Atos inesperados ♡ Capitulo 12
Minha sexta-feira estava longe de ser calma, a noite ainda nem tinha chegado por completo, e mais uma vez meu pai avisou que não ia jantar em casa. Na verdade, não me lembro do último dia em que jantei com ele ou fiz qualquer refeição em nossa enorme mesa vazia. Está chegando o dia do aniversário da minha mãe, e um único pedido seria tê-la novamente comigo. Este ano faço dezenove anos e faz sete anos de sua morte precoce.
Minha casa é tão grande em espaço e vazia de pessoas. Moramos apenas eu, meu pai e a governanta que me criou desde a morte da minha mãe, quando meu pai se fechou para o mundo e decidiu se afastar sentimentalmente do único filho. Depois de anos, ele acha que pode recuperar o tempo perdido, mas só eu sei quantas vezes estive sozinho nesta casa.
Sentado na cama, passo as mãos entre os cabelos e sinto minha cabeça queimar.
Desde o ano passado, estou travando uma luta com meu pai sobre qual faculdade devo seguir, como se fosse uma decisão dele, que nunca pegou uma nota minha na escola ou assistiu a um jogo de basquete. Ele quer que eu curse administração para dar continuidade ao império do café, o senhor aparenta me conhecer tão bem, mas não sabe onde estão meus sonhos. Após uma longa discussão ao telefone, meu pai se sentiu obrigado a voltar para casa mais cedo e não foi para jantar.
— Gustavo, estou falando com você, saia desse quarto agora! — Gritou meu pai, batendo na porta com insistência após eu entrar em meu quarto. — Gustavo, abra essa porta ou vou derrubar!
Ele batia na porta com tanta força e isso durou mais de meia hora. Ele achava que seus gritos me assustavam.
— Nicholas Baker, você vai derrubar a porta por qual motivo? — Abri a porta com toda a velocidade, fazendo-o se assustar. — Quer me gritar mais? Como sempre faz quando minha opinião não bate com a sua? O que sabe sobre mim? O que sabe sobre meus sonhos?
O senhor de terno e gravata passa a mão em sua testa brilhando de suor e aponta para mim, exaltado.
— Fale baixo comigo, garoto. Eu sempre fiz de tudo por você, nunca te faltou nada. Eu sempre estive aqui desde que sua mãe... — O silêncio tomou conta de todo o ambiente, e ele afrouxou sua gravata azul marinho.
Neguei, sorrindo.
— Desde que minha mãe morreu, você sumiu de si e de mim. A Srta. Mary cuidou de mim todos esses anos sem me dar nenhum dinheiro, sem roupas caras ou viagens de jatinho. — Minha voz exaltada fazia eco no corredor vazio. — Quando me chamou para trabalhar com você na fábrica, eu pensei que seria nossa aproximação, já que minha adolescência foi tão sem direção que fiz coisas das quais o verdadeiro Gustavo se arrepende. — Ele me olhava, sem desviar o olhar. — Aqui estou brigando com a última pessoa que restou, simplesmente porque ele só pensa em si. SEU TRABALHO, SUA VIDA, SUAS REUNIÕES, SEU IMPÉRIO DO CAFÉ. — Gritei com toda minha força, e senti minha garganta arder.er.
Sem controle, lágrimas escorreram do canto dos meus olhos e enxuguei-as com fúria. Na maioria das vezes, penso que tudo que ele faz ao se aproximar de mim é me deixar desnorteado.
— Eu quero o melhor pra você, Gustavo. Quero que seja uma boa pessoa, meu filho. Todo mundo vê isso! — Ele afrouxou o resto da gravata e passou a mão em seus cabelos ralos.
Consenti, o encarando.
— Estou me tornando muito melhor, não está vendo? E as pessoas de fora não sabem sobre nós, sobre nada. Estou trabalhando dois turnos, raramente saio à noite. Mal bebo, não fumo mais. Mas é claro que você não percebeu o quanto mudei. E quer saber? — Dei de ombros, arqueando as sobrancelhas. — Nem eu sei como pude ter sido uma pessoa tão vazia antes, mas esse sou eu agora. Quero correr atrás dos meus sonhos, e se for por dinheiro... Eu prefiro não precisar mais de você. — Ele me olhou friamente, balbuciou, mas não saiu nenhuma palavra.
