capítulo único.
Victor odiava balões em formato de coração. Odiava chocolates, até porque, como um homem morto e enterrado a sete palmos abaixo do chão, ele tinha algumas dificuldades para comê-los. Odiava alianças, grandes gestos românticos, filmes de Hollywood, cor-de-rosa, buquês de flores e ursos de pelúcia gigantescos.
Não havia sido um grande inconveniente ter morrido sem jamais se apaixonar por alguém. Muito pelo contrário, Victor tinha orgulho de seu antigo modo de vida, sempre fugindo das armações pregadas pela indústria cinematográfica e das falsas imagens de perfeição atribuídas ao amor. Ele, mais do que ninguém, sabia o quanto essas mentiras descaradas podiam ser prejudiciais. Não, muito obrigado. Ele preferia ficar sozinho e manter a própria dignidade. E, durante 32 anos, tudo realmente pareceu funcionar.
O maior inconveniente de sua vida veio depois da morte, na verdade.
Falando francamente, inconveniente era um eufemismo. O pós vida de Victor era uma catástrofe, uma tragédia, uma infinidade de luzes vermelhas piscando e girando enquanto alarmes ensurdecedores soavam. Era como se seus maiores pesadelos tivessem sido reservados em um pote durante sua vida, apenas para escaparem agora.
Ele odiava a morte.
Se sua vida fosse um livro, teria sido escrita em uma casa escura por um grande solitário. O fato é que, embarcando apenas em casos passageiros com mulheres cujos rostos eram esquecidos em questão de dias, debochando de toda arte minimamente ligada a ideia de romance e desencorajando qualquer envolvimento sentimental, Victor irritou o deus do amor.
No seu funeral, enquanto a alma ainda orbitava o corpo, antes de seguir em frente até o mundo dos mortos, algo aconteceu. Foi como se ele se tornasse fumaça soprada pelo vento. Quando finalmente se solidificou novamente e abriu os olhos – como assim ele tinha olhos de novo? –, tudo o que viu foi um gigantesco campo de rosas que se estendia para além do horizonte. Era como se o mundo fosse feito apenas de flores. Ele não sabia onde estava, muito menos por que tinha um corpo novamente. Nada fazia o menor sentido, a não ser que os mortos pudessem se tele transportar involuntariamente.
Esse redemoinho de pensamentos assustava Victor: há alguns segundo ele nem tinha o luxo de possuir um cérebro funcional.
E foi nesse momento que tudo desmoronou. Em um piscar de olhos, Eros apareceu. Victor não era um grande fã de mitologia e jamais desconfiaria estar em frente ao deus do amor, se não fosse pela sensação visceral que o atingiu. Eros era uma certeza intensa, uma presença impossível de ser confundida. Até mesmo o mais cético entre os céticos, o mais ignorante entre os ignorantes, saberia, em seu âmago, de quem o pequeno homem se tratava. Seus traços eram belos de um jeito infantil: um retrato explícito de pureza, mesmo que os braços estivessem cruzados e as sobrancelhas franzidas. Victor ficou hipnotizado por suas asas brancas. Ele estava convencido de que tudo aquilo não passava de um delírio causado pela morte, algo como um sonho tardio, que se tornou um pesadelo no momento em que o deus começou a falar.
A energia de Eros era inebriante, mas ele estava visivelmente irritado.
-Esperei por anos uma oportunidade de te encarar, Victor Valverde. – Apesar da aparência infantil, a voz de Eros era grave e poderosa, digna de um deus grego e assustadora o suficiente para arrepiar todos os pelos do corpo aparentemente ressuscitado de Victor – Você criou uma infinidade de problemas para mim, e quase me fez ser expulso do Olimpo. Essa sua atitude indiferente me custou muito.
As flores foram sopradas por uma corrente de vento forte, curvando-se aos pés de Eros. Era como se tudo ali refletisse o humor do deus, e Victor fosse apenas um ouvinte submetido à sua ira por todos os cantos. Ele simplesmente não tinha por onde escapar, então rendeu-se à estranha alucinação.
-Olha, entendi que você não está pra brincadeira, mas tem como você me explicar o que aconteceu aqui? Alguns minutos atrás eu estava dentro de um caixão e não era nada além de uma alma penada, mas agora vim parar nesse fim de mundo, estou sentindo minhas pernas de novo e tendo que ouvir esse seu papo estranho sem entender nada. Tipo, é normal ficar maluco depois de morrer? Eu estou com algum defeito?
