Quem diria ♡ Capítulo 4

Natal passou voando e, a menos de uma semana para o ano acabar, sinto-me ansiosa. Ainda estou de férias da padaria, finalmente sobrando um tempo para me dedicar a mim

Desço as escadas rapidamente e percebo que minha mãe está guardando a louça cuidadosamente ao som de uma banda que desconheço. Pergunto se ela quer ajuda e, para não me deixar sem fazer nada, ela me pede para levar o lixo. Coloco o lixo na enorme lixeira ao lado do muro da minha casa e vou em direção à casa do Alex. Ao sair pela lateral da minha casa, esbarro com a minha vizinha Alice, ela apenas encolhe os ombros timidamente e entra em casa sem nenhuma intenção de falar. Ela não demonstra interesse em ter uma conversa amigável, o que, sendo tímida como sou, não facilita nada.

Avistei a rua calma, e sorrir ao ver crianças andando de patinete a todo vapor. Sempre fui apaixonada por essa cidadezinha no meio do nada, aqui é bonito, calmo e conheço praticamente todas as pessoas. Me pego sempre pensando o quão doloroso vai ser para mim, deixar tudo que vivi aqui, mas é algo que preciso com todas as minhas forças, afinal preciso me livrar de muitas dores.

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Ao passar pelo jardim dos Ross, bato na porta calmamente esperando uma resposta e observo as flores muito bem cuidadas em um vaso enorme ao lado da porta. O ambiente é tomado por um aroma leve e fresco de lavanda. Bato novamente com movimentos mais firmes. Espero uma resposta enquanto arrumo minha roupa, aparentemente retirada de uma garrafa de tão amassada. Se minha mãe tivesse notado, com toda certeza teria me feito voltar e trocar.

— Como eu pude sair com isso? — falei para mim mesma, batendo na minha blusa.

O avô do Alex abriu a porta lentamente, e logo sorri.

— Bom dia, garotinha — sussurrou o Sr. James baixinho, um tanto cabisbaixo.

— Bom dia, vô. O Alex está? — Mostrei os dentes ao sorrir, e ele me deu passagem para entrar.

Senti um sorriso forçado no canto de sua boca, e ele me chamou antes que eu subisse.

— Ele não parece muito bem, na verdade esse mês é péssimo para nós. Eu e a minha velha nem tentamos falar, sabe como são esses dias. 

O frio na barriga me invade ao pensar no pior. 

— Desculpe chegar tão cedo, eu vou subir, com licença. — Vou em direção ao quarto dele, subindo dois degraus de uma só vez, sentindo minhas mãos geladas.

A morte dos pais e todo esse luto, para alguns, pode ser inimaginável, mas eu sinto isso todos os dias. O pior é que nem sempre sei o que dizer para ajudar, mas nada como uma companhia em silencio... Paro em frente à porta, puxo todo o ar dos meus pulmões e bato devagarinho. Sem resposta. Encosto minha cabeça na porta, tentando escutar algo lá dentro — silêncio.

— Ross, você está aí? — Sem resposta. — Posso entrar, amigo? — Falo cada vez mais nervosa com a falta de resposta. 

Entro devagar, tentando observar todo o ambiente à minha volta, e o vejo bebendo uísque, sentado no espaço entre a cama e a janela. E cá entre nós, isso está longe de ser um sinal de que tudo está bem.

— Está tudo bem, Anne, pode ir. Não precisa me ver assim — murmura ele, suas palavras abafadas sendo difíceis de compreender.

Neguei, apertando os lábios.

— O quê? Mal cheguei, Ross. Eu sei que é uma data difícil. — Sento-me na cama, de modo que fico ao seu lado. — Eu estou aqui com você, sempre.

Sinto sua cabeça encostar-se à minha perna. Ele me olha de canto, e observo um pequeno sorriso se formar em seus lábios molhados ao beber mais um gole de sua bebida marrom. O cheiro de álcool e o silêncio tomavam conta de todo o ambiente, de forma que conseguia escutar nossas respirações.

— Você está bêbado e num voto de silêncio que me deixa nervosa e irritada, então fale algo.— Falei, baixo.

— Tudo ainda dói como anos atrás, estou sentindo varias agulhadas em meu coração. — Alex sussurrou.

Desço para sentar-me no chão junto a ele.

— Calma, estou aqui... Tudo bem, vai passar. Eu sei que dói... — falo calmamente, tentando controlar minha respiração ofegante. Mas eu sei muito bem que não vai passar tão fácil.

Trago sua cabeça ao meu colo, meus dedos se perdem em seus cabelos castanhos e macios, fazendo-o fechar os olhos e soltar um longo e alcoólico suspiro. Acaricio suas bochechas e sinto em mim a dor dele. Sei como ele se sente neste momento, muitas noites me vi chorando pelo Andrew. 