Ficamos em silêncio, parados na porta do quarto. Com toda certeza, Mary ouviu toda nossa briga pelo tom da minha voz, já no limite da paciência. O que me deixa triste é saber que nossa relação entre pai e filho também a deixa triste.
— É ruim admitir que você cresceu e que vai abrir as asas para longe de mim. Talvez eu tenha perdido muito tempo com a minha dor e me esquecido da sua. Vai me condenar pra sempre? Perdoe-me.
O senhor grisalho agora nadava em círculos, se martirizando.
— Não estamos falando de tempo aqui, o passado não volta mais. Ainda estou aqui, não estou? — Cruzei os braços e ele consentiu. — Querendo o apoio do meu pai para ser a pessoa que quero ser. Não é por dinheiro, tenho a herança da minha mãe na minha conta. Você não percebe que eu sempre estive aqui por você? Eu chorei quase todas as noites por me sentir sozinho, até que me tornei duro como pedra. Não precisa pedir perdão, eu ainda estou aqui, ainda... — Sai andando em direção ao corredor vazio, e ele ainda permanecia na porta do meu quarto, estático.
Por trás de uma vida aparentemente perfeita, nada está feliz há anos. Cresci esperando meu pai me buscar na escola ou estar na arquibancada de um dos meus jogos em que fomos vencedores, e ele nunca esteve. Se eu ficasse três dias fora de casa, ele não percebia, mas Mary o avisava, então ele aparecia para me repreender pelo mal feito. Minhas dores e marcas, no fim das contas, só eu sei, mas ninguém mais.
Desço às escadas correndo em busca da minha mochila que havia sido jogada em algum lugar da sala, preciso sair de casa. Aqui ultimamente é o lugar mais sufocante de se ficar, avisto Mary me aguardando na saída e ela abre um sorriso assim que me vê, posso afirmar que ela me criou desde a morte da minha mãe e é a pessoa que mais me conhece, ela sabe tudo que fiz na vida. Mary trabalha e mora aqui desde antes do meu nascimento, ou seja, não sei como é não tê-la aqui.
— Está tudo bem, prometo. — Me aproximo e beijo-a na testa. — Rugas irão aparecer de tanto franzir a testa assim. — Com o indicador, toco sua testa e ganho um sorriso.
— Às vezes ele fala bobagens... — Ela tenta justificar e eu apenas bufo.
— Mais tarde estou de volta. Vou jogar basquete por aí, sem confusões ou bebida, prometo. — Ela me olha e manda um sorriso doce.
S2
Encarando o volante por muitos minutos, dirijo quase toda a cidade em busca de um rumo para minha cabeça quente. Diabinhos na minha mente me mandam beber, mas meus pensamentos me fazem dirigir em círculos. Todo ano, perto do aniversário da minha mãe, é a mesma coisa: brigas e brigas. Parece que a tristeza pela sua morte nunca é suficiente. Dirijo lentamente pelas ruas calmas e vazias, e só há uma quadra que sei com toda certeza que estará vazia, a do lado norte da cidade.
Na escola, minha cabeça era uma bagunça; vivia sozinho em casa e na vida. No primeiro ano do ensino médio, fiz algumas amizades que, na época, pareciam ser as melhores. Não perdia festas, ganhei popularidade, nunca estava sem companhia e tinha muitas meninas à minha volta. Amigos, eu tinha para encher um estádio de baseball, mas no fim das contas, era tudo vazio. No início do segundo ano, um dia acordei e parecia ter algo muito pesado dentro de mim, não sei bem explicar, a ficha caiu de que aquele seria o ano para me salvar ou me afundar.
Comecei a abrir os olhos, já não saía tanto e perdi o gosto pelo basquete na escola, mesmo continuando a jogar. Depois disso, descobri que um grupo de pessoas ao meu redor tinha feito algo ruim e não aceitaram que eu fosse contra o erro; aquilo foi o estopim. Acabei me afastando de tudo e só continuei no time de basquete por causa das notas extracurriculares. Só me restaram dois amigos: Will e Josh.
Parei o carro ao lado da quadra, uma fina camada de neblina cobria o céu escuro e estrelado de uma sexta-feira à noite. Caminhei alguns metros e, de longe, a vi: uma menina sozinha jogando a bola de um lado para o outro por puro prazer. Sem que ela me percebesse, fiquei a observando por alguns minutos. Lembro que a vi muitas vezes na escola durante o segundo ano, andando junto com um menino. A vida parecia querer que eu a percebesse, em todo canto que eu ia, lá estava ela por algum acaso.
