Capítulo 2
— Vem, Krill! — Nora gritou lá de baixo. Eu só via uma mancha de seus cabelos castanhos contra o azul da água. As vertigens estavam me atacando forte. — Mostra que você é um crustáceo à altura!
A risada dela fez-me sentir borboletas no estômago. Aquele era meu som preferido no mundo.
— Eu vou voltar para o barco e tirar você daí — assegurei, me afastando da beira da ponte.
— Não! Se atira de uma vez. Você disse que eu não era capaz, e aqui estou eu. Na verdade, não importa o que os outros acreditam. Faça sua história, Krill. Tenha coragem! Viva!
Levei a mão ao peito, tentando sentir o reconforto de minha polaroide, em vão. Um passeio de barco tinha rapidamente se transformado em mais um dos desafios loucos de Nora. Tanto quanto eu sabia, a câmera podia já nem estar sob os domínios de Saint Patrick, uma pequena embarcação de madeira que construíra sozinho. Muito tinha a agradecer ao Lee's Community Boat Club, que me dera uma paixão e propósito para uma altura atribulada de minha adolescência.
Há duas semanas, eu havia descido a vela do barco uns bons centímetros, por insistência de Nora. Saint Patrick passou a poder circular sob as pontes, tendo um "potencial romântico", como ela advogava. Eu não estava muito convencido disso, já que nós éramos os únicos que passeávamos nele e continuávamos a ser apenas amigos.
— Eu já fiz um monte de coisas por você.
— Por mim? Ora essa! Não lembro de nada.
Contorci o rosto em desagrado, não que ela fosse notar de qualquer forma.
Para Nora, o passado e o futuro nunca importavam. O que me deixava arreliado, por vezes. Como ela poderia insinuar que eu não fizera nada por ela? Eu até havia deixado meu emprego!
Trabalhei no grande armazém em Charleston, do outro lado do rio, durante apenas um mês. Levava quase uma hora a pé a lá chegar, para me limitar a descarregar caixas pesadas. Com meu porte franzino, a tarefa tornava-se exigente e, monetariamente, pouco recompensadora. Porém, o contato social era muito pouco, e a exigência física não deixava muito espaço para devaneios, o que me agradava sobremaneira.
Durante dias a fio, Nora esforçara-se imenso para me fazer ver que aquele não era um emprego de sonho para ninguém. No final das contas, ela tinha-me feito um favor, ainda que Rachel Gallagher não fosse da mesma opinião. Minha mãe reclamava que minhas mudanças constantes, de emprego em emprego, nunca me permitiriam assentar.
— Eu queimei minhas fotos por você — acrescentei, ao recordar-me do fatídico episódio.
— Sem dramas, Krill. Elas não estavam lá fazendo nada.
Conseguia contar com os dedos da mão as vezes que tinha levado Nora para minha casa. Os Gallagher não eram pessoas fáceis de lidar e eu queria evitar qualquer tipo de constrangimento.
No primeiro dia que ela entrou no meu quarto, mostrei orgulhoso o quadro que ocupava quase meia parede. Eu dividia-o em duas metades com uma linha vermelha de alto a baixo. Do lado direito, havia fixado todas as fotos de momentos especialmente caóticos ou inacreditáveis. Os cenários a preto-e-branco pareciam quase mentira, mas a realidade estava lá impressa, sem possibilidade de dúvida. Já do lado esquerdo, jazia o nada: um pedaço de grama, uma parede de tijolos, uma janela vazia... Meras falhas de que eu era recordado todos os dias, até a garota italiana me levar a pegar no isqueiro e a queimá-las, uma por uma.
Uma buzina insistente de um carro sobressaltou-me e eu quase caí para a frente. Alguns condutores não estavam aprovando minha posição perigosa à beira da ponte. Mas também ainda ninguém havia parado para me impedir.
— Vem, pula! A água está ótima.
Não tinha nem como escapar das vontades de Nora. Fechei os olhos e impulsionei meu corpo para a frente, os braços colados ao tronco e as pernas bem juntas.
A gravidade cingiu-me, veloz. A sensação foi esmagadora, porém, incrivelmente livre. Por uma fração de um segundo, eu senti-me como um flash de uma câmera, pronto a devorar a realidade de uma forma curta e intensa.
O impacto com o rio foi ruidoso e a corrente acolheu-me de má vontade.
Meu corpo enrolou-se na água fria e minhas roupas pesadas me jogavam para baixo. Tentei nadar até à superfície, enquanto o oxigênio começava a faltar-me. Minhas pernas e braços compridos tentavam desenhar círculos rápidos, mas eu não levava jeito para aquilo. A ascensão tornou-se morosa.
Finalmente, o ar voltou a entrar no meu organismo, num longo arfar.
— Viu? Eu... — Olhei em volta, tentando achar minha melhor amiga, mas só tinha água e mais água. Não havia sinal dela em lado nenhum. — Nora?
Voltei a mergulhar. A água turva do rio não facilitava a tarefa. Era como procurar uma agulha num palheiro.
— Eleanora — chamei assustado ao emergir à superfície.
— Aqui, seu bobo. — A voz doce abraçou-me as costas geladas. Eu sorri aliviado ao vê-la sã e salva bem atrás de mim. — Você é um Krill um pouco desengonçado.
Os dois gargalhámos. Eu era melhor fora de água, a bordo do Saint Patrick. Estava longe de ser um animal marinho.
— Foi por você — confidenciei num sussurro, sem parar de mexer as pernas.
— Não, Krill, nós não estamos aqui por mim, apenas por você. — Ela me olhou no fundo de meus olhos escuros e minhas sardas, com certeza, se tornaram mais evidentes sob a pele rosada. — Não se esqueça. Se você acredita, então é real. Quem disse que precisamos de uma câmera?
Refleti a profundidade daquele comentário. Nora sempre dizia umas coisas que me botavam a pensar. Mas ela estava certa. Eu tinha acreditado e isso me levara à descarga de adrenalina mais espetacular que já havia experienciado. Não havia nada mais real do que as sensações, e elas não poderiam ser fotografadas.
962 palavras
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top