A respiração de Eros se acelerou, e, juntamente com ela, o vento pareceu se fortificar também. As rosas dançavam seguindo uma sinfonia que só elas ouviam, curvando-se em sincronia, como se criassem vida própria. Os tons alaranjados no vasto céu refletiam o pôr do sol, um horizonte saído de uma pintura clássica.
-Você tem uma centena de defeitos, garoto. É o trabalho mais difícil que já recebi.
O deus descruzou os braços e deixou com que eles caíssem ao redor do corpo. Seu suspiro acalmou o balanço antes violento das flores, e fez Victor perceber que, além de uma raiva incontida, Eros também estava aprisionado em um estado intenso de melancolia.
Não parecia real. Victor nunca imaginou que fosse morrer aos 32 anos por um motivo tão idiota, muito menos se encontrar com um deus grego no pós vida. Pior ainda, se encontrar com um deus grego com raiva dele.
Ele nunca foi uma pessoa religiosa, então nunca havia pensado demais sobre tudo isso. Entre todos os lares temporários e famílias instáveis, Victor nunca estabeleceu muitas convicções. A única coisa que sempre soube era que precisava dar um jeito na própria vida, e que faria aquilo sozinho. Sozinho, como sempre esteve. Portanto, religião nunca foi algo em que ele pensava com frequência. Geralmente, ele se preocupava muito mais em sobreviver por mais um dia do que refletir sobre a existência e sobre a vida após a morte. Se existiam seres superiores? Em sua breve vida, ele não saberia dizer. Não parecia importante pensar em divindades enquanto ele estava quase morrendo de fome aos 6 anos, sendo espancado aos 13 e morando na rua aos 16, além de tudo o que veio no meio.
A ideia de ser cuidado e observado por algo além desse planeta parecia irreal: Victor havia crescido cuidando de si mesmo, porque ninguém mais o fazia. Por esse mesmo motivo, a ideia de amor parecia uma mentira, algo criado apenas para entreter almas infladas por um desejo de experimentar algo que as fizessem se sentir mais vivas.
Como ele poderia acreditar no amor? Seus pais, independente de quem fossem, não o amavam. Ele foi dado para a adoção logo no hospital, e jamais descobriria as próprias origens. Nunca soube de onde vieram os cabelos castanhos ondulados, ou de quem puxou a pele naturalmente bronzeada. Precisou se conformar com o fato de que seus olhos amendoados nunca seriam relacionados com mais ninguém. Será que seu pai era alto como ele? Será que a mãe também tinha lábios inferiores carnudos? As possibilidades eram infinitas, mas ele nunca saberia. Assim como o próprio sobrenome, Valverde, pertencia somente a ele – quando atingiu a maioridade e juntou dinheiro para tal, Victor alterou no cartório o nome que recebeu da assistência social, assumindo o controle da própria identidade –, todo um conjunto de características era reservado ao anonimato e seriam somente dele pelo resto da vida.
Depois de ser abandonado, ele passou incontáveis anos entre orfanatos e lares temporários, sempre indesejado. Sofreu ameaças de outras crianças atormentadas por ser quieto demais, magro demais, fraco demais, fácil demais de servir como alvo para quem precisava de um escape para a própria raiva. Foi maltratado por tutores, castigado, proibido de sair de casa, ofendido e agredido. Durante todos os dias em sua infância, Victor dormia sonhando com um próximo dia um pouco melhor do que o que terminava, mas tudo só piorou quando ele foi adotado. Foi tão privado de afeto que cresceu sem saber como ser amado, como reconhecer um sinal de carinho, e uma enxurrada de inseguranças veio à tona quando ele enriqueceu e passou a ser desejado em todos os quatro cantos de São Paulo.
E essas inseguranças se provaram verídicas: apenas duas pessoas compareceram ao seu funeral, o padre e o coveiro.
Mas ele se recusava a dizer qualquer uma dessas coisas para Eros. Se recusava a assumir para si mesmo que todas as suas ressalvas sobre estabelecer conexões e se apaixonar eram consequências de uma vida moldada por abusos. Quando um abismo é muito profundo, às vezes é mais fácil apenas ignorar a sua existência para não correr o risco de se perder dentro dele. E foi por isso que Victor disse apenas:
-Eu nunca quis ser um trabalho seu. Sou apenas uma pessoa, e não um projeto.
