Capítulo 1

A um flash... Essa é a distância a que estamos da realidade...

O dia estava especialmente radioso, invadindo as ruas de West End com uma esperança ilusória. A humidade e o frio vestiam melhor a crescente decadência da grande cidade de Boston. Mas o verão estava à porta e o sol prometia-nos visitar mais vezes durante os próximos meses.

Suspirei ao pisar o terreno inóspito adjacente à Blossom Street. A poeira colava-se à parte branca dos meus gastos saddle Oxfords, que tendo resistido à época agitada da escola, sobreviveriam certamente à travessia daquele quase deserto.

Um rato cruzou meu caminho no meio dos escombros, e eu mantive minha passada. Os tijolos desfeitos causavam uma maior impressão do que o pobre animal. As ripas de madeira emergiam acutilantes, no topo do enorme monte, como armas. A guerra havia deixado marcas em toda a cidade, mas, as ruínas que eram feitas de nossas casas não advinham de bombas do inimigo. O punho demolidor pertencia a quem nos tinha protegido exatamente desse perigo.

Por alguns segundos, as sombras de construções meia-comidas tragavam-me. Mas, depois, o sol voltava a beijar-me a pele pálida de novo.

Eu não encarava os instrumentos demolidores, mas sabia-os plantados no solo. Verdadeiros gigantes sem alma prontos a abocanhar mais uns pedaços.

Não tardou para que a vida voltasse a saudar-me. A transição para o cenário utópico de um bairro agitado fora assumidamente brusca. Os lojistas atraíam as primeiras presas do dia; as crianças arranjavam formas criativas de adquirirem um novo machucado; e os moradores abandonavam seus lares, sabendo que no final do dia teriam para onde regressar.

Ainda que eu não fosse adepto do movimento citadino, o apego ao bairro, onde nasci e cresci, era incontornável. Como desejar que tudo simplesmente sumisse no ar? Eu poderia ainda não ter encontrado o meu lugar no mundo, porém, West End não merecia pagar pelo meu deslocamento.

Num bairro com pouco espaço para novidades, mesmo sobrelotado, seria difícil esbarrar com uma cara estranha. Sentia-me encolher sob minha velha boina, testemunhando a dança quase interminável dos chapéus levantados no ar à passagem de um conhecido. Meus curtos cachos ruivos não estavam para desalinhos àquela hora da manhã, por isso, segurei na câmera, que trazia a tira colo, e fingi-me de ocupado, procurando o primeiro alvo.

Sempre que envolvia os dedos na minha amada Polaroid 95, um frenesim percorria meu corpo. Apertando um mísero botão, eu poderia capturar um fragmento da realidade e fixá-lo na eternidade. Como era gostosa, a sensação!

Alguns rapazes começaram a fazer poses exageradas para a câmera. Acotovelavam-se uns aos outros, lutando, entre si, pelo lugar destacado na foto. A alegria transbordava em cada pequeno traço das feições bem distintas. E, por isso mesmo, o flash não veio.

Aquele era meu vício, e, como todos os viciados, eu era exigente. Não me sentiria satisfeito com qualquer flash aleatório. Havia um padrão.

Ouvi os queixumes de frustração, quando desviei a polaroid para um ponto mais à frente. Os risos logo se seguiram, indicando que os garotos estavam pouco se ralando para o meu mau gosto.

Através da objetiva, fui presenteado com o surgimento de uma garota. Estava sentada no estreito degrau da entrada de um prédio residencial, tomando seu sorvete, completamente compenetrada. Ela era belíssima, com seus curtos cabelos castanhos descaindo em pequenas ondulações sobre os ombros. A franja fazia um pequeno cano até meio da testa, enquanto alguns cabelos das laterais eram puxados para o topo por alguma espécie de presilha. O vestido branco, pintalgado por flores, realçava o tom bronzeado da pele das pernas e braços.

Dei por mim a fazer estimativas da idade da jovem, a ponderar como seria a sua vida, seus gostos, sonhos... Esse era um dos meus jogos favoritos.

Não mais de dezoito primaveras, havia decidido ao enquadrar o sorriso jovial, que resplandecia mesmo na distância. A descendência teria de ser italiana. Talvez os pais fossem até os Rossi, donos da melhor sorveteria de Boston. Isso poderia explicar a escolha inusitada para a primeira refeição do dia.

Mantive-me naquele estado hipnótico por algum tempo, fazendo apostas comigo mesmo. Era incrível como se revelava fotogénica sem mesmo se dar conta da intrometida câmera. As pessoas passavam por ela, depois por mim — o fluxo invertia, às vezes — mas nenhum dos dois mudava o foco. Como essa atitude dela me estava a maravilhar!

Meu dedo hesitou no botão da polaroid. Eu queria poder olhar para aquela bela jovem sempre que quisesse, guardar aquele momento. Não era meu método registar a beleza do mundo, mas teria aberto facilmente uma exceção para ela, não fosse minha consciência me gritando que isso seria errado. A garota não me havia dado autorização para tal.

Uma voz alterada sacudiu-me daquele impasse. Atrás de mim, do outro lado da rua, uma multidão começava a reunir-se junto a um dos prédios mais antigos de West End. No meio do semicírculo, um casal discutia com um homem trajado de negro. As roupas formais destoavam dos tecidos simplórios do povo, maioritariamente imigrante.

