno Central Park. É assim que chamamos, pois lembra o Central Park de Nova Iorque, só que em uma versão muito menor e afastada do centro da cidade. Este foi o único lugar onde não deixaria que outras pessoas vissem o quão mal ela estava, porque, se eu a conhecia minimamente, mostrar suas dores não era algo que ela desejava.
— Esse foi o único lugar que pensei que você poderia respirar um pouco longe das pessoas. Daqui, posso pegar um táxi para casa sem problemas. Vou te mostrar um bom lugar para sentar. — Ela assentiu, e descemos do carro.
— Está bem. — Disse ela, sem me encarar.
Andamos lado a lado por alguns minutos, e Emma observava todo o ambiente, fazendo-me perceber que ela nunca havia estado ali. Apontei para uma estátua antiga com um banco à frente, bem no meio do parque. Seguimos até o banco e nos sentamos em silêncio, mas uma tosse forçada dela me fez encará-la.
— Aqui. — Ela apontou um dinheiro em minha direção. — O valor do conserto triplicado por me trazer.
Peguei o dinheiro e contei apenas o valor do conserto. Guardei o montante no bolso e gesticulei em direção ao outro valor, jamais cobraria por ajudar alguém naquela situação.
— Não precisa me pagar, eu só precisava de uma carona mesmo. Andar a pé me faz suar. — Sorri para ela, mas ela permaneceu séria e guardou o resto do dinheiro. — E sobre o que presenciei, não se preocupe...
Uma risada escapou de Emma, interrompendo minhas explicações.
— Sei que você não vai contar a ninguém, ou então espalharia que você é péssimo de cama.
Meus olhos se arregalaram ao ouvi-la. Ela acabou de me chamar de ruim de cama na cara dura?
— Então sou ruim de cama? — Perguntei, gesticulando. — Você devia guardar esse comentário só para você. Isso é bem constrangedor. — Bufei, cruzando os braços.
Ruim de cama, essa foi o ápice.
— Não, na verdade você é ótimo. E olha que eu odeio inflar o ego das pessoas, mas se você contar a alguém que minha vida é um inferno, vou precisar me vingar.
Suspirei, observando-a abrir a sacola de papel com um pequeno kit de primeiros socorros descartável.
Então é essa a menina por trás da pose perfeita, que julga a todos com seu ego enorme? Nunca tive contato com Emma, nem mesmo uma troca de olhares antes do aniversário da Mary. Nunca fui de julgar as pessoas pela aparência ou por nada do tipo, mas suas atitudes ruins ofenderam a mim e a quem me cercava, inclusive minha melhor amiga, Joanne, que quase teve seu namoro destruído pela loira ao meu lado.
— Não se preocupe, jamais falaria nada do que vi. Se você quiser desabafar, sou quase um desconhecido. Mas, por mim... — Dei de ombros ao ouvir um gemido dela, por causa do ferimento na mão exposto. — Tudo bem. — Completei.
Peguei o algodão com antisséptico e posicionei a mão de Emma sob minha coxa, sem dizer nada, apenas a ajudando. Ela relutou, mas, por minha força ser maior, segurei sua mão na minha perna. Suas unhas eram bem feitas, e na palma da sua mão havia um um corte longo, mas não profundo; sua pele extremamente clara mostrava marcas roxas e vermelhas no braço.
— É aquilo — começou Emma, sem me olhar. — Minha vida é isso desde que minha mãe foi embora. Ela o trocou pelo motorista e amante, saiu e nunca mais voltou. Tenta compensar com presentes e dinheiro, mas eu nunca respondi seus cartões de aniversário ou li suas cartas.
Assoprei suavemente a mão dela, e o vento gelado fez com que a loira me mandasse uma careta.
— Então sua vida não é perfeita, mas não se preocupe. A de ninguém é, e precisamos aceitar as escolhas das outras pessoas, mesmo que isso inclua ser deixado — falei, temendo parecer amargo.
