Capítulo 1: Naufrágio

Quando acordo no meio do mar de corais, percebo que já estão todos saindo.

Me apresso ao ver que uma de minhas "amigas", se é que posso chamá-la assim, faz um gesto para que viesse logo. Fazendo com que eu fosse praticamente arrastada para lá.

Caso você não saiba, peixes se comunicam por linguagem corporal. Para não lhe confundir, mostrarei somente os diálogos em nossa língua, apenas.

Olhava para mim uma garota de cabelo prateado longo e olhos verde-escuros. Possuía a pele um tanto quanto pálida, como uma característica de minha espécie.

- Ei, Você! - Odeio essa palavra. Ouço ela desde que nasci, e a detesto desde sempre. Geralmente, nós, nos referimos um ao outro como "você", "ei" ou "aquela/le garota/garoto".

Eu não gosto dessa palavra. Odeio ela.

Minha amiga ,essa que se referiu a mim dessa forma;eu geralmente a chamo de Ika, que significa peixe em uma língua que por agora, não me lembro qual seja.

- Oi, Ika. Como você está? - Pergunto, com meu melhor sorriso falso, já que por dentro estou com ódio por termos que partir novamente. Não se tornou difícil usar múltiplas máscaras, para com os outros. O difícil é permanecer com elas por muito tempo.

- Ah... já estamos indo para o Norte. - Ela deu um meio sorriso, tentando amansar minha raiva não exposta. Colocou uma mecha detrás da orelha e continuou. - Eu acho, que você deveria se apressar. Todos estão esperando Você, e algumas pessoas que estão atrasadas.

Ótimo... Agora eu realmente tenho que ir.

- Eu, realmente não quero ir... - Retruquei, deixando transparecer um pouco de minha frustração em minha face quase inexpressiva.

Ela ponderou um pouco, e depois de certo tempo, pareceu chegar em alguma resposta.

- Você realmente deveria se acalmar. - Ela suspira parecendo chateada. - Sei que não é o que você sonha, mas a vida é injusta...

- Eu sei que talvez eu esteja sendo idiota, Ika. Mas, eu não consigo olhar para isso tudo e deixar de sentir... sentir...

Baixo a cabeça e cerro meus punhos. Sinto um buraco em meu peito sempre que olho para minha vida. Parece que tem algo faltando para mim... Mas eu não sei dizer o que é.

- Sentir o que? - Perguntou-me Ika, um tanto curiosa e preocupada.

- Um vazio.

Ika se calou logo em seguida. Ela tentou se aproximar depois de um tempo, mas os outros pareciam chamá-la de longe, e então ela mudou seu objetivo inicial de me ajudar para o de me apressar a ir.

No fim, me mudei.

●●●

- Viu? Não doeu. Doeu? - Falava Ika, feliz com a mudança de alguns dias. Eu por outro lado, me senti maravilhada com o lugar. Era tão lindo.

Era cheio de corais, e consequentemente de vida. A água era cristalina, de modo que o céu e o mar aparentassem ser um só. Os peixes (os novos vizinhos), possuíam cores vibrantes e charmosas. Todos eram sempre tão sorridentes.

De repente sou surpreendida por uma mulher com uma mini cartola vermelha e roupa extravagante. A mulher simplesmente apareceu de nenhum lugar aparente, o que  deixou não só a mim surpresa como a todos surpresos.

A cor de sua pele era branca. Em suas mãos e pés, havia algo parecido com luvas ou meias coladas de coloração preto com vermelho.

Também possuía olhos belíssimos com três "arcos" do redor do olho. O primeiro era amarelo como ouro; o segundo era vermelho como sangue, junto com uma coloração meio alaranjada e o terceiro era um aro marrom ao redor da pupila.

Seu sorriso era cativante, sem contar que ela era muito bonita. Seus cabelos eram de um ganho mediano da cor escura em sua maior parte, mas nas pontas era vermelho como o céu perante o pôr do sol.

Usava também roupas. O que para mim era algo incômodo de assistir já que, como todos sabem, nós peixes não necessitamos de roupas. E agora que parei para pensar, a maioria dos indivíduos nadavam vestidos naquele lugar. O que, de novo, era no mínimo sem sentido.

O vestido era branco com uma faixa vinho, e a parte debaixo transitava de branco para preto; e na saia de preto para branco. Ele era curto cheio de babados, mais parecido com um tutu.