Sempre soube poucas coisas sobre ela. Por exemplo, ela não ditava regras, mas também não aceitava nada que não gostasse. Muitas vezes senti vontade de dar um oi, mas nunca me deixei fazer isso por achar que as pessoas iriam me julgar por falar com alguém tão diferente da maioria. Era assim que eu a via: diferente, uma das meninas mais bonitas que já conheci, mas que não se importava com sua própria beleza. Ela falava baixo e era quieta. Logo que comecei a trabalhar entregando cafés, comecei a vê-la quase todos os dias na padaria de seus pais. Então, tomei a maldita coragem que me faltou por anos e dei um oi.
Mesmo sabendo que ela não gosta de mim por minha verdadeira e extensa lista de babaquices na escola, não desisti de tentar conhece-la melhor. Após algumas palavras, o destino deu alguns empurrões e ganhei um voto de confiança, ela não sabe, mas sempre que estou com ela meu coração esquece as vezes que estive triste, isso é assustador.
Aproximo-me da quadra enquanto mais uma vez ela tenta fazer uma cesta, e erra. Vestida com um conjunto de moletom cinza simples e uma trança no cabelo, ela estava ainda mais bonita que nos outros dias.
— Clark, você é, de longe, uma das piores pessoas no basquete que conheço. É péssima — digo, tentando segurar a risada e assustando-a sem pretensão.
Sorri, de longe.
— O que está fazendo aqui a essa hora? Camisa linda — ela diz, olhando para mim enquanto eu jogo minha mochila no chão e vou até ela.
— Primeiro elogio recebido com sucesso, obrigado — fazendo-a sorrir. — E é meu time do coração! — falo com orgulho, colocando a mão apoiada sobre o peito, o que a faz sorrir novamente. Como pode ter um sorriso tão bonito? — Sempre jogo aqui, Clark. A quadra perto da minha casa não tem pessoas com as quais simpatizo. E o que você faz aqui sozinha? Pode ser perigoso! — digo ao pedir a bola.
— Também torço para eles, são muito bons. Sempre gosto de vir aqui para pensar sozinha... — ela diz, jogando a bola em minha direção. Arremesso a bola e ela entra na cesta e Joanne faz uma cara de surpresa, por achar que eu não acertaria de tão longe. — Você é mesmo bom nisso.
Faço algumas cestas consecutivas, tentando ensina-la algo e parece ser em vão. Com meu coração palpitando, me posiciono atrás na menina de cabelos molhados e a sinto ficar nervosa. Creia Joanne, não é só você que está assim. Com nossos corpos juntos, segurei seus braços finos e ela não relutou apenas me deixou guia-la ao ângulo correto e em minha instrução ela arremessou acertando em cheio.
A menina feliz saltitou em êxtase, fazendo nossos corpos se aproximarem-se em instantes. Seus olhos fixaram-se aos meus e suas íris claras como o mar caribe pareciam enfeitiçar-me.
— Acertei, pela primeira vez — Ela falou com alegria, nos encaramos e suas bochechas coram de imediato. Nossos corpos se afastaram rapidamente, ambos sem jeito.
Não é meu primeiro contato com uma menina, mas por que estou me sentindo tão nervoso?
— Sou bom mesmo, anos fazendo isso. Estou atrapalhando seu momento solitário? Já foi a um jogo deles? — Sussurro, fazendo a bola quicar para liberar meu nervosismo sem noção.
— Não está, e nunca fui. Parece que você está sempre me seguindo. É meu stalker? — ela diz, correndo à minha frente, tapeando a bola e arremessando novamente. Sigo os movimentos da bola e percebo que ela não aprendeu nada que ensinei há poucos minutos. — Talvez seja um dos meus sonhos ir vê-los jogar.
Ela arremessa a bola, errando.
— Eu já te vi, me vendo jogar em quase todas as finais. Mas nunca... — seus olhos azuis brilhantes encontram os meus, me fazendo perder as palavras.