Mas ele, por saber sobre Eros apenas o que era colocado em filmes e séries sobre um anjo com flechas que faz com que as pessoas se apaixonem, ignorava o fato de que os deuses gregos não permitem insultos. Para um ser milenar, filho do deus da guerra e da deusa do amor e da beleza, um humano ríspido só não teria a vida destruída porque já estava morto.
-Você me testa, jovem. Debocha em vida e debocha na morte. Ninguém te ensinou a temer aqueles que estão acima de você? Ninguém nunca te disse que você não passa de um verme inútil que eu poderia esmagar com um único aperto de minha bota?
Victor estava acostumado a agir friamente, e a morte era ainda mais fria. Porém, em meio ao vendaval terrível que havia se iniciado com um levantar de braços de Eros, era impossível manter a calma. Ele sentia-se como um garoto desamparado novamente, perdido, incapaz de entender completamente o que estava vivendo – mesmo tendo perdido a vida. De alguma forma, sua alma reconhecia a divindade à sua frente e compreendia a gravidade da situação, mas sua mente tinha dificuldade em juntar todos os fragmentos de informação. Frente a tudo aquilo, sobrava apenas o terror.
-Você me humilhou durante anos, garoto. – A ira de Eros parecia inflar e tornar-se algo vivo. Victor nunca tinha usado nenhum tipo de psicodélicos em vida, mas acreditava que a sensação seria parecida. Simplesmente não fazia sentido que um homem comum e desinteressante de São Paulo tinha feito um deus grego se sentir humilhado. – Você foi imune a todas as minhas flechas. Foi resistente a todos os meus esforços, sempre se manteve firme e nunca se apaixonou. Você fez com que eu fosse chamado de fraude, colocou minha reputação em risco, e por sua culpa eu quase perdi minha honra e minha posição no Olimpo.
Era surreal. Seria cômico se não fosse confuso e assustador. Victor tinha vontade de rir até a barriga doer, porque era bizarro que sua decisão de não se envolver romanticamente com ninguém tivesse tomado um rumo tão estranho assim. Mas, ao mesmo tempo, era um pouco trágico. Ele começava a entender que, além da vida complicada, também não teria paz depois de morto. Se é que estava morto, isso sim. Os joelhos bambos como gelatina traziam vários questionamentos.
Além do mais, o mundo parecia ser tomado por uma grande tempestade agora. Era surpreendente que Victor não fosse carregado pelo vento forte.
-Mas isso acaba agora. Você tomou algo de mim, então irei tomar algo em troca. Nunca consegui afetar a sua vida, mas, se tudo que restou foi a morte, então que seja, eu a terei.
O pequeno furacão parou de repente. O som do vento cessou com um último estrondo, e as rosas se imobilizaram novamente, perfeitas como se o vendaval tivesse sido apenas um delírio. Porém, dentro de Victor, algo estava diferente. Pesado. Era como se correntes tivessem sido atadas sobre sua alma.
Não era um sonho, muito menos um delírio. Ele havia sido amaldiçoado.
Da mesma forma abrupta em que havia aparecido, Eros se foi, deixando Victor perdido em meio ao campo infinito de rosas. Apesar do universo de flores, o homem não estava perdido. Algo profundo em sua alma puxava-o na direção da saída, como se houvesse uma voz dentro dele para guia-lo.
De repente, tudo se tornou real: Victor agora estava sujeito aos desejos de um ser que deveria ser apenas um mito.
E foi assim que sua morte se transformou em uma completa catástrofe.
Hoje, Victor completava seu aniversário de morte. Já faziam dois meses que ele havia sido atropelado próximo à praça da Sé e amaldiçoado por Eros. Dois meses de uma missão que contrariava tudo aquilo que ele pregava em vida.
Victor precisava fazer uma mulher encontrar o amor.
Não qualquer mulher: Caroline. Uma cética, assim como ele. Caroline era alta e tinha um corpo digno de uma modelo de passarela. Seu andar era firme, decidido, característico de alguém que raramente se deixava abalar. Seu cabelo era preto como petróleo, pintado, e descia em ondas até a base da coluna. Talvez fosse por conta da influência de suas últimas experiências, mas Victor achava que aquela mulher parecia uma deusa. Era surreal ela nunca ter se apaixonado antes: uma beleza daquelas provavelmente seria digna de inspirar canções e obras primas, disputas entre pretendentes assim como nos mitos gregos. Mas, não. Aos 29 anos, ela nunca tinha se envolvido profundamente com ninguém.