Ainda com os olhos fechados, ele começa a falar, fazendo-me sair dos pensamentos distantes.

— Sabe, Anne, eu sou forte e você sabe disso. — Ele enxuga uma lágrima que estava prestes a cair. — Eu tenho dezoito anos e sou forte. Mas sabe quantas vezes eu chorei aqui, na merda dessa cama, por saber que, além de você e meus avós, eu não tenho ninguém? — Não respondo nada, apenas seguro sua mão gelada. — Faz alguns anos que perdi meus pais, e eu digo anos porque parei de contar quando vi que a dor não iria embora. Eles não me deixaram irmãos, porque tudo aconteceu repentinamente. Meus avós estão indo embora com o passar dos anos, e quem eu tenho além de você, me fala? — Ao terminar de falar, ele me encarou fixamente com seus olhos verdes. 

— Alexander Ross, eu nunca vou te abandonar. Vamos criar nossos filhos juntos e ensiná-los a ter uma amizade tão linda quanto a nossa, eu sou a irmã que você não teve, um pouco mais bonita e charmosa que você. — Ele acena positivamente com a cabeça, e vejo um sorriso se formar em seus lábios. 

Ele se deita em sua cama, com o braço tapando o rosto, e eu me deito ao seu lado, encarando o teto. O silêncio ainda presente no ambiente me faz pensar em todos os momentos que estive aqui, o consolando e morrendo por dentro ao vê-lo dessa forma. As horas passam de forma que não percebo, meu amigo caiu em sono profundo, acaricio seu braço e arrasto a coberta até seus ombros. Alex dormiu após chorar por muito tempo, e todos os anos isso acontecia sem um dia fixo, as vezes acontecia em mais de uma vez na semana, ele perdeu seus pais no final do ano e nunca eram finais de ano totalmente felizes.

Ao passar pela sala dos Ross, vejo um aparador com muitas fotos de várias épocas diferentes. Pego uma das fotos e lá estamos nós, eu e o Alex, dentro de uma caixa de papelão, brincando. Se muito tivéssemos, era sete ou oito anos. Sinto imediatamente uma imensa vontade de rir e chorar ao mesmo tempo, aquela época era a melhor de todas, com toda certeza.

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Adormeci rapidamente quando voltei para casa e, quando o despertador tocou, eram exatamente sete e cinquenta e seis da manhã. Não ouço nenhum barulho em casa e, por mais estranho que pareça, sinto vontade de correr. Franzo a testa ao sentir minha cabeça doer, vestígios de uma noite mal dormida. 

Minha mãe, perfeccionista como sempre, deixou a cozinha toda arrumada e a casa completamente fechada. Olho ao redor e realmente não tinha ninguém em casa, como já havia desconfiado. Dirijo-me à cozinha e vejo que a cafeteira está ligada, junto à torradeira com duas torradas prontas e frias. Coloco meu café em uma xícara que diz "Tenho valor sentimental, não me quebre." Isso me faz sorrir, ao imaginar o quanto minha mãe ficaria triste se eu a quebrasse.

— Cadê aquele fone maldito? Ninguém merece correr sem musica! — Afirmo a mim mesma, procurando o fone de ouvido e o encontrando entre as almofadas do sofá.

Ouvindo minha música preferida, Naked do cantor James Arthur, sinto-me pronta para correr com ela para repetir. Ao parar na saída de casa, encaro a rua envolta em uma densa neblina. Estico os braços para cima e depois os abaixo, tocando meus pés. 

Começo a correr com energia, rumo à saída do meu bairro, o dia está cinza, e penso na minha cidade, fazendo um mapa mental dos lugares bonitos que existem aqui... Á um gramado enorme onde as crianças podem brincar e apreciar a paisagem., uma praça linda e muito arborizada, e há um lago afastado do meu bairro, que é o lugar perfeito para tirar fotos lindas, viver momentos românticos e até se casar. 

Sinto minhas pernas tremerem de tanto correr rápido, o que me faz não perceber alguém à minha frente.

— Ai, poxa! — Uma pessoa falou alto e pessoa caiu no chão rapidamente, o que me assustou. — Você estava fugindo de quem nessa velocidade?

Eu colidi com alguém e a derrubei, logo dei alguns passos para trás para prestar socorro.

— Meu Deus, você está bem? Desculpa mesmo, minha cabeça estava longe. — Tentei ajudá-la a levantar, mas ela recusou minha ajuda.