— Mas nunca falou comigo... — ela completa minha fala, enquanto seus olhos fitam a paisagem à nossa frente. Recuou os passos e foi sentar na arquibancada. Sento-me ao seu lado, sentindo o cheiro doce que o vento traz dos seus cabelos negros. Antes que eu possa falar algo, ela diz em um tom baixo... — Podemos deixar o passado no passado?
Aquelas palavras me deixam mais aliviado. Apenas jogo a bola para longe, voltando minha atenção para ela. De tudo que podia acontecer no meu dia de hoje, não imaginava estar sentado com ela a sós em uma noite fria, sentindo-me uma criança por não saber o que falar perto da garota que me deixa com frio na barriga. No início, ela parecia nunca querer estar no mesmo espaço que eu, nunca levei tantos foras de uma pessoa só. —Um sorriso escapa e sinto-a me olhar de canto.
A brisa gelada adentra minha blusa regata, fazendo-me tremer de frio. Ao me arrumar no banco desconfortável, minha mão toca a dela. Por mais clichê que seja, permaneço com meu dedo junto ao dela, que não se incomoda. A menina ao meu lado faz parecer que nunca cheguei perto de alguém. Sinto-me nervoso como um adolescente bobo e, na tentativa de ouvir sua voz, deixo uma tosse seca escapar.
— Você vai para o aniversário da fábrica? Segunda é feriado, então você não vai se atrapalhar para acordar — Dei de ombros e mantive meu olhar nas folhagens ao chão.
Ela balançava os pés lentamente e suspirava, parecendo calma.
— Vou, meus pais também. Obrigada pelo convite, seus amigos irão? — Ela me olhou, sem esconder que gostou da resposta. — Topei com seu amigo Josh hoje à tarde... — Ela completou, já mudando de assunto.
— Eles irão viajar com as famílias, procurar a neve por aí. O Josh é legal... — declarei com sinceridade. — Acho que essa roupa não foi uma boa ideia, aqui é mais frio que perto da minha casa. Só suei correndo ali! — Coloquei os braços dentro da camisa, fazendo-a rir da minha cara sem cerimônia.
Joanne consentiu, ainda quieta.
— Aqui tem muita árvore e vento, você está de regata! — Com um tom calmo, ela tocou meu braço com sua mão, um pouco mais quente por escondê-la no moletom. Sem aviso prévio, ela saltou da arquibancada, me assustando. — Quer procurar algo quente para tomar, por aí? — Ela falou, mais uma vez provando que sabe como surpreender.
O que acabou de acontecer? Ela me chamou para sair? Para comer? Devo perguntar ou aceitar? Se eu aceitar ela irá se negar?
— Está me convidando para sair? — Perguntei, espantado. — Você está bem? Não trouxe dinheiro!
Ela cruzou os braços e suspirou, negando.
— Não estamos no século vinte, onde são os homens que pagam tudo. A gente acha algo barato, nada chique, pois quem é rico é você! — Joanne atirou em mim com suas palavras certeiras, e eu concordei. — Por incrível que pareça, estou bem. Não quer ir?
O vento gelado entrava por minhas narinas e eu respirei fundo, disfarçando o quão surpreso estava. Ainda não havia processado que Joanne me chamou para comermos algo. Fui muito rude ao perguntar se ela estava bem?
Peguei minha mochila levemente cheia e guardei o meu celular. Seguimos andando por entre as ruas calmas, e mesmo sem saber para onde ela estava indo, apenas a segui. Por esse momento, esqueci todo o meu dia agitado com brigas e dores. Começamos a conversar sobre basquete e, de modo descontraído, a menina sereia me surpreendeu sabendo muita coisa da NBA.
Percorrendo um caminho não muito a perguntei para onde iriamos mesmo já fazendo ideia.
— Para onde estamos indo? Meu carro ficou para trás e ele é meu bem mais precioso! — Perguntei, fazendo-a parar e me encarar.
— Ele tem seguro? — Disparou Joanne, fazendo-me consentir. — Então ele vai te perdoar por tê-lo esquecido.
— Se cuida, precioso — Virei-me e apontei para meu carro, fazendo-a rir.
Fazê-la rir era bom... faria isso mais vezes, mesmo que passasse vergonha.
— Iremos atrás de algo quente, sem veneno — Fui encarado e ela parecia estar se divertindo com minha curiosidade, logo voltou a caminhar com as mãos dentro dos bolsos do moletom.