Com um movimento cuidadoso, distribui o líquido transparente do cotonete sobre o corte, que, segundo a embalagem, fechava a ferida em apenas um dia.
— Sou uma pessoa ruim, Alexander. Infelizmente, me sinto aliviada deixando as pessoas debaixo dos meus pés — a sinceridade dela me fez pausar. — Cresci assim e dessa forma ninguém irá me machucar, porque ninguém chega até mim.
Fingir naturalidade após ouvir aquilo era quase impossível, mas era exatamente assim que eu a via: uma pessoa que pisava nas outras.
Coloquei o curativo sobre a ferida e encarei sua mão avermelhada.
— Eu sei quem você é, sei na pele, afinal você já me ofendeu. Já ofendeu a mim e a pessoas que gosto. Mas você nunca irá se curar ferindo as pessoas, só irá se afundar mais e terminará sozinha — disse, suspirando em seguida.
Com a expressão séria, coloquei as embalagens no saco de papel e lhe dei um comprimido. Sem pedir permissão, joguei um na minha boca e degluti, temendo que, caso contrário, minha cabeça fosse explodir. Peguei meu celular e abri a conversa com Joanne.
"Anne, me desculpe, não poderei ir à sua casa hoje. Aconteceu um pequeno imprevisto com o carro que fui entregar."
Senti-me mal por mentir assim, mas não tinha escolha. Não podia contar tudo e arriscar deixá-la brava; ainda não sabia o que estava fazendo.
"Não se preocupe, meus pais estão aqui discutindo, e você não precisa ver isso. Se cuide e me ligue amanhã."
— Pode ir, não tem problema. Agradeço por tudo e por me ajudar, sei que não tem obrigação, nerd. — Emma disse, revirando os olhos ao me encarar. — Está tarde.
— Não sou nerd e realmente não tenho obrigação, mas minha mãe me ensinou a ajudar sem olhar a quem. — Sorri, cruzando os braços e encarando o céu.
Minha cabeça estava um completo caos, e a sentia rodando.
— Então vai, ela deve estar preocupada. — Emma me mandou embora, mantendo o olhar desviado.
Relutei antes de compartilhar algo pessoal com essa garota quase desconhecida, mas não precisava esconder nada que toda a cidade já sabia, menos ela.
— Minha mãe está morta, assim como meu pai. Meus avós estão vendo o jornal local, e é isso. — Falei, sentindo seu olhar em mim. — Não precisa ter pena, mas sei que isso não faz seu estilo. — Retruquei.
Mesmo sabendo que isso poderia ser um tiro no meu próprio pé, ao mostrar fraqueza a uma menina como ela, talvez pensar na minha vida a fizesse esquecer a dela.
— Não quis te ofender... — Ela disse, finalmente me encarando. — Na casa do Gustavo, não quis ofender ninguém além do dono da casa. — Arqueei as sobrancelhas enquanto ela bufava. — Sei que sou uma pessoa ruim, eu sei, Alexander, mas só queria ofender o Baker.
— Por que isso? — Perguntei, curioso. — Por que essa fixação nele?
Minha pergunta parece ter feito Emma pensar. Com as pernas cruzadas, ela encarava o curativo, e eu me virei para o seu lado.
— Não sei. — Sua resposta seca deixou um silêncio no ar. — Desde criança, nossas famílias foram muito amigas. Quando minha mãe se foi, eu me apeguei a ele e à forma como Mary cuidava dele. Acho que passei a vida achando que ele me salvaria daquela vida, mas sei que ele não gosta de mim. — Emma desabafou, e apenas assenti.
— Você não parece uma princesa que precisa ser salva por alguém. — Retruquei, sentindo o peso do seu olhar me fuzilar.
Às vezes, ela parece mais uma vilã.
— Não preciso ser salva. Nem por você, nem por ele, nem por meu pai. No final, estou sozinha. Todos estamos. — Emma levantou, e permaneci sentado, refletindo.