- Bem-vindos, meus amados novos vizinhos! - Disse ela, como se fosse uma apresentadora de algum show ou cenário fantástico. Ela parecia... - Vamos fazer um tour, meus queridos. E melhorem essas caras austeras; parece que nunca deram um sorriso. O que há com tanta seriedade? - Perguntou colocando o dedo indicador em cima dos lábios, pendendo a cabeça para o lado fingindo-se de confusa ou desentendida.

Parecia uma idiota. Não, uma palhaça. É, uma palhaça.

Após um certo tempo acanhados e sem entender bem o que estava acontecendo a moça tomou nossa incerteza como uma dádiva; e nadou em nossa direção ficando a centímetros do cardume.

Ela olhou bem no fundo dos meus olhos e após um certo tempo me encarando séria,  voltou a sorrir e agiu como se nada houvesse acontecido, voltando para seu "posto" e continuando a fazer brincadeiras enquanto nos guiava.

-  De qualquer modo, meu nome é Madelainne. - Disse ela enquanto continuava a seguir em frente, induzindo nos ao novo "lar".

- Nossa. Ela é muito energética.- Disse um de nossos companheiros sem nome, assim como eu.

- Eu que o diga. - Respondi mal-humorada. - Ela ficou praticamente em cima de mim.  Acho que pude ver as branquias dela se mexendo.  

- Ah! Vamos. Deixem de bobagem e aproveitem as coisas uma vez na vida! - Disse Ika, silenciando então todos ao redor, já que a maioria do cardume estava se queixando.

Madelainne nos disse que ali não existem predadores, como: tubarões, golfinhos, moréias, etc..  E mesmo que apareçam peixes cuja a dieta envolva seres menores, isso não é problema, pois a unica regra aqui é não machuque seus iguais, ou seja, não devore seus vizinhos; fora isso, sem problemas.

Bem bizarro quando se para para pensar, que para que ninguém o faça seja necessário tornar disso uma regra.

Mesmo assim, a ideia de um dia sem tubarões ridiculos e panacas com o cérebro maior do que um torpedo (modo de falar), que acham que a melhor coisa do mundo é bulinar com os outros; enchia o meu coração com alegria. Sorri sentindo-me em paz.

Ela nos disse também  que todos ali eram super amigáveis. E por isso não haveria problema para nos enturmarmos. Depois de um longo tempo, Madelainne fechou a boca e foi para sua casa, onde seu noivo a esperava.

- Ufa! Que bom que ela calou a matraca. - Falei para Ika,que revirou os olhos e deu um sorrisinho de canto.

- Você gostou do "show particular." Pode falar. -Cutucou-me insistentemente.

-Certo. Até que...- Ao olhar em seus olhos, senti-me enverganhada o suficiente para mudar minhas feições de uma cara branco-pálido para diferentes tons de roxo e violeta. Viro minha face para frente o mais rápido que posso não querendo admitir minha derrota; e nadando o mais rápido que consigo para ficar longe de seus olhares acusadores, só para depois reafirmar aquilo que ela (sabia) que iria ouvir de qualquer modo:

... Não foi tão ruim.

***

Todos os integrantes do cardume se dispersaram, já que uma vez sem perigo não há razão para agir como um único organismo sem emoções ou pensamentos próprios. E, apesar de tudo, como os vizinhos malucos, a arquitetura engraçada do lugar que parecia mais um tipo de cidade subaquática e a calma e paz, que chegavam a ser quase vertiginosas de tão perfeitas; todos se divertiram.

Os dias passaram e tudo estava perfeito. Fizemos amizade com todos os peixes, inclusive Madelainne, à quem todos julgavam ser maluca, ou talvez excêntrica, dependendo do ponto de vista.

Ika e eu estávamos confortáveis; bem... ao menos, mais ela do que eu.

Tudo estava tão calmo e perfeito, que cheguei a me sentir entediada e desconfortável. No fim aqueles predadores pacóvios faziam da minha vida menos chata. Irônico... eu sei.

Aquela afirmação me deixava constrangida e desiludida. Não conseguia ser feliz sem aqueles monstros ao meu lado... Mas quem era eu, para negar o inegável? Ainda mais quando estava esfregando os detalhes na minha cara.

Talvez eu quisesse experimentar o gosto da morte. Talvez quisesse prosear com eles (provavelmente, se o fizesse não seria de modo amigável,portanto... mudemos de alternativa). Ou mesmo uma aventura.