A garota pegou o celular do chão, enquanto eu peguei o chaveiro que havia caído a alguns metros dela. Onde eu estava com a cabeça?

— Tá, tá, tá, tudo bem, relaxa. — Ela se afastou e me encarou fixamente, sem piscar, fazendo-me entregar o chaveiro de caveira brilhante.

Pela primeira vez, troquei palavras com a vizinha que supostamente não gosta de mim. Com seus cabelos cacheados e roupas pretas, ela parece bastante intimidante. Paradas frente a frente, alguém precisava quebrar o silêncio. 

Ela, com cara de poucos amigos, deu um passo para sair da minha reta.

— Prazer, Joanne ou só Anne. Você está bem mesmo? — Digo enquanto mantenho minhas mãos nos bolsos da calça para protegê-las do frio. —Somos vizinhas...

Ela pausa seus passos e volta para trás. Sua respiração ofegante me faz pensar que ela está com tanto ódio que pode acabar me agredindo.

— Alice Moore. Sua vizinha há anos, eu sei... e estou bem. — Respondeu séria, mordendo o lábio inferior.

Ela sabe que somos vizinhas há anos, só realmente não queria admitir. Então, aqui vai um teste, ela é tímida ou simplesmente não gosta de mim? Enviei um sorriso tímido, fazendo-a arquear as sobrancelhas.

— Que tal correr comigo? Nunca conversamos e quem sabe assim nos conhecemos melhor e acho que você também estava correndo ou caminhando...— Arrisquei ao convidá-la pela primeira vez para fazer algo, o "não" eu já tinha.

Ela olhou para o céu e para a rua.

— Pode ser... E desculpe por nunca ter dado espaço para você falar comigo, eu sentia que às vezes, você me olhava como se quisesse conversar. — Ela estendeu a mão, me fazendo observar suas enormes unhas prateadas, e me cumprimentou.

Então eu não sabia disfarçar ao observá-la, ótimo saber.

— Tudo bem, nunca é tarde. — Sorri, tentando limpar a lateral do seu moletom, que estava sujo por minha causa, fazendo-a rir sem graça.

Alice tinha o sorriso bonito, mas era como se não sorrisse muito.

— Deixa assim, tudo bem. — Murmurou Alice, tentando ser simpática ao ver que a sujeira não saía facilmente, não importa o quanto eu tentasse.

Seguimos andando lentamente pela rua vazia e gelada, conversando e alguns minutos caladas, mas aquilo parecia ser o começo de alto.

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Na voz de Alex:

Meu corpo se arrasta como um fardo e minha mente está turva, atormentada pela vergonha de ter desabado daquela forma. Estou afundado na cama, a ressaca me envolvendo em um abraço cruel, cada movimento é um esforço doloroso, cada pensamento, um lembrete da bebida marrom e amarga.

Pego meu celular com mãos pesadas, a tela parece brilhar demais, e meu estômago revolta-se a cada notificação que surge, mesmo assim sinto vontade de mandar uma mensagem para Joanne, eu sabia que era tinha saído tarde da minha casa após me ajudar. O pensamento de chamá-la para o Bell's é a única coisa que me dá algum alívio, uma fuga temporária da realidade. Lá, posso afundar na doçura dos donuts, me perder na gordura dos salgados e no conforto do frango frito.

Bom dia obrigado por ontem! Estou com a cabeça ainda rodando, mas quer ir ao Bell's? Comer algo calórico.

Joanne respondeu mais rápido do que imaginei.

Bom dia Ross, e de nada! Vamos sim e estou andando com a Alice Moore, nossa vizinha gótica.

Olhei para a tela do celular, e mesmo apertando os olhos com força, o que li parecia não mudar. Ela está falando da nossa vizinha — a gótica e surpreendentemente linda?

Com quem? Sério? Mas ela nunca... Esquece, chego lá em dez minutos. Quero ver isso com meus próprios olhos.

Eu fiquei completamente incrédulo, afinal Alice nunca pareceu dar nenhum indicio de querer amizade ou pelo menos algum tipo de coleguismo.

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Na voz da Joanne:

— Alex, aqui! — Levanto a mão para que ele nos veja.

Acredito que tenha falado alto demais, pois a senhora ao meu lado também procurou Alex com o olhar. Ele andou com passos rápidos, sentou-se em nossa mesa com um largo sorriso e por um segundo não pareceu que estava de ressaca.

— Oi, Alice, sou o Alex. — Disse ele sem timidez, fazendo um movimento estranho com os ombros. — Que encontro aleatório esse, não? — Sua risada sem graça fez Alice concordar com um leve aceno de cabeça.

— Te conheço, conheço vocês há anos. — Respondeu ela, olhando para baixo e brincando com os brilhos do seu chaveiro preto com caveira.