E era exatamente esse o problema. Victor nunca amou nada na vida, e se julgava incapaz de fazer com que Caroline encontrasse o amor. Como ele poderia ajudá-la a encontrar algo que nunca conheceu? Era um tiro no escuro, ele mal sabia como começar.
Faziam dois meses que ele a observava. Ela vivia em um apartamento pequeno na Vila Madalena e gastava horas dentro de metrôs, se deslocando até a clínica em que trabalhava como fisioterapeuta e o local onde cursava a pós graduação em fisioterapia neurofuncional. Em suas típicas calças cargo e camisetas largas, ela parecia não ter nenhuma noção da própria beleza. Ou talvez, se tivesse, era algo que preferia ignorar.
Ela virava noites em bares, era uma amante de caipirinha de maracujá. Tinha vários amigos, mas parecia uma pessoa solitária. Nos dias frios, ela saia de casa com um moletom preto estampado com o rosto mal-humorado do Mike Wazowski. Todos gostavam da sua presença, mesmo enquanto ela andava por aí com a cara fechada.
Para Victor, Caroline era como uma força da natureza. Era o tipo de mulher que ele nunca se envolveria em vida, por ser tão visivelmente cheia de camadas que ele se sentiria tentado a explorá-las. As mulheres com quem ele costumava sair eram interessadas em aproveitar uma noite, nunca nada além disso. Ele nunca criou nenhum espaço para um segundo encontro, e era assim que funcionava. Ela era um perigo do tipo que Victor preferia evitar.
Pelo visto, era assim que funcionava para Caroline também: ela havia se encontrado com alguns homens durante os últimos dois meses, mas todos apenas por uma vez. Victor começou a frequentar os mesmos bares que ela, passar casualmente em frente à sua casa, também pegando os mesmos transportes públicos nos dias em que acordava animado, e almoçando no restaurante que ficava em frente à clínica onde ela trabalhava (uma das vantagens de morrer como indigente era que suas contas no banco continuavam ativas, então ele poderia pagar o que fosse).
Apesar de agir como um completo maluco, Victor não fazia nada além de observar. Não interagia com ninguém, muito menos com Caroline. Seu único objetivo era juntar os pontos sobre a rotina dela, até encontrar alguém em sua vida que fosse seu verdadeiro amor. Porém, a cada dia esse desafio ficava mais impossível. Ele já havia se conformado com o fato de que aquela vida de morto-vivo seria sua nova realidade: aquela missão era tão fracassada que tornaria a passagem dele para o mundo espiritual impossível. No fundo, ele já aceitava que seria um peão de Eros para sempre, preso em um corpo humano que não deveria lhe pertencer mais, esteticamente recuperado da deformação causada pelo acidente em um passe de mágica, porém dolorido em todos os pontos atingidos.
Tudo parecia perdido, mas nada é ruim o suficiente que não possa piorar.
O prato do dia era frango frito, e Victor levava o garfo até a boca no momento em que Caroline sentou-se na sua frente à mesa, como uma aparição. Sentado de costas para a porta do restaurante, ele não viu sua chegada, e o choque foi o suficiente para congelar, por alguns instantes, o braço que segurava o garfo. Victor demorou uma fração de segundos para se recompor, mas Caroline não parecia disposta a esperar. Sua expressão era assustadora, algo como uma fera selvagem: impressionantemente perigosa.
-Você está me seguindo. Por quê?
Apenas uma afirmação direta, uma curiosidade fria. A cabeça de Victor girava, e ele nem tinha bebido vinho dessa vez.
-Quem é você?
Apesar da voz engasgada, ele achou que tinha feito um ótimo trabalho fingindo. Mas Caroline, brilhante no uniforme claro do trabalho, era cortante como uma estrela-cadente.
-Você vive passando em frente à minha casa, observa o que pode por alguns minutos e vai embora. O vizinho te viu pelas câmeras de segurança várias vezes, não precisa negar. Você pega os mesmos transportes públicos que eu, segue exatamente a mesma rota, e almoça nesse fim de mundo, convenientemente próximo do meu trabalho. Depois volta pelo mesmo caminho, mas desce duas estações antes da minha. Por quê?
-Eu não sei onde você mora, acho que me confundiu com outra pessoa. E gosto do restaurante.