A verdade era, quando fizesse a travessia para os mares polares para... bem... reproduzir, meu corpo não iria aguentar, devido ao fato de estar tão desgastado  não ser mais capaz de me manter ao ponto de ser impossível me reaquecer por conta própria; reafirmando o meu destino de morrer no exato lugar onde nasci.

Em outros termos, estou fadada a morrer congelada.

Seria este o meu destino? Definhar sem jamais ter encontrado um motivo pelo qual viver? Um motivo pelo qual morrer? Morrer sem um propósito? No frio... sem nunca entender o significado de amor, sem nunca ter sentido o calor de um lar... uma família, ou ver a face de meus futuros filhos, que infelizmente estariam destinados ao mesmo propósito?

Será este o meu propósito? Viver e morrer de maneira miserável?

A passagem entretanto, era para ter ocorrido anos antes,mas devido ao fato de nos reproduzirmos rápido (algo entre 15 filhotes por peixe) e estarmos em risco de extinção por nossa carne ser mais deliciosa e mais viciante que os peixes mais caros, como o salmão ou o atum azul, retardamos a migração.

Existem apenas quatro cardumes da nossa espécie no mundo inteiro. No fim de 225 da nossa espécie, sobram apenas 15 no final de todas as migrações.

Não importa se morrem durante o processo, depois ou mesmo antes, apenas 15 sobrevivem.

Agora com 21 anos, ainda me sinto perdida. Em meio a tudo isso, não estou nem mais me importando.

Quer saber? Dane-se essa bosta; eu vou morrer mesmo. Quero mesmo é ver tudo explodir!

Em um certo dia, consegui fugir dos convites de Ika e Madelainne para sair.

Acho que queriam ver as ruínas de um navio naufragado ou umas tais de pirâmides de cristal; ou seria um navio de cristal e uma pirâmide naufragada?

Tanto faz.

Saí do mar de corais; e explorei naquele dia o oceano sozinha.

Existiam ostras com diferentes tamanhos e pérolas de diferentes formas e tonalidades. Pedras preciosas, peixes que nunca vira antes; e etc.

No meio disso tudo, notei que no fundo do caminho encantado das pedras e joias, tinha algo mais. A cada passo, a estrada ficava mais íngreme, formando uma depressão em seu centro. No meio dela, um recente navio naufragado.

-Uau! - Exclamei em voz alta. Ele era lindo, de um tom azulado. Tinha muitas janelas em sua parte de cima. Em seu casco um numero, ou o que sobrara dele, já que estava desfigurado com um buraco enorme, por onde supostamente teria sucumbido. Diversos fios que (ao menos), assemelhavam se ligar à uma antena, que era adornada com bandeiras e (acho que) um cone, que demonstrava ser a saída de algo dentro do navio; e algum objeto (ou ser) feito de plástico ou alumínio com um olho, multicolorido; notavelmente, suas vísceras eram a unica coisa que conectava o resto de seu corpo a sua cabeça. Certamente, tratava-se de um navio militar.

- Animal estranho. - Falei comigo mesma.

Logo depois fiquei sabendo que o cone e o animal estranho, eram respectivamente, um aparelho de saída de som e uma câmera de segurança.

Minha vontade de explorar aquela embarcação, era gigantesca; mas mesmo que houvesse um único peixe inofensivo (como eu, que sou um amor), nada mudaria o fato de na maior parte das embarcações haver presença de predadores.

Tubarões. Possivelmente muitos deles. Mesmo que olhasse em todos os lugares possíveis, o fato de não ver ninguém conseguia me promover uma angustiante sinestesia, de modo que nem  queria ficar; nem ir embora.

Tipo, eu sei que eu disse que queria aventura. Mas também não quero me matar.

Quando finalmente encontro coragem para sair, (ou sou tomada pelo sentimento de desistência, dá no mesmo), algo dentro do naufrágio chamou minha atenção.

Um brilho intenso de um objeto retangular; e alegadamente prateado. Não sabia bem o que era, mas alguma coisa me dizia que graças a ele, finalmente seria capaz de preencher meu vazio.

Finalmente teria um propósito.

***

No momento em que adentro a embarcação,  sigo o clarão prateado. Procuro cegamente pela luz intensa,  até visualizar o  que aparentava ser um velho cômodo, agora sem utilidade alguma.




Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top