— Eu sou a coisa quente! — As palavras saíram da minha boca de forma impensada. Droga, era para ter ficado em pensamento. Novamente, me surpreendi ao ouvir sua gargalhada.
Ela riu porque gostou, ou foi muito mal?
— Péssimo, Gustavo, péssimo — Ela falou ainda entre risadas, fazendo-me murchar. — Nesse momento você está frio, desculpe-me. — A encarei, me batendo internamente, ela é tão ousada.
Nos aproximamos de sua casa, que não era nem muito grande nem pequena. Uma cerca branca e um jardim com pequenas flores brancas passavam um ar de conforto ao lar. Já estive aqui, mas estava nervoso demais para reparar em qualquer detalhe.
Ela se aproximou da porta, retirou do bolso um chaveiro rosa felpudo e abriu a porta, mostrando a casa totalmente escura por dentro.
— Calma... — Sussurrei, fazendo-a parar e olhar para trás. — Passa das onze, e está deixando um desconhecido entrar na sua casa.
Joanne arqueou as sobrancelhas e pausou seus passos ao me ouvir.
— Entra, não vou te matar — Ela declarou seriamente, me dando passagem para entrar. — Meus pais não estão, e eles não se importariam. Desde quando você é desconhecido?
— Tudo bem então, já que não vai me matar... — Sorri, sem que ela pudesse ver.
Ela percebeu meu desconforto ao entrar e me explicou que estava sozinha, o que me fez ficar um pouco mais confortável. Ao entrar no ambiente, ela ligou duas luzes para nossa passagem. A casa tinha uma decoração bonita e simples, quase toda em tons pastel. Enquanto caminhava, observava várias fotos dela com sua família e com Alexander.
— Você já veio aqui, mas fique à vontade de novo. Vou fazer um chocolate quente, já que não gosta de café.
Surpreendo-me com esse detalhe sobre minha vida, que não me lembro de ter compartilhado.
Sento-me em um banco de madeira na ilha da cozinha e sigo seus passos com o olhar. Com agilidade, ela separa duas canecas coloridas e vai ao fogão.
— Como sabe que não gosto de café? — Pergunto, encarando as canecas que ela colocou à minha frente, enquanto um sorriso tímido surge em seus pequenos lábios normalmente sérios.
— Você me falou, na praça, meses atrás... — Ao sussurrar com timidez, percebo que ela tinha razão. — Por que tomou o que não gosta naquela manhã?
Merda, o que dizer? Como explicar algo que não tem explicação, a menos que eu me declare e arrisque assustá-la?
— Queria sua companhia, e estava com fome. Esqueci que tinha falado sobre isso... — Sem responder diretamente à pergunta, foi o que consegui explicar, ou seja, nada.
Ela entregou-me uma xícara cheia de chocolate quente com pequenos marshmallows, assoprei sem pressa e degluti o primeiro gole. Cremoso e não muito doce, era o sabor adequado ao meu paladar. Se aproximando da ilha ainda do outro lado, ela me encarava querendo falar alguma coisa mais sua timidez não a deixava.
— Está muito bom. — Confessei, observando-a esfriar seu chocolate, segurando a caneca com as duas mãos. — Se arrepende de ter me convidado, Anne? — Perguntei, notando sua expressão séria, diferente da de antes.
O silêncio pairava no ambiente, meus ombros tensos aguardavam sua resposta. Sua expressão enigmática não revelava muito sobre seus sentimentos por trás de um olhar penetrante. Seu convite inesperado deixou-me feliz e entusiasmado; é complicado lidar com sentimentos unilaterais.
— Não, não me arrependo. Só gostaria de saber o que fez você se aproximar de mim depois de anos. Não me diga que foi normal...
Joanne aguardava minha sinceridade, e eu sabia que ela teria que enfrentá-la, mesmo que não nos levasse a lugar nenhum após essa noite. Levantei-me da ilha e fui em sua direção, segurando sua pequena mão e a conduzindo para se sentar ao meu lado no sofá. Ela me seguiu sem contestar, com passos lentos.
Sentados lado a lado, apertei minhas mãos e tentei começar.