Ela franze as sobrancelhas de leve, intimidadora.
-Este frango está cru ou o especial da casa é sushi?
Ele congelou. O frango estava mesmo um pouco cru. Ok, o lugar todo era nojento: as janelas eram empoeiradas e as mesas eram cobertas por uma camada grudenta de gordura. Tudo fedia a óleo barato, e a comida era horrível. Na maioria dos dias, ele não comia nada além de uma porção de batatas fritas: a péssima alimentação não teria como fazer mal para a saúde de um morto, não é?
Alguns segundos se arrastaram enquanto ele pensava em uma resposta convincente que não fosse "Olha, eu morri faz um tempinho e um deus me obrigou a fazer você se apaixonar por alguém, é só o meu trabalho, sem ressentimentos.". O clima ficava mais pesado a cada instante, e a tensão era quase palpável.
"Eros, seu desgraçado, não era assim que as coisas deveriam ser.", pensou Victor.
E, por incrível que pareça, o deus respondeu, sussurrando em sua mente:
"Só faça o que tem que fazer."
Victor se culparia por muito tempo pela resposta tosca que deu em seguida, mas, em sua defesa, ter um deus grego lendo seus pensamentos era bastante assustador, até mesmo para um morto-vivo, tão assustador que transformou seu cérebro em gelatina e permitiu que sua língua se desenrolasse em direção ao maior constrangimento de sua vida.
-Você... você namora?
O choque no rosto dela foi um sinal de alerta. A expressão, antes fria, se contorceu em um milhão de formas, e nenhuma delas parecia encontrar uma explicação coerente para a pergunta de Victor. Por fim, ela se decidiu por encará-lo com a boca meio aberta, os olhos opacos.
-Calma, eu não tentei flertar com você! – Ele se adiantou a tentar explicar, balançando as mãos de nervosismo, mas como poderia explicar aquilo tudo? E agora, será que ele tinha ofendido os sentimentos dela com algo parecido com rejeição? Conversar com pessoas era tão difícil. – Quer dizer, eu até flertaria com você, porque você é linda, mas eu não faço isso, sabe?
Merda. Ele disse que ela é linda. Em voz alta. Era por isso que seu coração estava batendo no ritmo de uma bateria de escola de samba? Por algum motivo, as mãos de Victor estavam ficando meio trêmulas. Talvez pela estranheza da situação, ou talvez porque ele não fosse bom em interações sociais de modo geral.
-Ok, Thomas Shelby. – Caroline ficava mais desconfiada a cada segundo, suas sobrancelhas grossas e arqueadas recaindo como cobertores pretos sobre os intensos olhos verdes. Ela parecia uma loba prestes a saltar sobre a presa, analisando cada pequeno movimento. – Eu não namoro, e não entendo por que isso seria da sua conta. Vamos voltar para o assunto importante: por que você está me seguindo?
Como ele poderia explicar sem que fosse denunciado para a polícia, agredido por ela, ou tachado de louco? Era simplesmente impossível. Victor não sabia por que estava tão nervoso, afinal de contas ele nem queria mesmo fazer tudo aquilo, e um homem morto não deveria ter tantas preocupações. Mas, a cada vez que seus olhos se encontravam com os de Caroline, seu coração falhava uma batida. Era desesperador.
-Eu só... Não sei do que você está falando.
Foi então que a coisa mais inesperada aconteceu. Ela apoiou o cotovelo sobre a mesa e descansou a bochecha sobre os dedos fechados. E disse:
-Se sentiu minha falta era só ter falado comigo, Benjamin. Muito mais fácil do que agir como um maluco.
O mundo explodiu e se desfez em mil pedacinhos. Benjamin. Victor nunca esperou ouvir esse nome mais uma vez, até porque nem mesmo ele gostava de pensar nessa parte da própria vida. Benjamin, o nome dado por seus pais adotivos. O nome que ele trocou na primeira oportunidade que teve, para se desvencilhar de um histórico de agressões e abuso psicológico que o fez preferir morar nas ruas.
Ser chamado por aquele nome sugou todo o ar do restaurante. Parecia impossível que Caroline soubesse disso. A não ser que...