Ela ainda não percebeu que não me importo com a birra de uma menina mimada?
— Então não seja. — Sussurrei calmamente. — Não diga que gosta de uma pessoa por medo de ficar sozinha. Não atrapalhe relacionamentos, não magoe as pessoas, não afaste quem se importa, não deixe ninguém te chamar de inútil, nem te machucar. — Respirei fundo, fazendo ela me olhar com lágrimas nos olhos.
Seus cabelos bagunçados e seu rosto sem nenhuma maquiagem não parecia a líder de torcida da escola sempre impecável e feliz. Por mais que sentisse muito por ela, era impossível não ter a julgado tanto, ela nunca deu escolha a ninguém.
— É fácil falar, não é? Você com seu grupinho de pessoas à sua volta, uma namoradinha e esse jeitinho perfeito de ser. — Emma, com sua língua afiada, me tirava do sério. — Eu só podia estar bêbada mesmo quando fiquei com você, agora estou ouvindo sermão.
Uma risada de pura raiva saiu dos meus lábios enquanto me levantava do banco. A brisa fria cortava meu corpo, e as árvores ao nosso redor balançavam como se nos avisassem sobre uma tempestade que chegaria em breve. Mas o céu estava limpo, sem vestígios de chuva.
Caminhei até sua frente e a encarei, percebendo que ela não parecia sentir remorso algum por suas palavras.
— Primeiro, meu grupo de amigos é verdadeiro, não precisei comprá-los. Segundo, não namoro, mas tive uma breve relação com uma menina incrível. E terceiro, não sou perfeito e não quero ser. — Seus olhos verdes me encaravam como uma serpente pronta para atacar.
Sentia-me completamente irritado e estressado.
— Vamos, Alexander, diz tudo que tem vontade. Aproveita que pode falar e fala, não seja frouxo. — Sua voz alterada me estressou ainda mais. — Se sua vontade é me xingar, por que não xinga?
Andei um passo para trás, passando a mão pelos cabelos, que já deviam estar em pé de tanto nervosismo. O olhar dela, seu tom, seus jeitos, tudo nela me tirava do eixo de uma forma exorbitante.
— Eu que não sei onde estava com a cabeça daquela noite, não sei onde fui me meter. Não deveria ter ido ao lago, nem bebido, nem te ajudado. Faz semanas que minha cabeça está cheia, então hoje, quando te ajudo, de dez palavras que você fala, oito são ofensas gratuitas. — Desabafei, me segurando para não me sentir culpado por a dureza.
Sem jeito, andei rumo ao caminho pelo qual percorremos e Emma continuou estática onde estava. Vomitei palavras nas quais estava precisando há dias e infelizmente não pude falar para ninguém, não sei que fiz o certo, mas era o que meu coração estava ansiando, caso contrário
explodiria.
— Mesmo sem nunca ter pedido nada, agradeço pelo que fez. — Emma falou, fazendo eu pausar os passos, não muito longe dela. — De novo, não quis ofender.
Voltei em passos rápidos e segurei seus ombros com firmeza, mas sem força, forçando-a a me olhar.
Uma lágrima caiu de seus olhos, contra sua vontade.
— Você não pode passar a vida jogando as pessoas para fora da sua vida, não estamos na escola. A vida está passando, e você está deixando tudo escapar quando pisa nas pessoas. — Sussurrei, tentando encontrar paciência em meio à frustração.
Ela ficou em silêncio por um momento, suas feições se contorcendo em uma mistura de raiva e tristeza. Parecia lutar internamente, como se estivesse tentando decidir entre se fechar ainda mais ou abrir-se um pouco.
— Você não sabe o que é estar sozinha. — Afirmou, sua voz falhando. — Eu não posso confiar em ninguém, Alexander.