— Depois que minha mãe faleceu, me perdi em solidão ainda criança. Ela descobriu o câncer no pulmão quando eu tinha quase doze anos. Como deve saber, o câncer de pulmão é um dos mais letais e estava em estágio avançado; mesmo com tratamentos, era só paliativo e esperar sua hora. Ela morreu após o meu aniversário de doze anos, e ali me perdi por completo. Sem irmãos e sem família, vi meu pai se afundando em tristeza e acabei perdendo ele também. Mesmo não aparecendo, foi a governanta da minha casa quem me criou. — Suspirei, buscando palavras suaves para algo que era impossível de descrever, mas continuei, e ela me ouvia em silêncio.
Joanne seguia estática, me olhando e escutando atentamente minhas palavras.
— Cresci basicamente sozinho. No ensino médio, conheci pessoas fúteis, mas para mim eram ótimas. Passei a ter companhia, amigos, festas, bebidas, pessoas para me acompanhar, e acabei me perdendo. Não me orgulho disso, nem jogo a culpa em ninguém. Sobre você, bem, soube quem era no segundo ano, porque, por algum motivo, você estava sempre na minha frente. Após a homenagem ao seu irmão, te achei uma pessoa incrível e forte! — Ela sorriu e deu um gole em seu chocolate. — E, por acaso, já estava afastado de todos quando tomei um choque de realidade. Só restaram o Will e o Josh.
— Baker... — Sua voz doce me fez pausar. Pedi para que ela me deixasse continuar. — Está bem, continue.
Ela me encarava, fixamente.
— E, acreditando ou não, eu gostei de você quando te vi, mas nunca tive coragem de falar porque já sabia que ia me mandar sair da frente por causa do meu passado. E você precisa concordar, pois fez isso até poucas semanas atrás. — Ela sorriu e percebi que a deixei com vergonha.
Acabei de dizer que gosto de alguém, provavelmente a troco de nada. É pouco provável que ela não me dê outro de seus foras.
— Não sabia da sua história e te julgava pelos seus erros. Acho que devo desculpas também. Te dei um voto de amizade e, se estiver mudando, é um começo. — Ao colocar sua caneca na mesa de centro, percebi que não era o fora que eu estava esperando. — E não vou te mandar sair da frente, por trás da sua afeição metida e da sua cara de pau, você é uma pessoa legal, Gustavo. E sua amiga do jardim de infância também acha. — Joanne sorriu, me deixando sem palavras.
Ela está falando da Alice Moore, uma pessoa que merece minhas desculpas eternas.
— Devo perdão a ela e desculpas ao Alex também. Acho que devo desculpas a muitas pessoas! — Meus ombros caíram e senti-me envergonhado, percebia o quanto havia magoado as pessoas ao meu redor.
Joanne me deu um leve empurrão no ombro, e eu a olhei surpreso.
— O passado fica para trás, acabou. Todo mundo erra, e você tem a oportunidade de falar com todos eles e ganhar novos amigos. — Ela sorriu brevemente.
Ela pôs a mão em meu ombro e aperta, fazendo meu estômago revirar. Não escondo minha vontade de chorar e cai uma lagrima solitária junto a um sorriso, esse foi meu ápice da vergonha.
— Se chorar, não vou saber o que dizer, não me saio bem sob pressão. — Em um ato puro de gentileza, ela virou meu rosto para si e enxugou minha lágrima, fazendo-me sorrir. — Você está rindo ou chorando, Baker? — Um doce sorriso apareceu em seus lábios brilhantes, e eu a encarei.
— Hoje tive uma briga feia com meu pai. Ainda bem que te encontrei, aleatoriamente. — Terminei de tomar meu chocolate, e o dela ainda estava intacto na mesa, provavelmente frio. — Quer dizer, ainda bem que nos encontramos.
Tudo o que podia acontecer hoje, aconteceu certo?
— Tudo passa, até a uva passa. E nada é perfeito, eu não sou. Minha vida não é nada perfeita... — Ela bateu no sofá, me assustando, e declarou em um tom mais alto. — Você devia se acalmar e conversar com ele sem brigas. Imponha-se, mas ouça-o também. A dor que você sente, ele sente também. Vocês não são inimigos e sabemos que ele é uma pessoa boa. — Suas palavras me fizeram acalmar, como se tudo realmente fosse ficar bem.
Ela contou-me um pouco dos seus problemas diários e o quão seus pais a cobram perfeição diante os míseros detalhes.