Entreolhei Alex e ele me mandou falar alguma coisa por meios de gestos, ele franziu o cenho e mexeu os lábios em direção a Alice.

— Achávamos que você não gostava da gente... — Murmuro, corando com minha própria declaração. 

Sorri sem graça quando ela me encarou, e sorriu.

— Anne, sempre tão direta... — Alex sussurrou em tom de brincadeira, fazendo Alice sorrir novamente. — Só não gosta de mim quem não me conhece, fique tranquila... Mas de fato sempre tivemos muita vontade de conversar com você. 

— Uau Alex, de onde tirou esse ego? —Brinquei e ele me cutucou com o pé por baixo da mesa.

— Aiii. — Resmungo, fuzilando-o com os olhos. — Alice, fale mais sobre você... — Me debruço sobre a mesa com a cabeça apoiada nos braços.

Alice nos encarou, como quem estava se preparando para falar alguma coisa e precisava de coragem.

— Então vocês querem ser amigos da menina gótica e estranha da escola? — Pergunta Alice em tom baixo, aparentemente com vergonha.

Alex e eu nos olhamos, sem saber o que dizer.

— Não se preocupe — sussurra Alex. — Eu e a Anne também éramos vistos como estranhos, nerds e até casal sem sal, não sei o que era pior. Então, se quiser entrar para o time, seja bem-vinda. Mas eu nunca te achei estranha, sou sincero! — Ele completa, sem jeito, enquanto encara suas próprias mãos.

O Alex flertou com a nossa vizinha?

Alice riu por alguns segundos, e nunca a vi daquela forma. De estranha, ela não tinha nada. Simplesmente odeio os rótulos que as pessoas recebem só por não serem como a maioria ou por não quererem se misturar. Ser diferente é bom; todo mundo tem o direito de ser como quiser.

Minha mente ardia só de lembrar das pessoas babacas da época da escola.

— Três milk-shakes especiais saindo no capricho. — A garçonete encara Alex sem disfarçar, apoiando as taças na mesa.

— Obrigada. — Alice agradece, encarando a garçonete enquanto ela se afasta da nossa mesa. — Acho que a moça gostou de você, Alex. — Ela declara, fazendo Alex corar.

Ela mal sabia que a garçonete já tinha sido alguém que o Alex beijou.

— Então, Alice, fale sobre você e marcamos outras saídas para conversarmos mais. Pode ser? — Digo animada, e Alex concorda, gesticulando com a cabeça.

— Está bem, eu gosto de desenhar. — Ela descruza os braços e respira fundo, parecendo um pouco desconfortável. — Tenho dezoito anos, sou filha de um americano com uma brasileira do Nordeste do Brasil. Eles se conheceram lá e casaram... Até que eu nasci, e decidiram que eu teria um futuro melhor aqui nos Estados Unidos. Cheguei aqui pequena e morei na Califórnia até os doze anos. Meus pais se separaram, e eu me mudei para cá com meu pai e minha avó. —Ela respirou fundo. —Minha mãe resolveu voltar para o Brasil para recomeçar a vida, e eu fiquei morando aqui. De tempos em tempos, viajo para vê-la.... Sou vizinha de vocês há muito tempo, mas sempre fui muito tímida e fechada para me aproximar, então passei a maior parte do tempo sozinha. Namorei com uma pessoa incrível por sete meses quando estava no ensino médio, mas... Enfim. Agora, parece que entrei no grupo de vocês e sinto que vai ser bom.  Acho que é isso... — Ela sorri com os lábios e os olhos.

Eu e Alex a encarávamos, ouvindo sua história com os cotovelos apoiados na mesa.

— Uau, você é tão incrível — declara Alex, sorrindo. — Tipo, sua vida é incrível. — Envergonhado, ele tenta recolocar suas palavras sinceras.

— Obrigada, fico feliz em ouvir isso. — Alice umedece os lábios com um gole de seu milk-shake.

— Nossa, Alice! Você é bilíngue, artista, viajada e linda. — Falei, logo sorrindo. — Bem-vinda ao nosso mundo.

Realmente estou me sentindo mal por ter deixado a timidez vencer-me por tanto tempo.

— Obrigada, Joanne. Desculpe por nunca facilitar uma aproximação. Sou difícil as vezes, muitas dores e.... — Ela me olha fixamente.

— Não se preocupe, é passado. A vida por si só é um ato de coragem!— Falo, sugando o meu milk-shake.

Em um instante completamente fora dos planos e maluco, a vida nos apresentou essa nova amizade e sinto que está surgindo algo bonito entre nós. Coisas da vida são uma incógnita.

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