Emma retirou minhas mãos de seus ombros e meus braços caíram me deixando com cara de bobo mais uma vez, tudo que poderia dizer foi dito, mas ela parecia ter uma barreira em sua alma. Parte de mim sentia muito por toda sua vida conturbada e desejava que um dia ela encontrasse paz, mas minha consciência ficaria tranquila por ao menos aconselhar. –A abracei prendendo seus braços com meus braços e a soltei rapidamente.
— Eu já vou, se cuide. — Falei, soltando um sorriso e voltei a seguir o caminho no qual avistava o carro. — Até...
Respirei fundo, sentindo meu corpo pegar fogo.
— EU SEI. — Seu grito ecoou no parque vazio e pausei meus passos novamente, ainda de costas para ela, e senti seus passos se aproximando. — que você passou a semana pensando porque não estava bêbado o suficiente para esquecer-se daquela noite. — Ela se aproximou, e fechei os olhos ao lamentar sua afirmação.
Merda.
— Por incrível que possa parecer, você está errada. Mal lembro daquela noite, só acordei em uma cama estranha, de uma casa estranha, com uma pessoa estranha. — Rebati, ainda de costas para ela.
Ou pelo menos era disso que eu estava há semanas tentando me convencer; afinal, era o melhor a fazer, não era?
— E por que não me encara e fala isso? — Emma sussurrou, me fazendo respirar fundo, puxando todo o ar dos meus pulmões e soltando, fazendo uma fina fumaça sair da minha boca. — De manhã, senti você me cobrir e sentar ao meu lado e senti seu polegar em meu lábio.
Ao ouvi-la falar, apenas me virei com ira para encará-la, sentindo meu peito arder. Iria enfartar, sem dúvidas.
— Do que adianta todo esse circo? — Cruzei os braços em sua direção. — Não vou falar o que você quer ouvir, para achar que me tem na sua mão, e também não vou servir de consolo para sua paixão errada pelo Gustavo. — Olhando em seus olhos, expliquei.
Mais uma vez, tinha falado tudo que sentia ser a verdade, para ver se ao menos uma vez ela encarava a realidade.
— É um circo, isso é uma palhaçada irritante que não sai da minha cabeça. Infelizmente, mesmo sendo um erro, aquela noite tem ocupado minha mente há semanas, seu imbecil. — Emma se afastou e deu de ombros. — E quer saber? O quanto antes esquecermos isso, melhor. — Disse ela, me mandando um sorriso falso.
Eu só podia estar ficando louco ou sem noção de quem estava à minha frente. — A puxei pela mão e, instantaneamente, seu corpo bateu contra o meu, me fazendo sentir seu cheiro extremamente doce.
— Tem razão, tem toda razão. Vamos esquecer, e fim. — A encarei, e se eu imaginasse bem, ela estava soltando fumaça pelas narinas. — Pode soltar piadas quando me vê, porque eu vou continuar fingindo que você não existe, e imbecil é você, garota. — Com minha mão, puxei sua nuca aproximando nossos rostos, e seu olhar não me assustou como antes.
Nossos lábios se tocaram com a mistura de vontade e raiva, suas mãos adentraram meus cabelos com força, e quase na ponta dos pés, ela colava seu corpo contra o meu. Nossas línguas se encontraram de uma forma feroz, e abracei sua cintura sem delicadeza. Sentia suas mãos acariciarem minhas costas e apertarem minha camisa como se estivesse mesmo com raiva de mim.
Pela primeira vez na vida, estava indo contra todos os meus conceitos básicos de vida, deixando minha cabeça de lado, mesmo sabendo que, se alguém pudesse sair arruinado dessa relação sem sentido, era eu.
Eu estava ciente de tudo, mas algo era mais forte. Naquele momento, arruinei todas as minhas tentativas de esquecer da maldita noite aleatória, com uma pessoa aleatória.
S2
Acham mesmo que tudo isso é aleatório?
Uma pessoa como o Alex mudará uma pessoa como a Emma?
Deixem a estrelinha ♥️
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top