— Obrigado por suas palavras, por esse chocolate e por essa noite. Foi como se você soubesse que eu estava mal. Me sinto um lixo por não ter tido coragem de te chamar para sair no passado, mas eu ia levar um não mesmo, então... — Bufo e encosto no sofá com graça.
— Sim, levar um não dos grandes! — Ela consentiu e sorriu.
Joanne sabe como me deixar sem ter o que falar com sua língua afiada.
Pego meu celular disfarçadamente ao vê-la respondendo alguém e digito uma mensagem. Dias atrás, encontrei sua mãe no shopping e, ao perguntar por ela, sua mãe me passou seu número em completo segredo.
Fica melhor solto...
Referindo-me ao seu cabelo, envio a mensagem e ela lê de imediato.
— SEU IDIOTA! — Gritou a menina com os olhos arregalados e me lançou uma tapa na cabeça tão forte que fez barulho. — Era você desde o Ano Novo? Que imbecil!
Sem parecer com raiva, ela sorria ainda soltando alguns xingamentos gratuitos.
— Sua mãe me passou seu número em um dia que nos encontramos na rua e perguntei por você. Não tenho culpa, não tive coragem de falar que era eu. — Coloco as mãos sobre a cabeça, prevendo outra tapa, mas ela só bufa.
Mesmo arriscando ser espancado, sinto-me à vontade para ser sincero.
— Minha mãe não tem jeito. Como está gravado? — Essa era a última pergunta que esperava, então coloquei meu celular em sua mão. O nome dela estava gravado como Sereia. Ao olhar, ela entregou ter gostado e eu encarei seus cabelos.
— Deixa meu cabelo, é fetiche em cabelo ou implicância? — Perguntei, com um sorriso leve.
Implicância?
— Fetiche? Então tenho fetiche em uma pessoa por completo. — As palavras escaparam da minha boca de um jeito que me deixou morto de vergonha, e ela ficou completamente vermelha. Bosta, eu não acerto uma. — Tenho que ir agora, é quase madrugada.
Joanne sorriu, sem se importar com o que ouviu.
— Vou gravar seu número como boca solta. — Arregalei os olhos, sem entender, e ela sorriu mostrando dentes brancos e alinhados. — Boca solta porque você deixa as coisas da sua mente escaparem pela boca.
Então isso não deve fazer mal, seu sorriso te entregou.
— Engraçadinha, manda um oi depois se quiser, é mais fácil responder do que mandar. — Ela me acompanhou até a porta em silêncio. Ao pararmos, eu estava no degrau de baixo e ela colada à porta no degrau de cima. — Então, obrigado por me dar um pouco de calor. — Estiquei a mão para ela cumprimentar.
Com minha mão esticada em sua direção, Joanne permanecia com seus braços cruzados, sem intenção de me cumprimentar.
— De nada, desde quando você começou a ser um menino tímido? — Em mais um de seus atos inesperados, ela me puxou para um abraço. Com as mãos em volta da minha cintura e a cabeça sob meu ombro, ela sussurrou em meu ouvido. — Boa noite, Baker.
Senti meu corpo estremecer com sua voz ao meu ouvido. O calor de seu corpo junto ao meu por minutos corridos fez com que eu percebesse que poderia ficar ali com ela por horas. Seu cabelo tinha um cheiro doce e era macio como seda pura, seu corpo pequeno parecia feito para estar junto ao meu.
No ato de nos afastarmos, nossas bochechas se tocaram, e senti sua respiração junto à minha e naquele momento trocamos olharem em sua forma mais profunda.
— Boa noite, Clark.
Seus olhos seguiam fixos nos meus, e o que aconteceu em segundos parecia ter durado horas. Cada vez que seus olhos cruzavam com os meus, sentia como se pudesse ver cada pensamento, cada sentimento guardado com tanto cuidado. Era um olhar que penetrava camadas de defesas e inseguranças, revelando uma vulnerabilidade que eu nem sabia que existia em mim. Naquele instante, o mundo se tornava um lugar pequeno e silencioso, e tudo que restava era a intensidade do seu olhar, desnudando minha alma de forma tão pura e inexplicável.
O que você fez comigo Clark, me sinto tão vulnerável e seguro ao mesmo tempo ao seu lado.
S2
Pessoas lindas do meu coração, esse capítulo foi destinado a mostrar um pouco mais sobre o Gustavo.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top