Caroline era a filha mais nova dos Russo, a família de descendência italiana que morava ao lado de Paula e Fernando Fragoso, os pais adotivos de Victor. Era uma menina alegre, de cabelos e olhos claros e um aspecto angelical. Foi a coisa mais próxima de uma amiga que Victor já teve em toda a vida. Se não fosse pelas proibições excessivas de Paula, pelo controle dominador, pelas agressões que ocorriam todas as vezes em que ele tentava sair para brincar com os Russo, provavelmente ele e Caroline teriam se tornado inseparáveis.
Ele tinha 13 anos quando foi adotado pelos Fragoso, uma família rígida e fanática religiosa, que sentiu a missão de educar uma criança abandonada e, assim, terem suas almas purificadas. Seu alívio e animação ao ser finalmente adotado acabaram quando ele descobriu na prática que o método de educação preferido do casal vinha de torturas físicas.
Nessa época, em uma das raras visitas dos Russo à sua casa, ele conheceu Caroline. Ela tinha 10 anos e parecia uma princesa. Victor ficou imóvel quando a garotinha parou à sua frente, vestindo um conjunto pink e abraçando uma pelúcia da Jasmine de Aladdin.
-Oi! Eu sou a Caroline. Essa é minha amiga Jasmine. – Ela mostrou a boneca de modo desajeitado – A gente veio brincar. Você quer brincar com a gente?
Victor, até então, nunca tinha brincado com ninguém. Por ser muito tímido e fechado, ele estava acostumado a ficar de fora dos grupinhos do orfanato e da escola, sempre isolado em algum canto. Mas, mesmo um pouco desorientado pelo convite da menina, ele resolveu aceitar. Enquanto os outros irmãos Russo corriam pela sala dos Fragoso brigando para decidir quem seria o Power Ranger vermelho, Victor – Benjamin, até então – fingia ser o motorista particular de Jasmine e Caroline, usando uma almofada como volante e levando-as para os lugares mais diversos o possível. Quando os visitantes foram embora, Victor foi forçado a arrumar toda a bagunça antes de dormir. Ao enfim deitar a cabeça no travesseiro, ele sentia o habitual aperto no peito um pouco mais fácil de suportar.
Ele a viu apenas mais algumas vezes antes de fugir de casa e passar a viver nas ruas, dois anos depois, mas o brilho infantil e dócil da menina sempre o cativou. Então, foi uma verdade absoluta quando ele respondeu:
-Eu senti mesmo a sua falta, Caroline. Como você me reconheceu?
Parecia loucura que aquela mulher intimidadora fosse a mesma menina angelical de suas memórias, mas, de qualquer forma, ela ainda parecia exalar uma energia de tranquilidade que o fazia se sentir em casa.
-Eu te vi na televisão, alguns anos atrás. A reportagem sobre o garoto sofrido que começou trabalhando na limpeza de uma empresa de tecnologia e terminou fundando o próprio império da informática. Fiquei muito orgulhosa de você, Ben. Você merece tudo isso.
O elogio inesperado foi como uma rajada de vento que bagunçou todos os pensamentos dele. Ele costumava odiar todas as menções ao antigo nome, mas, vindo dos lábios de Caroline, o chamado parecia algo estranhamente íntimo.
-Eu meio que não sou mais tão importante assim. – Nada importante, na verdade. – Mas obrigado.
-Não precisa...
A resposta de Caroline foi interrompida por gritos masculinos agressivos. Aparentemente, o dono do restaurante ameaçava o cozinheiro aos berros. Concentrado demais na confusão, Victor demorou para notar que a mulher à sua frente tremia e ofegava.
-Ei, você está bem?
Ela fez que sim apressadamente com a cabeça, já empurrando a cadeira para trás.
-Sim. Desculpa, eu preciso ir.
Preocupado, Victor levantou-se também, acompanhando ela até a saída.
-Eu não vou te deixar sozinha nesse estado, Caroline. Por favor, me conta o que aconteceu.
Guiando-a até longe do restaurante, Victor fez com que ela se sentasse ao lado dele na calçada. Mesmo perplexo, ele deixou que a mulher o abraçasse forte por longos minutos. Indeciso e completamente inexperiente, ele optou por fazer carícias circulares no cabelo preto de Caroline, até que os soluços do choro dela se acalmassem.