O caos nunca anunciava a sua chegada. Emergia de rompante como a lava, sem dar tempo de uma reação adequada para as meras testemunhas. O bairro estava marcado de pistas, ainda assim. O vulcão estava em atividade há anos, e todos o sabiam. Chegaria a vez de todos.

Disparei o primeiro flash do dia, enquanto as palavras encolerizadas me enchiam os ouvidos. A fotografia foi cuspida em menos de 60 segundos. A cena, a preto e branco, ficara evidente no pedaço de papel. O membro da Autoridade de Habitação de Boston era erguido no ar pelos colarinhos. O rosto atordoado e escarlate ascendia do cume, bem visível.

— É a BRA*? — Meus olhos arregalaram-se ao ver a garota presumivelmente italiana a um braço de distância. — Me desculpa. Assustei você?

Neguei com a cabeça, sem capacidade de articular nada.

— Eles brigam à toa — continuou. A garota virou sua atenção para o aglomerado. Eu olhei à nossa volta e percebi que éramos os únicos numa posição mais recuada. — Uma mera perda de tempo. — Ela trincou um pedaço do cone do sorvete. — Os pinguins dizem que depois vamos poder voltar. Você acredita nisso?

— Pinguins?

Quis arrastar a boina até minha cara para me esconder daquela humilhação. Tanta cerimônia e tinha de ser logo aquela a primeira palavra que ela ouvia sair de minha boca.

— É. Você não está vendo? — Ela colou o dedo no homem em destaque da minha foto. Como era muito mais baixa que eu, não deveria conseguir ver o homem lá na frente, já recomposto e com os pés assentes no chão. — Aparecem sempre vestidos de preto e branco, com roupa dos pés à cabeça. E andam de um lado para o outro como aves inúteis, quase sempre em bando. Esse deve ter-se perdido. Ou é apenas muito idiota.

Ri com a sugestão caricata e, ao mesmo tempo, tão precisa. Eles eram realmente muito estranhos, sempre destoando de nós, os pobres que dependiam da "caridade" deles. Ofereciam dinheiro e promessas vazias da possibilidade de retorno. A modernidade é o melhor para os dois lados, eles diziam. Meu pai acreditava que, sendo ex-militar, nada disso nos afetaria, mas eu duvidava.

— E isso faz de nós o quê?

Ela me encarou com um sorriso travesso. Ali, sim, eu consegui construir uma ponte até ela, mesmo que precária. O caramelo de seus olhos derretia com o rumo da nossa conversa. A beleza dela só aumentava.

— Eles, peixes — respondeu apontando para a multidão. — Você... — Ela fez uma pausa dramática, mordiscando mais um pouco do sorvete. A sensualidade brotava dela sem que ela se apercebesse. — Krill**.

Cocei a cabeça, ponderando se ela tinha feito a associação pelos vestígios laranjas no corpo do animal invertebrado ou se por me achar demasiado novo. Não estava esperando que ela fosse saber sobre a existência dos pequenos crustáceos. Talvez ela também se interessasse em pesca como eu. Isso seria uma agradável surpresa.

— Já agora, boa foto. — Sorri com o elogio. Não era algo a que estivesse habituado, mas ela olhava para mim intensamente como se aquela fosse uma verdade inegável. — Se eu pudesse ser fotografada, contraria você, sem dúvida.

— Por que não haveria de puder?

— Doença rara. Meu corpo tem reações estranhas ao flash, uma alergia bem grave. — Aquilo deveria ter servido como aviso de que nós nunca poderíamos vir a ficar juntos, porém, eu só fiquei com pena de ela não puder, nunca, ser eternizada numa fotografia. — É só um pedaço de papel, não é real — argumentou, com certeza para enfrentar meu compadecimento.

— É o que de mais real encontrei até hoje. — Minha voz saiu um pouco mais alta do que esperava, mas nada que sobressaísse no meio da confusão que se agigantava a alguns metros de nós. Sentia-me ofendido. Não estava zangado com ela, mas com a ideia de não sermos tão almas gêmeas como havia pensado. — As fotos que tiro me fazem sentir seguro. É minha forma de lidar com a imprevisibilidade do mundo.

— Então, você só está vivendo errado, Krill.

— Meu nome é Warren! — Eu só queria que aquela confrontação terminasse logo, a alcunha não me tinha afetado tanto assim. A questão ali era ela estar colocando em causa minhas escolhas.

— Se chama assim por causa da Guerra***?

Por mais estranho que parecesse, ela havia acertado. Uma espécie de homenagem retorcida de minha mãe por eu ter nascido poucos meses depois de meu pai se juntar ao exército americano, durante a Segunda Guerra Mundial.

Ela consentiu, tinha achado no silêncio a resposta de que precisava.

— Eu sou Eleanora. — A garota abocanhou o gelado, ficando a segurar um pequeno cone que pouco se alastrava para além dos dedos. Ela mastigava ruidosamente e eu dei por mim a sorrir que nem um imbecil. — Algo me diz que vamos dar-nos muito bem.

O pior, para minha irremediável desgraça, é que ela estava absolutamente certa.

*Boston Redevelopment Authority, que reconstruiu bairros ao longo das décadas de 1950 e 1960.

**Animais invertebrados semelhantes ao camarão.

***Trocadilho com o nome Warren, que começa com "war". Em português, war significa guerra.


1.676 palavras


Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top