Algum tempo depois ela ergueu a cabeça, com os olhos vermelhos e um pouco inchados. Ela contou, com a voz fraca, sobre o casamento abusivo que viveu há alguns anos. Contou sobre as agressões, as manipulações, os gritos, a alto-estima destruída, o aborto que sofreu em razão de uma surra. Contou sobre as crises de ansiedade que precisou enfrentar no primeiro ano após a separação, e que até hoje era um problema quando havia algum gatilho. Contou sobre as inseguranças afloradas, sobre a dificuldade de voltar a viver, e sobre o processo longo e doloroso que passou até recuperar, finalmente, a maior parte do controle sobre a própria vida.
Victor, gelado de ódio, apenas ouviu. Tentando se decidir se deveria caçar o ex-marido de Caroline, ele se contentou em apenas abraça-la mais forte e beijar sua testa de leve. E então algo estranho aconteceu. Ele, que havia fugido a vida inteira de laços e conexões, percebeu uma sensação quente crescendo dentro do próprio peito. Pela segunda vez na vida, Caroline foi capaz de quebrar as barreiras em seu coração e fazer com que ele não quisesse deixa-la.
E, realmente, não deixou.
Ao longo de diversos meses eles almoçaram juntos, assistiram todos os filmes das princesas da Disney, se beijaram pela primeira vez debaixo do céu estrelado no quintal de Victor, compartilharam histórias e ensinaram um ao outro a confiar novamente, sem pressa e sem cobranças.
Mas ainda foi uma surpresa quando, numa manhã nublada de domingo, Caroline acordou nos braços de Victor, enrolada nas cobertas. Enquanto ele encarava o rosto lindo emoldurado pelas ondas pretas, mal imaginou o que ouviria.
-Ei. – O sussurro sonolento dela carregava a sombra de um sorriso – Eu amo você, sabia?
O choque de Victor foi palpável. Porém, ele não precisaria pensar em nada: sem sombra de dúvidas, amava aquela mulher que era linda como uma pintura, inteligente como uma gênia e mais perfeita do que ele jamais poderia sonhar. Parecia surreal que, depois de anos fugindo da ideia de amor e de tudo o que vinha junto, ele estivesse se imaginando acordando todos os dias ao lado da mesma mulher, e fazendo com ela tudo o que jurou jamais fazer. Era emocionante, para dizer o mínimo.
Mas ele se esqueceu de um pequeno detalhe.
Quando seus lábios se abriram para responder a mulher, o tempo congelou e ele foi transportado mais uma vez até o campo de rosas, ao lado de Eros.
-Então, ela se apaixonou.
A voz do deus era fria como o próprio inverno, e foi capaz de congelar tudo dentro de Victor.
"Por favor, não.", ele queria dizer. "Por favor, não deixe que tudo acabe."
Mas tudo o que disse foi:
-De fato.
Eros ergueu as sobrancelhas, desafiador.
-Você cometeu um erro grave, Victor. Deveria estar ciente de que sua humanidade não era duradoura. Você foi emprestado a mim pelo deus dos mortos, mas essa barganha nunca foi feita para durar. Você condenou o seu coração, e o dela também.
-Não era essa a intenção, Eros. Nada disso deveria ter acontecido, mas foi a primeira vez que eu consegui me sentir bem na companhia de outra pessoa. Por favor, me dê mais um tempo. Um tempo para viver ao lado dela aquilo que nunca vivi antes.
A brisa que soprava as rosas estava contida, apenas um sopro triste.
-Você me entristece, garoto. Precisou da morte para abrir os olhos e enxergar as possibilidades que o coração trás. Me alegra que tenha encontrado o amor, mas infelizmente não há nada que eu possa fazer por você.
Victor foi tomado por um desespero incapacitante. Ajoelhando-se aos pés de Eros, ele se colocou a implorar.
-Por favor, Eros. Eu te dou qualquer coisa. Te entrego minha alma como serva para toda a eternidade, mas me permita viver pelo menos uma vida feliz ao lado dela. Todas as minhas vidas que vierem depois serão suas para fazer o que quiser.
Tudo se desfez. Ao piscar os olhos, Victor se viu novamente na praça da Sé, altamente embriagado após descobrir que sua empresa havia sido roubada.
Perturbado por uma espécie de sonho realista até demais, ele tentava se livrar da névoa causada pelo álcool. Mesmo confuso, ele tinha uma certeza visceral: precisava encontrar Caroline, a garota que havia marcado sua infância.
Porém, ao pegar o celular para procura-la nas redes sociais, ele viu uma mensagem escrita na tela bloqueada:
"Viva sua vida, garoto. Sua eternidade será minha."
"4997 palavras"
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